AFINAL, QUAL É A POSIÇÃO PORTUGUESA?
Mais ou menos, desde 1989/91, tornou-se uma prática corrente do vocabulário diplomático politicamente correcto a exigência de regimes democráticos na América Latina, como condição da sua aceitação pela “comunidade internacional”, dominada pelos padrões valorativos do Ocidente.
Por outras palavras, quem não governasse segundo os procedimentos de legitimação típicos da democracia representativa de tipo ocidental era ostracizado. À época acreditava-se que Cuba, privada da ajuda da União Soviética, em domínios vitais como os da energia, acabaria por sucumbir, mais tarde ou mais cedo. Mas aquele discurso servia também para pressionar Pinochet a adoptar uma qualquer forma de regime que formalmente se assemelhasse à democracia, de modo a calar de vez a voz daqueles que apontavam o execrável regime do ditador chileno como prova indiscutível da hipocrisia do discurso das grandes democracias ocidentais de defesa das sociedades livres, de mercado, contrapostas ao regime das sociedades totalitárias do leste europeu ou nelas inspirados.
Com o passar dos anos a América Latina foi-se efectivamente democratizando e muitos povos que até então sempre tinham sido dominados pelas oligarquias locais, que governavam em permanente conúbio com Washington, foram adquirindo voz e poder, a ponto de em vários países terem feito chegar ao poder, pelo voto, os seus mais genuínos representantes.
Quando o movimento logrou alargar-se, sempre com base no voto popular, a vários países e os respectivos governantes foram tomando medidas condizentes com o interesse dos eleitores, Washington, que, por força das múltiplas guerras em que se meteu, havia descurado o “acompanhamento político” desta região do mundo, deparou-se com uma situação nova na sua história. Pela primeira vez, em mais de dois séculos de independência, a América só contava com um aliado absolutamente fiel na América Latina: a Colômbia. Além de estar a braços com uma grave crise interna, motivada pela existência de um movimento guerrilheiro forte e pelo narcotráfico em crescimento exponencial, o regime colombiano não goza de qualquer prestígio junto dos “irmãos latino-americanos”, como comprova a recente rejeição em bloco do acordo celebrado com os americanos para a instalação (ou livre acesso), em território colombiano, de bases militares americanas.
Este movimento latino-americano de emancipação pelo voto popular nunca foi bem aceite por Washington, que via na sua propagação uma verdadeira ameaça à hegemonia secularmente exercida sobre a região. Com efeito, a par deste movimento emancipador, um outro de não menores consequências igualmente se desenvolveu, porventura de forma mais duradoira: a afirmação do Brasil como grande potência emergente e regional. Doravante, não mais se poderá lidar com a América Latina sem ter em conta o Brasil.
Só que, enquanto em relação aos países que o Ocidente considera influenciados pelo que depreciativamente chama o “chavismo”, ainda se mantém viva a esperança de por diversos meios os fazer regressar à anterior situação, salvando tanto quanto possível as aparências, já relativamente ao Brasil, tem-se tentado, até agora em vão, por via de uma política mais suave e de falsa adulação, levá-lo a aceitar a ideia de que os seus interesses grandes interesses estratégicos coincidem com os do mundo ocidental.
Referindo-se à Venezuela e seus mais próximos aliados, a anterior administração americana, que não primava pela subtileza, chegou a dizer, pela voz de Condoleezza Rice, que a eleição por processos democráticos não constituía um critério indiscutível de legitimação democrática. De facto, para o pensamento neo-conservador americano o único critério seguro de legitimação democrática consiste na aprovação do respectivo regime político por Washington!
Mais tarde ou mais cedo, a crise de “legitimação democrática” iria estalar. E, como sempre, estalou pelo lado mais fraco.
O golpe das Honduras nunca beneficiou de uma reprovação inequívoca da comunidade internacional (ocidental) nomeadamente dos Estados Unidos. A condenação fez-se com a atribuição de uma espécie de “meia-razão” aos golpistas. Por outras palavras, se os golpistas desrespeitaram a legalidade democrática, outro tanto teria feito Zelaya por ter tentado candidatar-se a uma “reeleição proibida”. Obviamente que os factos são outros e situações idênticas às de Zelaya é o que mais há na América Latina.
De forma que a grande questão que se punha, e que mantém toda a actualidade, era a de saber se a comunidade internacional, nomeadamente os Estados Unidos e as grandes potências da União Europeia, estavam dispostos a fazer uma pressão forte sobre os golpistas com vista à restituião do poder usurpado ao seu legítimo detentor, Zelaya, ou se, pelo contrário, com manobras dilatórias e contemporizações de toda a ordem iriam deixar o tempo passar de modo a que o princípio da efectividade acabasse por impor as suas regras.
A estratégia usada foi a segunda, como desde muito cedo se percebeu e por muitos foi denunciada. Há, porém, quem se mantenha firme na defesa da legalidade democrática, como é o caso do Brasil, que se recusa a aceitar a legitimidade e consequente validade das eleições presidenciais realizadas no actual contexto.
Ora a cimeira ibero-americana a decorrer em Lisboa vai ocupar-se do tema. Apesar de se tratar de uma matéria que, com excepção da Colômbia e, eventualmente, do Peru e de uma ou outra república da América Central, não suscita controvérsia, depreende-se das palavras do Ministro dos Negócios Estrangeiros, que Portugal, a quem cabe a presidência da reunião, não tem posição pública sobre o assunto.
Espantoso! Até a própria Espanha sempre tão reticente relativamente a quem, na América Latina, a não apoia a cem por cento, pede à União Europeia que não reconheça as eleições. Mas Portugal tem pudor em tornar pública a sua posição! E lá temos que voltar ao velho princípio kantiano: tudo o que (em direito público) não puder publicamente afirmar-se é certamente ilícito ou ilegítimo!
Mais valia a Luís Amado dizer que Portugal se esforça por encontrar uma declaração comum com a qual os Estados Unidos possam concordar…
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