quinta-feira, 19 de junho de 2008

AINDA A ENTREVISTA DE MÁRIO SOARES A CHÁVEZ


O QUE SOARES E OS EUROPEUS TÊM DIFICULDADE EM COMPREENDER

Foi a vários títulos interessante a entrevista que Chávez concedeu a Soares, passada ontem à noite na RTP1.
Sublinho dois aspectos que me parecem importantes.
O primeiro tem a ver com a habitual retórica peninsular, e em certa medida também europeia, sobre a identidade cultural e de valores entre a Europa e a América Latina. Se esta retórica ainda poderia fazer algum sentido quando os países latino-americanos eram governados pelas elites descendentes dos colonos, como aconteceu em quase todos eles durante mais de século e meio, ela hoje perde grande parte do seu sentido, face á grande viragem que se está verificando em toda a América Latina. Nos países hoje governados por descendentes dos povos autóctones ou por lídimos representantes do povo que durante séculos foi marginalizado, esta ideia de que há uma identidade já construída entre eles e os europeus não tem qualquer valor político, nem tão-pouco qualquer futuro. Se a Europa e a Península Ibérica querem ter uma relação especial com a América Latina vão ter de superar muito do foi o passado entre os dois continentes – um passado de conquista, de exploração e de extermínio – e construir o futuro em bases novas, aceitando desde logo o direito de aqueles povos decidirem o seu próprio futuro. Chávez, delicadamente, explicou a Soares, usando a linguagem deste: a América Latina tem muitas mães. A primeira de todas: a América, mas também a África e depois a Europa. A América Latina espera que a “mãe” Europa tenha capacidade de compreender o que se está passando com os “filhos”!
O segundo aspecto que quero sublinhar tem mais a ver com as “especificidades do socialismo à portuguesa” de que Mário Soares é o seu mais lídimo representante. Acredito que Mário Soares gostasse que o povo latino-americano vivesse melhor e se libertasse do subdesenvolvimento e da pobreza que em grande medida ainda o afecta. E que houvesse uma classe média numerosa, forte, defensora de uma sociedade aberta, livre e plural. Só que este desejo não passa de um vago e utópico propósito, pois quando os povos se põem em marcha para tomar o destino nas suas mãos, destruindo evidentemente privilégios e iniquidades de toda a ordem, logo começam os “mas” e os “ses”. Infelizmente, esta reacção, hoje também muito comum entre os que pertencem ao que se convencionou chamar o “socialismo democrático”, é muito mais notada naqueles que, dizendo-se socialistas, nunca pertenceram a um partido que tivesse lutado pela democracia económica. As limitações de Soares, bem compreendidas por Chávez, são um pouco a prova de que os sectores mais representativos do chamado “socialismo democrático” não estão ainda em condições de aceitar o que se está a passar na América Latina. Se um certo sentimento anti-americano existente em alguma Europa e uma generalizada oposição a Bush, ainda conferia a estes novos dirigentes latino-americanos alguma simpatia inicial, ela logo se desvaneceu quando se começou a compreender que os objectivos que eles têm em vista são muito mais vastos do que a sua libertação do poderoso vizinho do norte. Basta seguir com atenção a política externa espanhola relativamente à América Latina ou avaliar os receios de Portugal relativamente ao futuro do continente sul-americano para se compreender que o caminho que está a ser seguido não é de forma alguma o que lhes interessa seja trilhado.

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