quinta-feira, 3 de abril de 2008

O RELACIONAMENTO UE/EUA, SEGUNDO LUIS AMADO


A CONCEPÇÃO EUROPEIA DO MNE

O Público de 2 de Abril traz a segunda parte da entrevista do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, toda ela dedicada à abertura de um novo ciclo na relação transatlântica. Contrariamente à de ontem – que se enredou na questão do reconhecimento do Kosovo, por força da posição tomada pelo Presidente da República -, a de hoje é uma entrevista bem interessante já que nela Luis Amado expõe as suas concepções sobre a NATO e o seu alargamento, sobre a relação da União Europeia/Nato com os Estados Unidos (parece haver aqui um erro lógico, mas não há, como se verá) e também, na medida em que as anteriores concepções o permitirem, sobre a União Europeia.
1. Sobre a Nato e o seu alargamento, a posição do MNE é clara. Obviamente, que o alargamento da NATO a leste é um desígnio estratégico da organização, que o MNE perfilha completamente. Mas não segundo o calendário de Bush. Para alargar é preciso primeiramente que a Geórgia se consolide como Estado fora da órbita da Rússia e que a Ucrânia, internamente, esbata consideravelmente a divisão leste/oeste que a dilacera. Esta posição tem a vantagem de não afrontar a Rússia numa situação de fragilidade dos países candidatos e de lhe fazer supor que ela terá uma palavra a dizer sobre o alargamento. A questão da NATO é uma questão chave no pensamento de Amado, por isso tem de ser tratada com prudência e sem o ansioso voluntarismo de Bush, que, pretendendo o alargamento imediatamente para evitar uma futura reversão da situação nas ex-repúblicas soviéticas, iria criar uma insustentável crispação com a Rússia, além de prejudicar a evolução natural da Ucrânia, da Geórgia e, eventualmente, de outros países do Cáucaso no sentido de uma aproximação ao “ocidente”.
2. A integração da União Europeia na NATO é um outro objectivo que o Ministro se propõe prosseguir sob a denominação de um Novo Conceito Estratégico a trabalhar no seio da UE com vista a fazer da NATO uma organização que não mais possa ser tida como uma entidade estranha à construção europeia. Este objectivo, impossibilitado no passado pela posição francesa e, depois da Queda do Muro, pela relativa autonomia da política externa alemã, está agora, no entender do Ministro, muito facilitada pela nova posição francesa na NATO e na Europa, designadamente por força da “entente amicale”com o Reino Unido e o consequente esbatimento do eixo Paris/Berlim (o Ministro não o diz, mas é nisto que está a pensar). Sobre o entendimento que tem da NATO, o Ministro até é relativamente claro na entrevista: “ A minha perspectiva é a de que nos devíamos centrar na coesão do sistema Euro-Atlântico na sua dimensão Europa-América do Norte. Com a entrada em vigor do novo Tratado (…), a UE deveria abrir o debate sobre qual o seu posicionamento no sistema de segurança colectiva a que pertencemos nos últimos 60 anos. (…) A perspectiva de um sistema de segurança e defesa independente do sistema NATO é obviamente inaceitável”.
Tudo ficará enormemente facilitado, segundo suponho ser o pensamento do Ministro, com o novo quadro institucional do Tratado de Lisboa, nomeadamente se o Presidente do Conselho for uma personalidade capaz de dar corpo àquele entendimento estratégico. A eleição de alguém como Blair encaixaria às mil maravilhas no desenvolvimento desta estratégia, já que ajudaria a transformar não apenas as relações euro-atlânticas, mas principalmente a relação da UE com a Nato, em consequência da redefinição do conceito estratégico desta.
3. Perguntar-se-á o que restaria da Europa se esta concepção estratégica fosse levada à prática. Restaria o que sobrasse. E o que sobra não é muito diferente daquilo que os ingleses querem e que se tornou mais fácil de concretizar depois do alargamento da União Europeia. Ou seja, o sonho da velha ideia europeia de construir uma Comunidade que caminhasse gradualmente para uma União com formas cada vez mais integradas de governação política, de política externa e segurança comum, de políticas fiscais e sociais tendencialmente comuns e outras, seria completamente posto de parte nesta concepção. Em seu lugar ficaria um vasto mercado comum, com liberdade de circulação de capitais, serviços pessoas e bens, militarmente defendido por uma aliança euro-atlântica, estrategicamente dominada pelos detentores da força militar.
4. Esta concepção europeia do Ministro, mesmo supondo que seja a do Governo português, facto que me permito duvidar, assenta em pressupostos demasiado frágeis e que por isso a tornam relativamente inconsistente.
a) O primeiro pressuposto é o de que está estabilizada uma nova política externa francesa e consolidado um novo entendimento da posição da França na NATO. A natureza hiperactiva e o carácter errático do Presidente francês de forma alguma permitem gizar com um mínimo de segurança uma política assente naquilo que parece ser a posição francesa. Além de que, como já se está a ver, essa política, indo ao arrepio do que tem sido a política francesa desde o pós guerra e mesmo depois da guerra fria, levanta muitas objecções em França, tanto nos meios políticos como militares. Por outro lado, as especificidades da situação económico-social francesa dificilmente se coadunam com ela.
b) Em segundo lugar, embora o Ministro admita que a situação na América se vai alterar, seja qual for a nova administração, ele só está a entrar em linha de conta com certos aspectos da acção externa dos EUA. Só que a alteração, como tudo indica, vai ser muito mais profunda - já está a ser - e ela vai afectar a própria estrutura do sistema económico tal como nós conhecemos designadamente nos últimos vinte anos. E essa mudança vai necessariamente implicar uma redefinição da concepção económica da união europeia.
c) Em terceiro lugar, ela assenta no pressuposto de que as teses que tendem a conceber a Europa como um vasto mercado comum e que perfilham a integração da UE na NATO serão sem dificuldade partilhadas por uma grande maioria de Estados. Embora o alargamento dificulte enormemente a concretização do sonho europeu, a ideia de uma Europa europeia ainda está suficientemente arreigada na generalidade dos Estados para que possa ser posta de parte.
d) Por último, é muito duvidoso que esta concepção europeia do Ministro seja perfilhada pelo Governo português ou, se quiser, pelo Estado português.

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