quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O ARTIGO DE COSTA ANDRADE SOBRE AS ESCUTAS



UMA DIVERGÊNCIA DE FUNDO

Costa Andrade, eminente penalista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, publica hoje um importante artigo, no jornal “Público”, sobre a relevância das escutas em que intervenham as entidades que gozam da prerrogativa estabelecida pela alínea b) do n.º2 do art. 11.º da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, ou seja, sobre a relevância da intercepção de conversas ou comunicações, ordenada pelo juiz de instrução, em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-ministro.
Embora eu esteja de acordo com a validade das escutas ordenadas pelo juiz de instrução, nos termos do artigo 187.º, do Código Processo Penal (CPP), em que intervenham as entidades acima referidas, contanto que as mesmas sejam relevantes para o processo sob investigação (tanto para acusação como para defesa do suspeito) ou indiciem a prática de crime (susceptível de originar o procedimento das escutas) por parte da entidade fortuitamente interceptada, de forma alguma concordo com a fundamentação e latitude com que no texto de Costa Andrade essa validade é defendida.
Diz Costa Andrade, no essencial, que “uma escuta, autorizada por um juiz de instrução no respeito dos pressupostos materiais e procedimentais prescritos na lei, é, em definitivo e para todos os efeitos, uma escuta válida”. E que não há na terra nem no céu - embora para o céu pareça admitir alguma excepção - qualquer possibilidade jurídica de converter uma escuta válida numa escuta inválida. Sendo questionável que tal não possa em alguns casos também acontecer na terra, mas não querendo, a este propósito, entrar nessa discussão, eu acho que esta afirmação tem que ser devidamente matizada para que possa no contexto normativo em que se integra estar de acordo com a lei.
Há duas coisas que um jurista em democracia não pode fazer: uma, é considerar que a lei não existe, quando não concorda com ela; outra, é ter por completamente irrelevante a vontade do legislador histórico, nos casos em que ela não deixa dúvidas.
E, de facto, há na Lei n.º 47/2007, que reformou o Código de Processo Penal, uma disposição que inequivocamente atribui ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça competência para “Autorizar a intercepção, gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro Ministro e determinar a respectiva destruição nos termos dos artigos 187.º a 190.º”, do CPP. Logo, há uma norma que não pode deixar de ser tomada em conta.
E também não há qualquer espécie de dúvida que, na discussão que antecedeu a aprovação da lei, o legislador, confrontado perante duas redacções – uma, a acima transcrita e outra que circunscrevia a competência do Presidente do STJ às conversações ou comunicações “efectuadas” por aquelas entidades – optou voluntária e conscientemente pela formulação mais ampla.
Se quanto à obrigação de respeitar a lei, por maiores que sejam as nossas divergências com ela, não há que tecer grandes considerações, tão evidente é para todos o princípio, contanto que se não esteja no domínio da resistência legítima, o que não é manifestamente o caso, já quanto ao respeito pela vontade do legislador histórico convém em breves palavras dizer o essencial sobre o assunto.
De facto, em regime democrático (insisto), nem a “intenção reguladora”, nem a vontade do legislador podem ser completamente indiferentes ou irrelevantes na interpretação da lei.
Quando falámos da vontade do legislador histórico não estamos necessariamente a falar do autor material da lei - aquele que é encarregado da sua feitura -, mas fundamentalmente, como acontece neste caso concreto, do legislador formal - aquele que aprova a lei. Se é certo que na maior parte dos casos, ou, pelo menos, em muitos deles, o legislador formal, quando vota favoravelmente um texto, unicamente aprova a tendência global da lei, confiando na conformidade do texto com os fins por ele visados, outros casos há em que o legislador por querer inequivocamente esclarecer um regime antes controvertido ou estabelecer novas exigências numa normação já vigente formula com rigor a sua vontade normativa, utilizando expressões coincidentes com o sentido daquela vontade. E esta vontade não pode deixar de ser tomada em conta, pelo menos até onde puder sê-lo.
E é isto que Costa Andrade não faz. Costa Andrade não perde um minuto na interpretação da alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º acima citado por entender que tal texto deve pura e simplesmente ceder perante a “validade” das escutas ordenadas pelo juiz de instrução, ordenadas nos termos do artigo 187.º do CPP. Aparentemente, nem sequer concede que haja um conflito entre os respectivos âmbitos de aplicação das duas normas. Ou, se o aceita, resolve-o mediante a prevalência em todos os casos da norma do artigo 187.º do CPP sobre a do artigo 11.º da Lei n.º 48/2007. Só que esta forma de ver as coisas, no fundo, equivale a considerar aprovada a proposta de redacção derrotada aquando da votação da lei. E isto o intérprete não pode fazer por maior que seja a sua discordância relativamente à lei existente.
Por isso, mantemos intangíveis as conclusões aqui defendidas em escritos anteriores, bem como as fundamentações em que se estribam. De uma forma juridicamente mais elaborada do que no anterior post sobre este assunto, direi que a técnica juridicamente admissível para manter a vigência das duas normas e respeitar tanto quanto possível os respectivos âmbitos de aplicação consiste numa “redução teleológica” (e não uma interpretação restritiva) da norma que estabelece uma competência especial para as “entidades sujeitas a regime especial” (alínea b), do n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º 48/2007), de modo a que nela não caibam situações que, por serem idênticas a outras que cabem no âmbito da norma do artigo 187.º do CPP, devem ficar sujeitas ao mesmo regime destas.
Assim: as escutas autorizadas pelo juíz de instrução segundo os pressupostos materiais e procedimentais prescritos na lei são válidas no domínio da sua competência. Fora deste domínio são inequivocamente nulas, como a lei, de resto, estabelece. Daqui logo resulta que nem todas as escutas autorizadas pelo juiz de instrução são válidas, porque nem todas estão cobertas pelo âmbito de aplicação da norma do artigo 187.º do CPP.
Saber até onde vai o âmbito de aplicação daquela norma é algo que resulta da inteligente interpretação da lei no contexto do ordenamento jurídico a que pertence e dos princípios que fundamentalmente o informam.
É este contexto, assim entendido, que levará a que se devam considerar no âmbito de competência do juiz que as ordenou, as “escutas” em que fortuitamente intervenham as entidades que “beneficiam do regime especial”, sempre que a sua nulidade constituísse uma protecção excessiva das ditas entidades, contrária aos princípios fundadores do sistema jurídico ou representasse, como seria sempre o caso, uma vantagem (ou desvantagem) especial do "alvo" das escutas relativamente ao comum das pessoas.
Para evitar essa protecção excessiva, contrária aos princípios fundamentais do sistema jurídico ou a atribuição de uma vantagem (ou desvantagem) injustificada, devem considerar-se dentro do âmbito de aplicação do artigo 187.º e da competência do juiz comum de instrução, logo válidas, as conversações ou comunicações em que intervenham as entidades referidas no artigo 11.º, acima citado, se, primeiro, forem relevantes para a descoberta da verdade no processo sob investigação; segundo, se delas resultarem indícios de envolvimento da entidade sujeita a regime especial na prática de factos ilícitos criminalmente puníveis, susceptíveis de originar o procedimento das escutas. Fora destes casos, as escutas serão sempre nulas, por não estarem compreendidas no âmbito de aplicação da norma ao abrigo da qual foram autorizadas.
Esta me parece ser a interpretação mais coerente com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2008, e que salvaguarda, tanto quanto pode ser salvaguardada, a “intenção reguladora do legislador”.
Outra forma de manter quase por inteiro o âmbito de aplicação das duas leis aparentemente conflituantes seria dizer que todas as escutas ordenadas pelo juiz de instrução são válidas, seja quem for o interlocutor interceptado nas conversações ou comunicações com o suspeito – o “alvo das escutas”. E acrescentar de seguida, que tais escutas, apesar de válidas, seriam ineficazes sempre que nelas interviesse uma entidade “sujeita a regime especial”, ficando a sua eficácia dependente do juízo que sobre as mesmas fizesse a entidade competente para ordenar a sua intercepção – o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Esta seria uma fórmula aparentemente cómoda de resolver o problema – algo que não deve ter andado muito longe da mente do Procurador-geral da República ao decidir enviar as escutas ao Presidente do STJ para "validação"– mas errada. Primeiro, porque não é essa a consequência jurídica que o Direito estabelece para a falta de competência; e, em segundo lugar, porque a lei diz expressamente que são nulas as escutas que não obedeçam aos requisitos e condições por ela estabelecidos.
Com todo o respeito e admiração, devo dizer que Costa Andrade não abordou o problema em toda a sua complexidade, porventura por ter entendido que estava perante “coisas simples duma coisa complexa”. Só que as coisas simples são mais complexas do que parecem, e somente depois de esclarecida a sua complexidade se tornam simples as que pareciam complexas…
Claro que existe uma diferença abissal entre o texto de Costa Andrade e o de outros professores de Direito que actuam como simples comissários políticos…

8 comentários:

  1. Pareceu-me que tens razão. Isto para quem não percebe patavina de direito e para mais, dada a hora, a quem já está praticamente a dormir.Mas quem fala assim não é gago...

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  2. Também me parece óbvio que as escutas de Aveiro não são nulas na parte em que "apanharam" o 1º Ministro acidentalmente (pois foi mero interlocutor do "alvo"). Mais: nem são nulas no processo de Aveiro nem para efeitos de instauração de procedimento criminal contra o Sócrates e, depois, NESSE procedimento.

    Mas, agora que estamos na JURITEIA, fico com uma dúvida depois de ler o post do CP:
    Quem é que, segundo o Correia Pinto, DECIDE, no 2º caso, que das escutas resultam, ou não, indícios de envolvimento da entidade sujeita a regime epecial na prática de factos ilícitos susceptíveis de originar procedimento de escutas? Por outras palavras: qual é o Tribunal que decide, EM 1ª INSTÂNCIA, nesta fase do processo (INQUÉRITO--e o mesmo sucederia se estivéssemos na instrução), se esse pressuposto se verifica ou não, para efeitos de instauração de OUTRO procedimento criminal? Indo directo ao (para mim) busilis e ao caso concreto: qual era, para Correia Pinto, o Tribunal competente para decidir (em 1ª instância, repito) se as escutas em que interveio o Sócrates eram ou não nulas para efeitos da sua utilização FORA DO PROCESSO DE AVEIRO? Era o Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro ou o S.T.J.?
    Jurista

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  3. Não percebi o último parágrafo... ;-)

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  4. Foi escrito à pressa e cheio de sono.

    Vou dar um exemplo para ser mais claro:
    Suponhamos que, ao receber as escutas mandadas por Aveiro, o PGR tinha, com base nelas, instaurado procedimento criminal contra o Sócates e que este, ao ser confrontado com elas, arguia a sua nulidade.
    O que eu pergunto ao Correia Pinto é o seguinte: as escutas seriam, nesse caso, julgadas válidas porque o Juiz de Aveiro já assim o decidira ou, essa decisão não tem eficácia nesse NOVO processo e, portanto, teria de ser o STJ a decidir o incidente deduzido pelo Sócrates?
    Para mim teria de ser o STJ, de onde concluo que nem está correcto o fundamentalismo (jurídico) de Costa Andrade nem o brilhante exercício hermeneutico do nosso amigo Correia Pinto (a não ser que o não tenha entendido, pois àquela hora da noite tudo é possível e hoje ainda não o reli).
    Jurista

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  5. Ao meu Amigo JVC
    A propósito do último parágrafo: tu me chamaste a atenção para ele...
    Abraço
    CP

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  6. Ao Meu Amigo Jurista:
    Julgo que há duas questões. Sobre uma delas já emiti a minha opinião; sobre a outra não me pronunciei, nem sei bem se serei capaz.
    Vamos à primeira: quem decide sobre se há ou não indícios de crime susceptível de originar o procedimento das escutas - aquilo a que Costa Andrade chama os crimes de catálogo - é o PGR. O que significa, se assim decidir, que as escutas são válidas. E em consequência dessa decisão, instaura o respectivo procedimento criminal, como em relação a qualquer outra pessoa. Como se trata de suspeita de crime susceptível de dar lugar ao procedimento das escutas, se quiser acompanhar a investigação daquele procedimento, tornando o indiciado "alvo" de escutas, tem - tratando-se de quem se trata - que solicitar a autorização do Presidente do STJ, que, como qualquer outro juiz, a dará ou não em consequência do juízo que ele próprio fizer da respectiva fundamentação. Daqui para frente tudo se passa como na generalidade dos casos.
    Ou seja, o "alvo" não sabe que está a ser escutado - pois como a gente sabe só certos "alvos" do futebol é que sabiam que estavam a ser escutados ou que iam ser escutados - mas este, de que estamos, a falar não sabe. Tudo está em segredo de justiça, para defesa da investigação. Se não sabe não pode recorrer. Mais tarde, quando souber, pode recorrer como qualquer outro cidadão. Também o Vara e o Penedos podem recorrer da decisão que autorizou as escutas, se entenderem que o despacho que as autorizou não respeita o artigo 187.º e ss do CPP.
    Bem, mas o que o meu Amigo Jurista, chegados aqui, quer saber é para quem é interposto o recurso da entidade "sujeita a regime especial". A tanto não chegam os meus nulos conhecimentos processuais, pois como o meu Amigo Jurista já percebeu, eu navego mais nas águas da Teoria do Direito, onde me entendo razoavelmente qualquer que seja a natureza da ondulação. Agora, no caso que deixei sob interrogação, eu não estou seguro que a competência do Presidente do STJ neste processo vá além do que dispõe o artigo 11, 2, b) da Lei 448/2007, tanto mais que a competência não se presume...
    Reconheço que a questão é muito interessante e bem gostaria de ler mais um comentário sobre o assunto do meu Amigo Jurista.
    Abraço
    CP

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  7. Correcção de duas gralhas, de virgulas
    "... - mas este, de que estamos a falar, não sabe"
    "Se não sabe, não pode recorrer"

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  8. Já vi que houve aqui um mal entendido entre nós, pois o Correia Pinto utilizou a palavra "decidir" num sentido mais amplo do que a minha leitura alcançava. Eu lia-a sempre no sentido juridicamente mais estricto: exercício da actividade jurisdicional do juiz.

    Quanto às questôes processuais:
    Se o 1º Ministro cometer um crime no exercício das suas funções (é o caso, se fôr verdade o que lhe é imputado)é julgado pelo Pleno das Secções Criminais do STJ, com recurso para o Plenário do STJ.
    Portanto, o processo corre os seus termos, inquérito incluido, no STJ.
    Jurista

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