A MUDANÇA DE LINGUAGEM
É completamente errado supor que o neoliberalismo está derrotado ou que a mudança de direcção política nos Estados Unidos, ocorrida dentro do sistema, implicará uma mudança do modelo económico que desde há mais de duas décadas governa o mundo. Na verdade, as mudanças desta envergadura jamais acontecerão sem que forças muito poderosas, politicamente organizadas e socialmente activas, se oponham ao sistema e ameacem revolucionariamente a sua existência. Também não é verdade que o sistema tenha colapsado, como certamente teria ocorrido se tivesse havido uma crise devastadora no sistema financeiro, com falências em cadeia dos grandes bancos comerciais e de investimento. Esteve perto do colapso, mas acabou por ser salvo mediante recurso gigantesco a fundos públicos. Ou seja, foram os Estados que tiveram de se endividar para o salvar e vão ser as pessoas que nunca recolheram as benesses principescas do sistema que, com o seu trabalho, vão ter de pagar a crise. Como se verá melhor nos anos subsequentes.
Mas já é verdade que o neoliberalismo está em crise ideológica, embora continue a dominar a vida económica e se prepare, vencida a crise ou invertido o seu sentido, para voltar ao que era antes com pequenas diferenças de pormenor. Tudo vai depender da capacidade das forças de esquerda. Se as forças de esquerda tiverem força suficiente para levar os povos em geral a rejeitar o essencial do modelo, poderá assistir-se a uma alteração da matriz económica dominante nestes últimos vinte anos.
Não é, porém, nada provável que tal suceda. Na maior parte dos países as forças de esquerda estão desorganizadas ou tem um peso institucional diminuto. Supor, como alguns acreditam, que serão os partidos social-democratas a promover as mudanças não passa de uma ilusão. Brevemente teremos o resultado da próxima reunião do G20, embora pela reunião preparatória dos ministros das finanças seja desde já lícito concluir que nada de relevante acontecerá. Mesmo algumas medidas meramente simbólicas, como a regulamentação dos prémios e bónus dos gestores e uma fiscalidade adequada, não serão postas em prática, salvo, porventura, numa mera alteração do período temporal de referência para a sua atribuição É também admissível, mas não seguro, que os principais agentes do sistema financeiro desregulado (bancos de investimento) passam a ter uma regulamentação semelhante à seus congéneres comerciais. Mas o essencial, e o essencial tem a ver com os critérios de distribuição de riqueza e com as taxas de exploração, ficará substancialmente na mesma.
Isto não significa que a crise não produza efeitos. A questão está em saber que tipo de efeitos. Os efeitos mais desejados são os de natureza económico-financeira no próprio sistema. Todavia, os que agora são mais visíveis são de natureza puramente ideológica. A grave crise que o neoliberalismo está a viver é de natureza ideológica. Os dogmas em que assentava a força expansiva da sua doutrina faliram clamorosamente com a crise. O mercado afundou o mundo e o mundo capitalista teve de ser salvo pelo Estado, mediante transferências massivas de recursos públicos para o sector privado empresarial. Um fenómeno desta natureza e envergadura não pode deixar de produzir efeitos profundos na própria linguagem política, mesmo naqueles países onde a oposição ao sistema é mais inorgânica, posto que amplamente sentida, como acontece difusamente nos Estados Unidos. Nos países como Portugal, onde existem forças organizadas que se opõem ao sistema e abertamente advogam a sua substituição, assistiu-se a um fenómeno curioso.
Neste contexto – um contexto onde muitos protestam desorganizadamente e ninguém lidera a força necessária para promover a mudança - Portugal apresenta uma particularidade que não existe na maior parte dos países da Europa. Há forças de esquerda, estruturadas e organizadas, que se opõem consequentemente ao neoliberalismo. O PCP e o BE. São forças políticas diferentes com histórias e percursos muito diversos, mas politicamente convergentes neste particular momento histórico. E a acção dessas forças nota-se, como há décadas já não acontecia, na presente campanha eleitoral, a ponto de elas influenciarem decisivamente a linguagem dos seus opositores.
Os partidos que soçobraram ante o neoliberalismo, como o PS, aliás à semelhança do que aconteceu com todos os partidos social-democratas europeus, passaram, mal a crise se desencadeou, porventura por razões que a psicanálise ajudará a compreender melhor do que a ciência política, a ter um discurso claramente anti-neoliberal e defensor de uma “economia social de mercado”, procurando desse modo, pela linguagem, antecipar nas consciências um efeito político que somente a prática politica poderia consubstanciar. Os partidos de direita, que igualmente favoreceram o neoliberalismo, mesmo quando a sua matriz conservadora e reaccionária apontava noutro sentido, como o PSD e o CDS, embora com matizes diferentes, deixaram com a crise de ter condições sociológicas para apresentar abertamente um programa neoliberal nas áreas onde o queriam implementar: segurança social, saúde, educação.
Quem ouve hoje o CDS e o PSD percebe que há uma agenda escondida, mas percebe também que a força de rejeição do modelo é culturalmente tão forte que os obriga a uma significativa mudança discursiva. Este fenómeno é mais importante do que parece já que é por via dele que, gradualmente, as forças até agora dominantes poderão perder a hegemonia ideológica. Hoje, o CDS, o PSD, o próprio PS, em algumas áreas, não têm condições sociológicas para apresentar ao eleitorado os programas que gostariam de realizar. Isso foi notório no debate de ontem entre Jerónimo e Portas, como também já tinha sido no debate entre Louçã e M. Ferreira Leite, embora, em algumas áreas, de forma menos disfarçada, por falta de jeito da dirigente do PSD.
É a esquerda que tem obrigação politica de criar condições para impõr uma nova ordem económica, não se vê é como, já que esta teria que ser assumida pelos partidos sociais/democratas, só que estes com a implusão do muro também foram apanhados pelo neoliberalismo, e ainda andam grogues. Assim sendo, resta-nos assistir à recauchutagem do neoliberalismo, até ao próximo capítulo.
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