quinta-feira, 22 de julho de 2010

A PROPOSTA CONSTITUCIONAL DO PSD

AGORA VAMOS ENTRAR NA SEGUNDA FASE, A DA MISTIFICAÇÃO E DE ALARGAMENTO DO "CONSENSO"

A proposta de revisão constitucional do PSD não tem em vista, no imediato, uma alteração da Constituição completamente coincidente com o que nela se propõe, já que as modificações pretendidas do texto constitucional não têm, em princípio, grandes hipóteses de serem aprovadas, pela maioria exigível para poderem vingar, nos termos em que foram apresentadas.
Trata-se antes de uma proposta destinada a fazer o seu caminho e a auscultar as reacções que vêm a público que, como se sabe, são apenas uma ínfima parte das que realmente se manifestam. O que a nova liderança do PSD pretende é trazer os temas nelas contemplados para a ribalta da discussão política, nomeadamente os que se referem aos direitos fundamentais. O partido conta, para o efeito, com o apoio incondicional do patronato cujos interesses defende, e por via deste da amplificação dos seus pontos de vista nos diversos meios de comunicação social, quer por via dos jornalistas quer dos comentadores por conta.
E está-se mesmo a ver como a conversa se vai desenvolver. Por um lado, insistindo na tecla de que é preciso abandonar a herança de um passado retrógrado para se estar à altura da “grandiosidade” dos tempos que correm e, por outro, que as propostas apresentadas estão longe de poder ser entendidas com o sentido e alcance que a esquerda lhes atribuiu.
Vai-se insistir na ideia de que se não pretende liberalizar o despedimento, mas apenas introduzir uma cláusula geral susceptível de contemplar um conjunto de situações razoáveis que o conceito de justa causa não permite compreender em virtude da sua cristalização pela prática jurisprudencial de várias décadas. E claro que se vai omitir que o conceito de “razão atendível” é, em virtude dos próprios termos utilizados e por força da simples mudança que ele opera, um conceito fundamentalmente destinado a uma densificação unilateral dos interesses em presença. É atendível o motivo que, do ponto de vista da empresa, o justifique. A empresa passa a ser neste entendimento o local por excelência de prevalência em toda a linha dos interesses do capital. Não interessa, portanto, insistir na tecla de que o conceito não permite o despedimento arbitrário ou mesmo discricionário, porque o que verdadeiramente está em jogo é a substituição de um conceito que atendia aos interesses de ambas as partes, com leve predomínio dos interesses da parte mais fraca, por um conceito cuja apreciação, insiste-se, ficaria sujeita a uma avaliação puramente unilateral dos interesses atendíveis do ponto de vista do patrão.
E é isto o que o capital quer. Só mesmo nas manifestações mais soezes de certos empresários trogloditas será possível encontrar algum eco de manifestações mais radicais.
No domínio da saúde, a tentativa de fazer passar a proposta apresentada vai assentar em duas ideias muito simples. A primeira é a de que ninguém ficará privado de cuidados médicos por falta de meios económicos (não é bem de falta de dinheiro, porque na proposta do PSD não será “atendível” a falta de liquidez de quem a possa alcançar à custa, por exemplo, da venda do património) e a segunda é a de que a situação económica do país e as finanças do Estado não suportam um SNS gratuito, ou tendencialmente gratuito, nomeadamente em relação àqueles que o podem pagar.
Aqui vai funcionar o argumento demagógico de que se não justifica que o Estado subsidie os ricos à custa dos impostos de quem trabalha. É claro que este argumento só poderá impressionar quem verdadeiramente não compreenda a importância do que está em jogo e a falácia de que o PSD se serve para transferir para o sector privado somas astronómicas de dinheiro à custa da degradação do sector público. Diga-se marginalmente que para este efeito já não terá qualquer valor o argumento que Cavaco e outros da mesma escola têm frequentemente usado a respeito do impulso que o Estado tem prestado à multiplicação dos investimentos em “bens não transaccionáveis”.
Antes de continuar, conviria também dizer que o PSD, se fosse realmente coerente com o que diz serem as verdadeiras razões das suas propostas, deveria alterar completamente o sistema de financiamento de certas prestações ou serviços que até agora têm estado a cargo do Estado. Por exemplo: que justificação para que os serviços de polícia sejam exclusivamente pagos pelo orçamento de Estado? Dentro da lógica do PSD, a polícia rodoviária deveria ser paga por quem circula nas estradas, pagando cada um tanto mais quantas mais viaturas tiver em seu nome. E a polícia que defende o património das agressões alheias igualmente deveria ser paga por quem é titular de mais bens e tem mais interesses a defender. Pois faz lá algum sentido que quem vive exclusivamente do seu salário, insuficiente para fazer face às despesas elementares, ou mesmo quem viva mais à larga, mas sem património próprio, veja todos os meses ser-lhe retirada uma parcela significativa do que ganha para pagar a segurança do património de quem muito tem? E os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum.
É claro que nestes casos já não funciona o argumento dos ricos e dos pobres. Funciona na saúde, porque o que o PSD pretende é, por um lado, transferir para o sector privado todos os cuidados de saúde que não impliquem grandes investimentos e sejam altamente lucrativos, pondo o seu financiamento a cargo dos respectivos utentes e, por outro, transferir para a gestão privada os cuidados de saúde que exijam grandes financiamentos, com vista à “racionalização” desses cuidados. No sector público ficaria um sistema residual e precário de saúde ao qual apenas acudiriam aqueles cuja ausência de meios de todo os impossibilitasse de recorrerem ao sistema privado. Um serviço que tenderia a degradar-se cada vez mais com o andar dos tempos por legítima pressão daqueles que, pagando impostos, deixaram de a ele ter acesso em regime de gratuitidade.
E o mesmo se diga relativamente à educação e à segurança social. Os valores do individualismo e do salve-se quem puder são a verdadeira matriz ideológica da proposta do PSD. Uma matriz que assenta como sopa no mel à sociedade civil típica da sociedade capitalista tal como Marx a descreveu, de certo modo a partir do estado de natureza de Hobbes.
A grande incógnita que esta proposta de revisão constitucional levanta, deixando de lado a questão da distribuição de poderes entre os órgãos de soberania – aliás juridicamente formulada com os pés, muito ao estilo dos políticos oriundos das jotas, profissionais da política desde tenra idade e com um “cursus deshonorum” repleto de insucesso escolar -, é a posição que o PS irá assumir.
Aparentemente, pelas palavras claras que Silva Pereira hoje nos leu, haverá uma rejeição. Mas a experiência – com a qual o PSD conta – diz-nos que todas as revisões constitucionais, mesmo as mais ousadas, foram feitas com a colaboração do PS. Para nos dar razão ainda hoje Vitorino, que, como se sabe, tanto poderia estar no PS como no PSD – é apenas uma questão de rentabilidade do investimento – nos veio dizer que a proposta do PSD só poderia ser aceite (ou ter viabilidade) se aquele partido fizesse a prova de que a Constituição, tal como está, constitui um entrave ao desenvolvimento do país. Basta que mais alguém no PS, na hora própria, ponha a questão nestes termos para que rapidamente se comece a formar dentro do partido uma corrente de opinião favorável ao “diálogo constitucional” com o PSD.
E depois, de cedência em cedência, não teremos rigorosamente aquilo que o PSD propõe, mas algo muito próximo feito com a tradicional perfídia de quem aparentemente deixa intocáveis os princípios, cada vez com menos substância, dada a multiplicidade de situações em que se torna legítimo postergá-los. E quando a coisa estiver quase cristalizada, lá teremos a “esquerda” do PS a carpir mais esta cedência, sempre naquele estilo de quem assiste de fora ao que se passou e apenas toma conhecimento do resultado, como espectador.
Oxalá nos enganemos…

2 comentários:

  1. Nos últimos tempos tem sido invocado, por tudo e por nada, a necessidade de corrigir a orientação dos investimentos para os bens "não transaccionáveis", dando primazia aos transaccionáveis. Mas, numa converseta de TV, o dr Campos Cunha manifestava uma discordância académica sobre essa dicotomia (transaccionáveis vs não transaccionáveis). Agora ficamos a perceber a lógica, aparentemente contra a corrente, do dr Campos Cunha; A produção dos malfadados "bens não transaccionáveis" também será virtuosa se for sujeita à pura lógica do Mercado.
    LG

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  2. Mais uma brilhante análise.

    Porém, acho que houve 2 outros objectivos (mais imediatos que os que descreveu, mas também importantes) que esta proposta permitiu que Passos alcançasse:

    1º) O "distanciamento" mediático do PSD face ao PS (que, aliás, pelo que se tem visto, conveio aos 2 partidos, especialmente após a aprovação do PEC, e do futuro acordo - terá de vir - acerca do próximo Orçamento de Estado);
    2º) A afirmação pública de Passos Coelho como líder do PSD.

    O 2º objectivo está à vista. Antes de ser líder do PSD, os poucos que se lembravam de Passos Coelho como líder da JSD consideravam-no como "o rapaz do Ângelo". Agora, é conhecido por muito mais gente na opinião pública, muito embora ainda continue a ser "o rapaz do Ângelo".

    O 1º) objectivo foi claramente assumido pelo próprio nas declarações que ouvi fazer à Antena 1, e que estão no seguinte link:

    http://tv2.rtp.pt/noticias/index.php?headline=46&visual=9&tm=9&t=Passos-Coelho-diz-que-revisao-constitucional-mostra-que-PSD-e-diferente-do-PS.rtp&article=362241

    Antes de ter lido esta sua mensagem, ouvi, também na Antena 1, a opinião de Miguel Portas sobre este assunto, que me pareceram interessantes, e as quais estão no link abaixo (para quem tenha paciência):

    http://mp3.rtp.pt/mp3/wavrss/at1/922809_70516-1007231052.mp3

    Repare que os últimos críticos desta proposta que têm aparecido são pessoas ligadas ao PS, nomeadamente Santos Silva (o actual Sr. Ministro da Defesa, no estilo truculento que todos conhecemos), e, curiosamente, Vitorino. Eis os links (para quem tenha paciência):

    Santos Silva - http://www.ionline.pt/conteudo/70388-augusto-santos-silva-e--insustentavel-leveza-do-dr-passos-coelho

    António Vitorino - http://tv2.rtp.pt/noticias/index.php?headline=46&visual=9&tm=9&t=Gomes-Canotilho-Reis-Novais-e-Antonio-Vitorino-contra-revisao-constitucional-do-PSD.rtp&article=362242

    Cavalgar na onda dos outros é próprio dos organismos sem ideias. E é o que me parece que o PS está a fazer, ao virar-se para o seu eleitorado de esquerda, e tentar afirmar-se como "o mal menor", num claro apelo ao "voto útil" (há, aqui, já uma certa "contagem de espingardas").

    Curioso é o facto de, pouco tempo após a publicação da proposta do PSD, o PS organiza uma reunião onde aparece Gomes Canotilho junto com António Vitorino e a um professor da Universidade de Lisboa que não retive o nome, homens marcadamente do PS. Como é que Gomes Canotilho se deixou arrastar para esta reunião? Será que não terá visto o lote de oradores que o acompanharia nesta reunião? Bem, já nada me surpreende, desde que o seu grande "companheiro de estrada" VM tem feito o percurso político que tem feito ...

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