domingo, 14 de fevereiro de 2010

QUEM VIOLA A SEPARAÇÃO DE PODERES?



COMO SE PODE SABER SE HOUVE OU VIOLAÇÃO?

Afastado de Portugal por uns dias, sem possilidade de seguir ao pormenor as vicissiudes da política caseira, resta a abordagem dos temas que não se alteram com a passagem do tempo ou os que tendem a permanecer actuais por longos períodos.
Entre os primeiros, tem ganhado algum relevo na vida política portuguesa o argumento usado pelo Governo e seus defensores de que não lhes compete comentar as decisões do Procurador Geral da República (PGR) e do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (PSTJ) proferidas a propósito do processo “Face Oculta” por respeito pelo princípio da separação de poderes.
Nada, portanto, mais actual do que tecer algumas breves considerações sobre a separação de poderes.
De uma forma simples, própria de um blogue, pode dizer-se que a violação do princípio constitucional da separação de poderes 1) tanto ocorre nos casos em o Executivo ou o Legislativo se ingerem no exercício da função jurisdicional, inibindo-a ou substituindo-a no desempenho da sua função, quer pré-determinando ou condicionando o seu exercício; 2) como nos casos em que o Judicial actua como legislador, ou seja, quando deixa de determinar-se por critérios especificamente jurídicos e passa a actuar com base em critérios de oportunidade política, mediante opções e valorações típicas do legislador; ou ainda quando se substitui ao Executivo, tanto na prática de actos que só àquele competem, principalmente mediante emprego de critérios de oportunidade, como quando se propõe fazer o controlo de actos que, pela sua natureza, escapam à sindicância dos tribunais (casos hoje raros, no actual estádio de evolução do Estado de Direito, mas ainda existentes, de que constituem exemplos paradigmáticos os “actos políticos” (não sindicáveis jurisdicionalmente) e os “actos discricionários” (parcialmente não sindicáveis).
A ingerência do Judicial no Legislativo não se traduz necessariamente na elaboração de normas de vigência permanente e ostensiva, como acontecia com o famoso caso dos Assentos, mas ocorre também com muita frequência naqueles casos em que o legislador, por razões várias ou, dito de forma mais abrangente, por opção política, deixa ficar certas assuntos fora do Direito, num espaço livre de Direito ou ajurídico, e os tribunais teimam em introduzi-las na esfera do jurídico, e tendem a dar-lhes uma resposta jurídica com base em critérios de oportunidade política, mediante a sua subsunção numa norma que criam para o efeito e que resulta implícita da decisão tomada. Mais grave ainda é quando o Judicial se afasta clara e flagrantemente da norma em vigor e motivado por considerações de outra ordem profere uma decisão unicamente baseada em critérios de oportunidade política, disfarçada de decisão jurídica.
Quem tem competência para garantir a separação de poderes e pôr cobro a situações deste género são os tribunais comuns, sejam judiciais ou de competência especializada; todavia, como a acção destes pode não ser suficiente para atingir aquele objectivo, depois de esgotadas as instâncias de recurso ainda resta o Tribunal Constitucional ao qual caberá, em última instância e ainda no plano jurisdicional, defender e garantir aquele princípio.
Todavia, em todos os domínios normativos e desde logo, por maioria de razão, no do Direito põe-se a questão de saber “Quem guarda o guarda?”. Este é um problema de difícil solução, irrespondível no plano jurídico e que apenas pode ser tratado filosoficamente no domínio das relações entre o Direito e a Força. Contudo, antes de lá se chegar, deverá admitir-se que, em situações excepcionais, de grave crise institucional, caberá ao Parlamento, como órgão democrático primariamente legitimado, fazer a defesa e a reposição do princípio.
Dito isto, genericamente, quanto ao modo como pode ser violado o princípio da separação de poderes e como se garante a sua eficácia, facilmente se perceberá que aquele princípio só poderá ser efectivamente controlado se os actos que hipoteticamente o infringem forem publicados e publicitados.
Se, por exemplo, as decisões judiciais não forem tornadas públicas tal como foram proferidas, acompanhadas dos fundamentos que as justificam, e delas apenas tivermos o rasto deixado pela sua execução nunca se poderá controlá-las e jamais se poderá se poderá saber se elas violam ou não o princípio da separação de poderes.
Como se já disse, vêm estas considerações a propósito dos despachos proferidos pelo Procurador Geral da República e pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (que anteontem ficámos a saber, para surpresa nossa, serem de natureza substancial) sobre os hipotéticos indícios de crime de atentado contra o Estado de direito.
Na própria defesa daqueles magistrados, do Estado de Direito e do princípio da separação de poderes, aqueles despachos e as respectivas fundamentações têm urgentemente de ser tornados públicos tal como foram proferidos. De outro modo, jamais se poderá evitar a suspeita de que eles foram proferidos com violação do princípio da separação de poderes.
De facto, não é aceitável que num assunto de relevante interesse público apenas se conheça a posição dos magistrados de Aveiro (procurador e juiz de instrução), que viram nas matérias averiguadas indícios da prática daquele crime, e não se conheçam os despachos dos dois altos magistrados atrás citados que não consideraram tais matéria merecedoras de qulquer averiguação
Como também aqui já se disse por mais de uma vez, a argumentação segundo a qual as decisões dos tribunais superiores se sobrepõem às dos tribunais inferiores de nada vale enquanto não se não conhecerem as decisões e os respectivos fundamentos de uns e de outros.
Para que este objectivo se alcance, vale a pena invocar aqui Montesquieu e a sua luta pela clarificação do direito ou, antes dele, a luta da plebe romana pelo conhecimento das normas que a regiam (luta da qual resultou a Lei das XII tábuas) como vale a pena sobretudo recordar a máxima kantiana, que via no secretismo, tão frequente no direito público, uma forma de ocultar a injustiça que não pode ser mostrada.
Portanto, quem defende a separação de poderes não é quem invoca os referidos despachos para ocultar o que se passou, mas quem pugna pela sua publicidade para saber o que se passou!

1 comentário:

VM disse...

Depreendo deste post e do anterior que o Presidente do STJ se terá pronunciado indevidamente sobre uma questão que não é da sua competência: o mérito ou demérito indiciário das escutas.

Não podia fazê-lo no processo de Aveiro porque nem o Sócrates é aí arguido nem ele é "superior hierárquico" ou "tribunal superior" do Tribunal de Aveiro.
Não podia tb fazê-lo em processo supostamente pendente contra o Sócrates no STJ porque aí o juiz de instrução seria outro conselheiro das secções criminais.

Assim sendo, mandou destruir as escutas por despacho proferido em processo (???) que, enquanto processo penal, nunca existiu ... mas sim em expediente meramente administrativo.

Se assim for, não se podem invocar as disposições do Código de Processo de Penal relativas ao segredo de justiça, o que é razão acrescida para os despachos do Presidente do STJ (e os do PGR) deverem ser tornado públicos.
...Para defesa dos próprios magistrados, como bem diz CP.
VM