sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

AINDA SOBRE A PRAXE


E DE COMO AS COISAS ESTÃO TODAS LIGADAS




Não fora a notável investigação da TVI sobre a trágica noite do Meco e a persistência das famílias das vítimas, que não se acomodaram à versão oficial, e lá teríamos mais um assunto gravíssimo votado ao esquecimento tanto pela justiça como, principalmente, pela opinião pública.

Mesmo assim a tentativa de enquadrar o que se passou no domínio da simples ilicitude de um comportamento anómalo praticado no exercício de uma actividade lícita e normal continua a ser a dominante do discurso da direita. Isso foi notório nas palavras do Secretário de Estado da Juventude, nas das bancadas do PSD e do CDS durante o debate parlamentar de ontem, nas de Marcelo no domingo passado, nas de Paulo Rangel hoje e, obviamente, naqueles brilhantes exemplos de sucesso escolar dos que orgulhosamente exibem a juvenil idade académica de quarenta ou sessenta anos e mais de vinte ou trinta matrículas na universidade.

Falta ainda explorar com a devida profundidade a responsabilidade das escolas, nomeadamente da Lusófona, nas práticas que vinham desde há muito sendo seguidas pelas ditas “praxes académicas” de que se conheciam apenas alguns exemplos, que não poderiam deixar de ser do conhecimento público pela notoriedade da sua prática, mas que, apesar de tudo, estavam longe de revelar o que de mais perverso se passava na intimidade dos grupos secretos que as praticavam.

Não adianta perguntar à Lusófona nem ao seu ilustre “patrão” se foi a Universidade ou a Entidade Instituidora ou lá o que lhe queiram chamar que pagou o fim-de-semana na casa do Meco. É fácil saber quem materialmente fez o pagamento e donde veio, na sua relação mais imediata, o dinheiro. O que interessa saber é se a Lusófona financia a Comissão de Praxe (ou lá como se chama a organização que a dirige) com subsídios mensais ou anuais, já que é muito difícil acreditar que sejam os estudantes a custear as grandes despesas que a “preservação inovadora destas notáveis tradições académicas” exigem. E na descoberta destes factos, a palavra do Sr. Damásio não vale rigorosamente nada. Ou seja, vale tanto como valeu para afiançar a regularidade da licenciatura do Relvas (mais outro assunto que, no plano puramente jurídico, já caiu no esquecimento; qualquer dia prescreve…e o Relvas ainda acaba por ficar licitamente com a licenciatura por usucapião). 

O deputado do CDS, que no Parlamento invocou a autonomia das universidades para deixar tudo na mesma em matéria de praxe, tocou sem o saber no ponto fundamental da questão que nos ocupa.

A praxe e o código de conduta que ela impõe não são imunes, como qualquer outro corpo normativo, ao tempo da sua aplicação. Se é certo que a base da praxe assenta numa pseudo-autoridade e superioridade baseada na antiguidade, desprovida de qualquer outro critério, por mais ignominiosa que essa antiguidade seja, e tem como consequência uma subordinação acrítica geradora de comportamentos obedientes, cuja eficácia é assegurada por via sancionatória, não é menos verdade que a aplicação da norma que a impõe está altamente influenciada pelo contexto económico, ideológico e político da sua aplicação.

Numa época como a actual em que o público tende a ser banido da esfera pública em nome de uma pseudo liberdade, que não liberta, mas oprime, transferindo-se muito do que antes era público para a mera esfera privada, na qual a disponibilidade dos direitos, por mais indisponíveis que sejam, tende a ser a regra, o mais normal é que essa “autonomia da vontade” imponha a lei do mais forte, qualquer que seja o critério de aferição desta força, e se vá gradualmente transformando no pior dos despotismos.

É que não há tanta diferença como à primeira vista se poderia supor entre o Deputado que admite referendar qualquer direito e o Secretário de Estado que abria uma garrafa de champanhe por cada empresa nacionalizada num sector estratégico da economia. Começa-se numa ponta e acaba-se na outra…

Quando politicamente algum responsável se propõe referendar o que ainda há bem pouco tempo parecia indisponível é porque já está suficientemente seguro de que a sociedade encara com normalidade a possibilidade de os direitos inerentes à pessoa humana poderem ser eliminados pela vontade da maioria.

E o despotismo é exactamente isto: um poder legítimo exercido sobre povos naturalmente servis que aceitam despojar-se dos seus próprios direitos. A grande diferença entre o despotismo clássico teorizado por Aristóteles e o moderno despotismo para que tende a sociedade neoliberal dos nossos dias está no facto de o antigo decorrer daquilo a que hoje poderíamos chamar a “natureza das coisas” (a incapacidade de autogoverno) enquanto o moderno tende a assentar perversamente na própria vontade dos “governados”.


E é também por isso que as revoltas, as rebeliões e as revoluções são cada vez menos frequentes. Só se revolta e repõe pela violência a ordem subvertida o cidadão livre, aquele cuja liberdade de consciência o impele à deposição do tirano, exactamente por esse cidadão ter consciência de que o tirano (contrariamente ao que se passa com o déspota) exerce um poder ilegítimo – um poder sem título ou cujo título, tendo sido licitamente adquirido, está deturpado por um uso corrupto do poder.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

PETE SEEGER

HOMENAGEM
Em foto de outubro de 2011, Pete Seeger protesta no Occupy Wall Street, em Nova York (Foto: AP Photo/John Minchillo, File)

Em Outubro de 2011, Pete Seeger protesta no Occupy Wall Street.

Um revolucionário, um lutador humanista nunca se reforma!


DA PRAXE


O QUE SE ESTÁ A PASSAR…

Já toda a gente disse o que havia e o que não havia a dizer a propósito da praxe. Da minha experiência de docência universitária durante várias décadas tenho por certo que o alargamento da praxe para além das “fronteiras de Coimbra” tem a ver com a criação de novas universidades, principalmente universidades privadas, a partir de 1980.

Sem tradições universitárias que obviamente não poderiam ter mas das quais necessitavam para se credibilizar, as praxes e outras manifestações académicas, como os conhecidos agrupamentos de saltimbancos a que pomposamente chamam “tunas”, foram incentivadas e financiadas pelas próprias escolas que tudo faziam para que os seus estudantes se parecessem com o “estudante de Coimbra”. Uma figura mítica de contornos mal definidos, salvo os que resultam de durante muitos séculos, para o bem e para o mal, Coimbra ter sido a única escola de ensino superior existente no país, colónias incluídas, nomeadamente o Brasil. 

Enquanto a Universidade do Porto e a Clássica de Lisboa criadas pelo Governo Provisório em 1911 se demarcavam da de Coimbra pela rejeição dos arcaísmos praxistas, as novas, muitas delas sem nada que particularmente as recomende, e sem tradições que obviamente não poderiam ter, salvo os tristes exemplos das “licenciaturas à Relvas”, copiaram, deturpando e degradando o original, o que de mais arcaico Coimbra tinha para oferecer.

A minha vivência como estudante e docente em Coimbra durante quase toda a década de sessenta – de 1962 a 1969 – diz-me que a geração à qual pertenci, ou melhor na qual me integrei (já que havia “outras gerações da mesma idade” nessa época), encarou a praxe numa dupla perspectiva: como algo de arcaico a banir logo que possível mas simultaneamente algo que, enquanto existia, poderia ser aproveitado como instrumento de luta contra a ditadura naquilo que eram as suas manifestações mais comunitárias (as Repúblicas, mas não só).

E foi assim que naquela década o Dux Veteranorum sempre foi, como então se dizia, “Um gajo da malta”. O saudoso Ciniro comprometido com a luta antifascista dos estudantes e, mais tarde, Carvalho Santos, que sem hesitações decretavam a abolição da praxe sempre que um “acontecimento político” o exigia, como por exemplo o Dia do Estudante e em tantos e tantos outros casos, além do “luto académico” decretado na crise de 69.

Por outro lado, as grandes manifestações colectivas da praxe académica, como as “latadas” e a “tomada da Bastilha”, eram aproveitadas por muitos estudantes como momentos de crítica irónica ao regime, as primeiras, ou como grandes manifestações silenciosas de milhares de estudantes contra o fascismo como aconteceu com as “trupes” de 25 de Novembro de 1964 e 1968 comemorativas da “Tomada da Bastilha” – manifestações a que a PIDE teoricamente se não poderia opor nem proibir…por se tratar de uma “praxe académica” embora subvertida.

As Repúblicas eram verdadeiros centros comunitários de vida democrática, de boémia e cultura, sem hierarquias estúpidas, onde desde o mór até ao mais recente caloiro se forjavam sãs camaradagens e amizades que duravam pela vida fora. Foi o Conselho das Repúblicas que durante toda a década de sessenta propôs e patrocinou a lista unitária de esquerda à “Associação Académica” tendo ganho todas as eleições contra os fascistas de então, hoje “respeitabilíssimos democratas”.

E os praxistas, os verdadeiros praxistas, onde estavam e o que faziam? Havia um núcleo relativamente restrito, politicamente indiferente, que fazia trupes para praxar os caloiros “desprotegidos” que encontrava na rua fora de horas, cuja sanção máxima consistia, como se sabe, no “rapanço” e havia também os “julgamentos” numa ou noutra república (poucas) que poderiam terminar numa condenação, sendo a mais grave o dito “rapanço”. Não se metiam com as caloiras, nem as estudantes eram minimamente incomodadas, salvo uma ou outra chamada de atenção provocada por alguma irregularidade de traje.

Lembro-me de dois famosos praxistas com quem às vezes nos cruzávamos nas noites de Coimbra, um deles tinha um problema com os gatos e o outro estava casado com a estudante mais escultural de toda a Universidade. Ela passava e todo o mundo parava a contemplar aquelas mamas fantásticas como nem em Hollywood havia. E como na época não havia “truques”, tudo era como “Deus deu”, nós olhávamos uns para os outros e dizíamos “como é possível que este tipo ande nas trupes e deixe aquela mulher sozinha…”

Claro que a direita cultivava a praxe e a tradição, mas com excepção do Orfeão Académico, por ela maioritariamente dominado, tinha poucas ou nenhumas possibilidades de pública e colectivamente a exibir nos grandes acontecimentos académicos, dominados por um vida cultural relativamente intensa da qual a direita estava manifestamente arredada. A direita não tinha voz executiva na Associação Académica, nem suas secções artísticas e culturais, não tinha voz no Teatro académico (TEUC E CITAC), estava em franca minoria nos órgãos emblemáticos da praxe, como o Conselho de Veteranos e o Conselho das Republicas, não escolhia o Dux Veteranorum, enfim, defendia a praxe…mas a hegemonia era da esquerda. Desde a linguagem à arte, passando pelos costumes quem estava na defensiva eram eles e quem marcava o ritmo e agenda, como hoje se diz, éramos nós.

Apesar desta vantagem relativa, muito importante no contexto da época, a praxe, “usada e aproveitada”, estava sob o ponto de mira dos estudantes progressistas que, por táctica, tiveram que transigir com algumas das suas mais típicas manifestações e simultaneamente aproveitar-se delas para aquilo que na época era o mais importante: a luta política. E foi por isso que a praxe foi suspensa, por luto académico, durante a crise de 1969 e, logo que as condições o permitiram, abolida com o 25 de Abril tal como já havia acontecido com a Implantação da República, em 5 de Outubro de 1910.

Como a reacção aos grandes movimentos progressistas tem sido muito forte no Portugal Contemporâneo - é assim desde 1820 – a praxe voltou a ressurgir, desprotegida e com mais força, como acontece com a erva daninha que não é cortada pela raiz. Ressurgiu em 1919 logo depois do sidonismo e ressurgiu igualmente nos começos da década de 80 quando a direita reaccionária da Aliança Democrática governava o país.

Hoje, mais de três décadas depois da revoada de novas escolas superiores surgidas quase todas do nada – isto é da ausência de um suporte científico que as justificasse – e apenas apoiadas numa procura para a qual não havia a oferta adequada e conveniente, criadas num clima político onde gradualmente se foi consolidando o culto do privado e da liberdade numa caminhada imparável rumo ao estado de natureza, legitimadores de todos os atropelos e violações à dignidade humana, a começar pela degradação da situação económica dos milhões de desprotegidos em nome da liberdade dos mais ricos, tudo isto acompanhado pela expulsão do público da vida pública por acção de sucessivos governos que aqui e em todo o chamado “mundo ocidental” se têm empenhado na exaltação do privado e na desvalorização do papel do Estado em tudo o que pejorativamente denominam “engenharia social”, só poderia dar lugar a isto – ao uso de práticas indiciadoras e potenciadoras do aviltamento da dignidade humana como expressão caricatural e trágica das práticas legalizadas da sociedade em que vivemos.

Por isso é que, como noutro lugar já dissemos, não há nada mais grave do que afirmar que o que se passou no Meco é um “caso de polícia”. Foi exactamente isso o que se disse do BPN - “um caso de polícia”.
Um caso de polícia significa que no exercício de uma actividade normal, corrente e aceitável alguém cometeu uma infracção devendo por isso ser punido. Sendo o BPN um caso de polícia isso quer dizer que o capitalismo financeiro pode e deve continuar a dominar o mundo com as suas actividades “normais”, “correntes” e “aceitáveis”.

Com a praxe, guardadas as devidas proporções, passa-se exactamente o mesmo…


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

NOTAS SOLTAS

VITAL MOREIRA MORALIZA GOVERNO

SOL


A fase aguda da crise já passou, diz VM ao Sol. Passou para quem? Para as centenas de milhares de pensionistas que vão sofrer novos cortes nas pensões? Para as centenas de milhares de desempregados? Para todos os que perderam o rendimento social de inserção, o abono de família, para os que estão na mais completa miséria? Para os funcionários públicos despedidos ou dos que vêem o seu ordenado diminuir em cada mês? Passou para quem? Para os ricos, para aqueles cujos rendimentos não são afectados pela crise, para as grandes empresas monopolistas ou que dominam o mercado em oligopólio. Para estes, sim, para estes a crise passou se é que alguma vez existiu.
E o PS, o que pensa disto? O que pensa o PS de alguém que nas suas fileiras faz o jogo do Governo? Ou será que o PS já anda a “pensar” em coisas que vão acontecer lá para Maio e VM suspeita “lacunar” esse pensamento? 





PULIDO VALENTE, EUSÉBIO E O PANTEÃO


Desta vez o Pulido Valente é capaz de ter razão. À parte aquela sua incontrolável embirração por tudo quanto cheire a França e à Revolução Francesa – para ele e para Mónica o que não for herança da Revolução Gloriosa não é democrático – aí, Barreto, com muita pena sua, não os poderá acompanhar, já que ele é mais Genebra e Pingo Doce –, é muito natural que Eusébio não se sinta em boa companhia no Panteão Nacional de Santa Engrácia. De facto, ao seu nível, só lá estão Garrett e Amália. E talvez por isso o seu lugar, o lugar onde de certeza ele mais gostaria de ficar era no Estádio da Luz. Nunca pediu isso, mesmo sem saber que Costa Cabral existiu, porque era um homem excessivamente modesto para o valor que tinha.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

ENTRE O PS E O PCP O QUE HÁ?


O PS COMO PROBLEMA

Entre o PS e o PCP há obviamente o Bloco de Esquerda e uma enorme massa de eleitores sem partido que vai repartindo o seu peso eleitoral pelo PS, pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda.

O Bloco, nascido de uma estranha simbiose – trotskistas, UDP e ex-PCP que recusaram aderir ao PS, além de alguns independentes de esquerda –,começou por fazer prova de vida nas legislativas de 2000 afirmando eleitoralmente a sua existência, posto que pela margem mínima; depois, prestigiou-se no Parlamento e cresceu principalmente na legislatura em que o PS governou com maioria absoluta, tendo atingido o máximo do seu peso eleitoral simultaneamente com a perda dessa maioria pelo PS; quando tratou de se consolidar, no período de maior fragilidade política de Sócrates e de crescimento da direita, caiu e agora ameaça baixar para níveis muito próximos do seu começo como partido político.

As explicações para esta trajectória podem ser variadas, consoante o ponto de vista do observador, mas a verdade é que a diminuição do peso eleitoral do Bloco coincidiu, primeiro, com a perda da maioria relativa do PS e agora, a confirmarem-se os presságios, com o posicionamento mais centrista de sempre do Partido Socialista.

É perante este quadro do qual faz parte ainda como elemento relevante incontornável o crescimento e a consolidação do peso eleitoral do PCP, depois das muitas dificuldades por que passou posteriormente a 1989, que surgem quase simultaneamente duas iniciativas, aparentemente posicionadas no espaço compreendido entre o PS e o PCP, cujos objectivos, apesar de tentativamente explicitados, não são muito fáceis de compreender. Referimo-nos, como é óbvio, à iniciativa de Rui Tavares (Livre) e à de um grupo de cidadãos, entre os quais emergem os nomes da Carvalho da Silva, Daniel Oliveira e José Reis, a que deram o nome de “Convergência de Esquerda”, também conhecida por 3D.

Embora a maior parte das pessoas interessadas na interpretação da coisa política, porventura talvez um pouco mais as de esquerda, ache que Rui Tavares tenta desesperadamente manter o lugar de deputado ao Parlamento Europeu num gesto e numa ansiedade muito próprios de quem já sente a nostalgia da perda do poder, além do mais de um poder que se trata a si próprio muito bem, a verdade é que nestas coisas da política nem tudo pode ser assim apresentado cruamente sendo necessário, para lhes dar credibilidade, enroupá-las com aquele mínimo de aparato que as torne credíveis.

É isso que Rui Tavares tem tentado fazer em vários meios de comunicação social, com especial destaque no Público, no i e numa ou outra estação de televisão. Diz, em síntese, o ainda deputado ao Parlamento Europeu, que é necessário constituir em Portugal um novo partido que garanta, viabilize ou facilite a aliança do PS à esquerda. Um partido ideologicamente situado no espaço que vai da esquerda do PS à direita do Bloco, ou, como ele próprio diz, aos moderados do Bloco. Um partido que nessa área seja capaz ainda de congregar todos aqueles que à esquerda se não revêem na política de permanente compromisso do PS com a direita, nem nos radicalismos irrealistas do Bloco e muito menos nos dogmatismos arcaicos do PCP.

Este discurso, que de original nada tem, é, analisado com frieza, pouco consistente.

Se o Partido Socialista perdesse a chamada ala esquerda e se dele se afastassem aqueles eleitores que à esquerda, às vezes contrariados e quase nunca convencidos, votam nele por não se reconhecerem ou não confiarem nas demais alternativas existentes, ele deixaria de ser o que é e passaria a ser um partido de centro direita sem outras preocupações que não fossem as de garantir a alternância relativamente ao partido imediatamente à sua direita. Ou seja, se agora com a ala esquerda e com um núcleo relativamente importante de votos da esquerda, o PS é como é – não faz alianças à esquerda, nem conduz uma política em que a esquerda se reveja – imagine-se o que seria o PS sem aquele eleitorado e sem a militância, pelo menos retórica, dos “maus socialistas”. Querer fazer alianças sob a égide do PS e simultaneamente pretender despojá-lo do que nele há de genuinamente esquerda poderá ser muita coisa, mas o que certamente não será é via mais segura para constituir um governo de esquerda. Mas continuemos…

Rui Tavares parece desconhecer a história do Partido Socialista e a sua verdadeira natureza. É certo que o Partido Socialista está hoje bastante descaracterizado, à semelhança do que se passa com os demais “partidos irmãos” europeus, sejam eles socialistas, social-democratas ou trabalhistas, muito por força do que se passou na Europa (e no mundo) depois da Queda do Muro e da implosão da URSS. Essa descaracterização foi em grande medida obra dos socialistas europeus que levados pela vertigem da História não souberam ou não quiseram compreender o que realmente se estava a passar, tendo sido inclusive por obra sua que todas as portas foram abertas para o relançamento de um capitalismo sem freios com as consequências que agora estão à vista e contra as quais esses mesmos partidos socialistas se consideram impotentes para as contrariar ou inverter.    

Rui Tavares, como historiador, não deve desconhecer que nunca na sua história o PS teve uma composição tão à esquerda como a que existia por ocasião do 25 de Abril. Para além do núcleo duro, oriundo da ASP e de outras organizações políticas que a antecederam, caldeado na luta anti-fascista, havia trotskistas, obreiristas, católicos progressistas, ex-comunistas de esquerda, enfim, um sem número de pessoas que aderiu ao Partido vindas da esquerda que se opunham ao que entendiam ser a estratégia política do PCP e, obviamente, dos grupúsculos “m-l”, muito activos e com os quais o PS praticamente não mantinha relações; havia tudo isto e, não obstante, nunca houve politicamente uma “maioria de esquerda”, apesar de ela existir aritmeticamente, nem houve qualquer tipo de entendimento à esquerda minimamente durável. 

Porquê? Porque o PS de Mário Soares tinha uma estratégia muito clara da qual não se afastava um milímetro: institucionalizar em Portugal uma democracia representativa, se possível de base exclusivamente parlamentar, sem qualquer tipo de cedências a qualquer outra forma de poder que não a resultante do voto popular.

Mário Soares seguiu à risca esta estratégia, fazendo as alianças de ocasião que lhe pareceram necessárias para a consolidar e recusando, sem hesitações, qualquer tipo de entendimento à esquerda que, de perto ou de longe, pudesse fazer crer num relançamento do PREC.

Mário Soares acreditava na solidariedade dos partidos socialistas e social-democratas europeus, acreditava no “socialismo em liberdade” e acreditava acima de tudo na Europa como palco ideal de concretização das suas ideias políticas. E continuou a acreditar, nos anos imediatamente subsequentes à Queda do Muro e à desagregação da URSS, que estavam, finalmente, reunidas as condições ideais para pôr em prática aquele ambicioso projecto político.

Aliás, é bom que se recorde que não foi sob o comando executivo de Soares à frente do PS que a organização económica consagrada na Constituição Portuguesa foi revista e completamente descaracterizada, mesmo tendo em conta a Lei n.º 77/77. Soares patrocinou e promoveu, juntamente com o PSD, a revisão de 1982, que no essencial consagrou aquilo que fora a sua estratégia politica depois do 25 de Abril. Mas foi com a revisão de 1989, promovida pelo cavaquismo com o apoio do PS de Constâncio que se abriu à porta às privatizações e tudo o mais que elas trouxeram. Cumprida a tarefa, Constâncio demitiu-se de secretário-geral do PS por divergências insanáveis com a família Soares, na altura centradas em João Soares.

Tudo isto para dizer que mesmo quando o PS esteve politicamente mais à esquerda nunca a sua política favoreceu qualquer entendimento à sua esquerda. Meia dúzia de anos depois da revisão constitucional de 89, veio o “guterrismo” que escancarou as portas da economia à Europa, o novo Deus ex machina dos socialistas, promoveu aqui e na Europa, com os muitos socialistas que então a governavam, o neoliberalismo, internamente atenuado pela promoção de um certo assistencialismo que a existência de dinheiro com fartura possibilitava. Deixados guiar pela “conversa” da Terceira Via, a nova geração de socialistas estava a preparar a cama para o tal capitalismo sem freios, voraz e insaciável que jamais abrandará a sua marcha com vista à constituição de uma sociedade inteiramente dominada pelo mercado. Ou seja, de uma verdadeira sociedade civil no sentido marxista do conceito. De uma sociedade onde reina o poder do mais forte, onde campeia a liberdade ilimitada bem à semelhança do que se passa na selva. Um verdadeiro estado de natureza!

Pois bem, se este é o objectivo para que caminhamos, se o “nosso” PS e os seus congéneres europeus não só se revelam absolutamente incapazes de se opor a este estado de coisas como, pelo contrário, por quase toda a Europa, se aliam, agora em minoria, aos corifeus desta política, que sentido tem estar a formar um partido com a intenção de servir de “bengala” ao PS na futura constituição de um governo? Nenhum. Absolutamente nenhum, salvo o de identificar a “bengala” com aquele que dela precisa para caminhar.

É por essa mesma razão que igualmente se não compreendem bem os verdadeiros objectivos da recém-anunciada “Convergência de esquerda” ou do chamado Manifesto 3D. Mesmo que haja uma adulteração semântica do conceito – e há, pela própria limitação da diversidade por cuja convergência se luta – resta sem resposta adequada a questão fundamental: convergir com base em quê? A convergência política para ser uma convergência verdadeira e própria tem de ser substantiva e não meramente adjectiva. A “convergência” para evitar que o Bloco “caia no buraco” ou para simplesmente unir sob uma nova sigla votos que de outro modo estariam eventualmente dispersos, pode ser uma excelente ou razoável ideia para quem é eleito, mas em si esse objectivo não acrescenta rigorosamente nada à esquerda se os votos reunidos sob a égide de uma sigla não servirem os objectivos de uma política de esquerda.

O que a nosso ver acrescentaria algo à esquerda seria lutar pela convergência das forças de esquerda em torno de um projecto de mudança assente numa política de ruptura do status quo. Uma política, por outras palavras, que fizesse convergir para as forças da “Convergência” os votos da esquerda sem partido, deixando o PS em minoria, pois somente com o PS em minoria será possível conduzir em Portugal uma política de esquerda. Uma política na qual o PS teria o seu lugar, mas não como partido hegemónico à volta do qual se façam hipotéticas, na realidade impossíveis, alianças com vista à condução de uma política de esquerda.

Aparentemente, a Convergência de Esquerda parece ter como objectivo prioritário congregar todos os votos situados entre o PS e o PCP. Ou seja, parece ter por objectivo eleitoral alcançar os resultados que o Bloco parecia estar em condições de conseguir e que hoje manifestamente já não consegue. É isso que se depreende das palavras de José Reis mais do que das de qualquer outro: “Perante uma esquerda fragmentária, há vários passos a dar, sucessivamente. O primeiro é um compromisso inicial entre quem mais imediatamente se deve unir: o BE, o Livre, as várias plataformas, organizações, individualidades e activistas. (…) Depois há, evidentemente, outros passos a dar. Perante o PCP e o PS”.

Como esta convergência se alcança, em que bases se funda e fundamenta é coisa que os promotores da iniciativa não explicam suficientemente. Mais claro parece ser o propósito pós eleitoral desta nova força política: constituir uma força de governo, fazer parte do “arco da governação”, como claramente se intui das palavras de Daniel Oliveira, outro promotor da iniciativa.

Independentemente da respeitabilidade de alguns nomes que assinam o Manifesto, como José Reis e Carvalho da Silva, entre outros, a conclusão que parece poder retirar-se da relativa opacidade que rodeia os seus propósitos políticos não é infelizmente muito diferente daquela que o Livre, com mais transparência, claramente anuncia: uma bengala posta à disposição do PS para tentar impedir que este caminhe encostado à direita. 

Claro que a ser assim – e até agora nada indica que seja de outra maneira – tudo à esquerda ficaria mais ou menos na mesma ou porventura até pior. Se é certo que só se pode fazer uma política de esquerda governando, não é menos certo que somente sem a hegemonia do PS e sem alianças subordinadas à estratégia do PS, se poderá fazer essa política de esquerda. E isso só será possível mediante a constituição de uma frente na qual convirja toda a esquerda. Ou seja, uma frente que ponha o “arco do poder” do outro lado do hemiciclo...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

"O LUGAR DE EUSÉBIO"




POR OCASIÃO DA MORTE DE EUSÉBIO


A propósito do muito que hoje se disse nas televisões, na rádio, na imprensa digital e nas redes sociais sobre Eusébio e sobre o aproveitamento pelo Estado Novo dos feitos desportivos do Benfica e da selecção nacional na década de 60 do século passado, ocorre-me voltar a relembrar o artigo que aqui publiquei no passado dia 23 de Agosto sobre o "Lugar de Eusébio" como comentário crítico a um artigo publicado no Público do dia 21 de Agosto sobre "Racismo e colonialismo".

E como hoje esse artigo voltou a ser relembrado nas redes sociais e foi frequentemente aflorado em alguns comentários televisivos acho que vale a pena revisitar o assunto.

Antes de terminar gostaria ainda de acrescentar uma afirmação e deixar uma pergunta.

Hoje, mais do que nunca, os governos tentam apropriar-se dos êxitos desportivos dos seus atletas ou dos seus clubes, mesmo quando nas suas fileiras não militam, ou só militam residualmente, atletas nacionais, como frequentemente acontece com algumas das mais importantes equipas de futebol.

Quantos jogadores de origem africana integraram as equipas europeias no Mundial de 66? No Mundial de 66 participaram 10 equipas europeias: Inglaterra, Alemanha Ocidental, Itália, Bulgária, Hungria, Suiça, França, União Soviética, Espanha e Portugal.



domingo, 5 de janeiro de 2014

EUSÉBIO



 

seleccao nacional futebol 66 santa nostalgia


GRANDE EUSÉBIO

Na minha galeria de grandes jogadores de futebol figuram como os maiores de todos os tempos – e a todos vi jogar – Di Stéfano, Maradona, Eusébio, Cruyff, Zidane, Garrincha e Messi.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

REPAREM NESTA FRASE

A LINGUAGEM DA DIREITA


Como era de temer, o Governo resolveu compensar com nova receita pública as centenas de milhões de euros que deixou de poupar na despesa com as actuais pensões da CGD, cuja redução foi impedida pelo TC”.

De quem é esta frase? De alguém que ainda há dias garantia que era um “homem de esquerda” e “pedia meças” a quem ousasse pôr em causa esta sua irreprimível vocação…Afirmação esta que tinha como causa próxima a crítica que lhe fora feita pelas posições que assumiu a propósito da decisão do TC sobre a convergência das pensões.

Analisemos a frase: a nova medida do Governo (a TSU dos velhos) visa compensar as centenas de milhões de euros que deixou de poupar nas despesas com as actuais pensões da CGA. Os euros que o Governo deixou de poupar? Onde é que nós já ouvimos isto? Ouvimos à Cristas, ao Mota Soares e a todos esses expoentes do “socialismo à CDS”. Quer dizer: um fulano é roubado, o tribunal manda o ladrão repor o produto do roubo e o comentador entende que o ladrão deixou de poupar o que não pôde roubar.

Mas há mais: despesa cuja redução foi impedida pelo TC. Pelos vistos, não foi a lei que impediu o ladrão de roubar. Foi o tribunal que impediu a redução da despesa como se de um acto resultante do seu livre alvedrio se tratasse.

A linguagem da direita está impregnada no tecido social. Nas televisões, nos jornais, na rádio, nas conversas informais e até em alguns professores de direito constitucional que confundem o lícito com o ilícito, o direito com o não direito e que tratam as decisões dos tribunais como simples actos políticos. Ou seja, como actos que nada tem a ver com a lei em que se fundamentam!


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

CAVACO EM CAMPANHA ELEITORAL PELO GOVERNO


CAVACO E O CONSENSO

Descontando o que já todos sabemos sobre Cavaco – a sua incapacidade para compreender a democracia; o seu desapego aos genuínos valores democráticos; a sua vulgaridade intelectual – o que dele resta como Presidente da República é a defesa incondicional do Governo em funções e as manobras de propaganda eleitoral, próprias de quem já não se considera capaz de terminar o mandato presidencial com um governo em exercício de funções partidariamente diferente do actual.

Com o apelo ao consenso tão veemente quanto cínico o que Cavaco realmente pretende é colocar o PS em dificuldades e retirar-lhe margem de manobra eleitoral. Cavaco sabe perfeitamente que a direita do PS, muito próxima do CDS no plano das “respostas económicas” para a crise, é favorável a um entendimento com a direita que governa, facto de que não faz qualquer segredo tanto nas intervenções televisivas dos seus principais representantes como nos diversos artigos de opinião publicados nos jornais. Mas sabe também que uma parte significativa do PS, seja por ajuste de contas seja por razões ideológicas, de forma alguma aceitará qualquer entendimento proposto por Cavaco, hostilizando à partida quem no PS se incline no sentido da sua aceitação ou sequer da sua análise como projecto de trabalho.

E Cavaco sabe ainda, porque essas manobras políticas ele conhece-as todas, que o um eventual conflito interno no PS o enfraquece eleitoralmente, assim como sabe que a coligação no poder, nomeadamente o PSD de Passos Coelho, não deixará eleitoralmente de brandir junto do eleitorado do centro a “permanente indisponibilidade do PS para ajudar Portugal a sair da crise com acordos duradoiros”.

Enfim, Cavaco ataca pelos dois lados, já que o que lhe interessa é manter o seu bando no poder para poder concluir com êxito a obra a que a meteu mãos. Os portugueses podem esperar, principalmente agora que a economia – este sujeito aparentemente indeterminado – dá sinais ténues de recuperação. "Ténue recuperação", na sequência de um processo de ajustamento, significa que o desequilíbrio causado por este nas relações económicas, políticas e sociais entre o capital e o trabalho está em vias de se consolidar e de criar uma nova e durável correlação de forças na sociedade portuguesa.

Na verdade, o “ajustamento” agrava e consolida as desigualdades, criando as condições para que no domínio das relações laborais a fragilidade do emprego tenda a remeter os trabalhadores para níveis gradualmente mais baixos de remuneração com o aumento correspondente da taxa de lucro. Esta a economia que Cavaco quer consolidar com o seu “consenso”!