PARA JÁ, SITUA-SE A SUL
A revolta de Tunes, que rapidamente se estendeu a todo o país, a luta gloriosa da juventude egípcia, no Cairo, em Alexandria, no Suez, enfim, por todo o lado, travada em condições muito difíceis contra forças apetrechadas com os mais sofisticados meios de repressão, o seu alastramento gradual aos demais países árabes do Mediterrâneo e do Golfo, são antes de mais a vitória de quem decide tomar o futuro nas próprias mãos e resolve iniciar a luta no campo onde primeiramente ela tem de ser travada: contra aqueles que na sua própria terra os oprimem, exploram e fazem do ofício de governar uma actividade cleptocrática!
O resto virá com o tempo e dependerá dos comportamentos e atitudes que forem sendo tomados perante o facto consumado…
Mas as revoltas do povo árabe contra os regimes opressores, apoiados pela hipocrisia ocidental, são também a mais espectacular falência das políticas euro-atlânticas no Mediterrâneo e no Golfo, do diálogo euromediterrânico e de todas essas tretas inventadas pelos ocidentais para manter no poder quem por lá faça o seu jogo e garanta a satisfação dos seus interesses, com completo desprezo pelas políticas internas, desde que, quem governa, controle a situação e mantenha a “estabilidade”, simples sinónimo de acção política, no essencial, concordante com os interesses euro-americanos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, de Teerão a Riad, de Riad ao Cairo e do Cairo a Rabat tudo foi feito para manter no poder, ou lá colocar, aqueles que continuassem a servir os interesses ocidentais, independentemente das consequências que o exercício desse poder pudesse ter para as respectivas populações.
E em quase todo o lado o objectivo principal foi alcançado – primeiro, garantir o acesso às fontes energéticas em condições privilegiadas; mais tarde, neutralizar qualquer tipo de oposição institucional a Israel; por fim, eliminar os islamistas da vida política e estancar ou limitar a emigração.
Este o grande programa de “direitos humanos” institucionalizado pela “pax occidentalis” no Norte de África e no Médio Oriente.
Mas nem tudo correu sempre bem: no Irão, que não é árabe, mas no essencial sujeito às políticas para o Médio Oriente, a eliminação política de Mossadegh pela CIA na década de cinquenta, por influência determinante dos ingleses, preocupados com a violação dos direitos humanos na Anglo Iranian Oil Company, nacionalizada pelo governo nacionalista de Mossadegh, levou a uma intervenção cada vez mais determinante de Reza Pahlavi na condução do governo iraniano e à implantação de uma feroz ditadura que mantinha grande parte do povo à margem das riquezas nacionais. Cerca de três décadas mais tarde, o povo unido à volta daqueles que mantinham mais condições para se opor à ditadura, os ayatolas, num e movimento popular de grande envergadura neutralizou um dos mais poderosos exércitos do mundo, expulsou o Xá e a oligarquia que o rodeava, acabando por implantar uma República Islâmica, a qual, sob a influência de Khomeiny, se transformou num regime conservador, inspirado no islamismo reaccionário, sob o controlo político do clero.
Mais uma vez foi a assolapada paixão dos ocidentais – americanos e ingleses - pelos “direitos humanos” e pela “democracia” que levou ao derrube de um regime democrático, laico, liderado por um homem de formação ocidental, antiimperialista, que lutava pelo restabelecimento da dignidade de uma pátria milenária. De tudo a CIA e os ingleses se serviram para o derrubar, desde o apoio aos ayatolas reaccionários, cuja acção Mossadegh havia circunscrito ao puro plano religioso, até à compra e suborno de criminosos de direito comum, passando pela cumplicidade de sectores influentes da polícia e do exército. Mossadegh, forte nas suas convicções e seguro do apoio popular, não acreditando na traição americana, nunca tendo usado a força para neutralizar os traidores internos, quando o podia ter feito, acabou sendo vítima da sua própria ingenuidade.
O que se passou depois do derrube do Xá até hoje é conhecido e não merece muitos comentários. Nunca os ayatolas teriam chegado ao poder se não tivessem tido, como tiveram, a possibilidade de capitalizar a seu favor o descontentamento popular contra a ditadura e a polícia política, bem como o ressentimento contra a conspiração anglo-americana, principalmente americana, já que quanto aos ingleses não acalentavam qualquer ilusão.
No Iraque foi o que se viu. A mesma acrisolada paixão pelos “direitos humanos” e pela “democracia” levou Bush, Blair e seus lacaios a invadir um país, que até já tinha sido aliado dos americanos na guerra contra os ayatolas, transformando-o num campo privilegiado de expansão e de recrutamento do fundamentalismo islâmico, onde, mais uma vez, a grande vítima é o povo indefeso que sofre as consequências de um acto criminoso promovido pela hipocrisia ocidental.
E os exemplos podiam multiplicar-se, desde a Arábia Saudita a Marrocos, passando pelo Egipto, tudo o que de pior imaginar se possa, todos os ditadores, autocratas, cleptocratas, foram apoiados, mantidos no poder, favorecidos, umas vezes mais pelos europeus, principalmente a França, mas também a Espanha, outras pelos americanos, sempre acolitados pelos ingleses, primeiro com o pretexto de que os respectivos países poderiam cair na “órbita soviética”, mais tarde no “fundamentalismo islâmico”, mas na realidade tudo feito, sempre e só, em defesa de interesses egoístas, às vezes até conjunturais, com completo desprezo pelos direitos e legítimos interesses das respectivas populações.
Há dois anos, Obama acendeu uma pequenina luz no discurso do Cairo, abrindo caminho para o que parecia poder ser um relacionamento diferente do Ocidente com o mundo árabe. Mas logo os grandes interesses plutocráticos, o lobby judaico e o completo alheamento europeu fizeram com o discurso não passasse disso mesmo. Um simples discurso, sem consequências.
Porém, a marcha inexorável da História faz com que a hegemonia ocidental, seja pelo poderio económico de novos concorrentes, seja pela luta dos povos oprimidos, vá gradualmente enfraquecendo, acabando inevitavelmente por se esbater. O que se está a passar no Mediterrâneo sul e logo a seguir no Golfo será, no seu sentido mais profundo, uma manifestação desse inexorável movimento que está a transformar o mundo. Incapaz de aceitar relações paritárias, de cuidar da defesa dos seus interesses sem ser num quadro hegemónico, esta visão ocidental do mundo, iludida pela força bélica que julga dispor, na realidade incapaz de compreender as simples evidências, caminha para um triste, mas inevitável, fim.
Ainda agora, no estertor dos regimes ditatoriais opressores, conhecidos coveiros do mundo ocidental – Blair, Hillary Clinton, Sarkozy, Merkel e tantos e tantos outros, alguns nem citados merecem ser pela pequenez da sua influência – multiplicam-se na prodigalização de conselhos que permitam manter no poder aqueles a que chamam “líderes árabes moderados”.
Que vergonha, que hipocrisia, que nojo suscitam estes políticos que nem sequer hesitam em recorrer a um dos conceitos fundadores da democracia ocidental, conquistada pelo povo, a moderação, na concepção montesquiana do termo, para, em nome dos seus inconfessáveis interesses, fazer a defesa do seu contrário. Para eles a “moderação”, e tudo o que o conceito implica na filosofia política ocidental, não passa de um instrumento para usar de acordo com as conveniências, sempre com total desprezo pela situação daqueles que deveriam ser os grandes beneficiários do poder moderado no sentido mais amplo que o conceito abarca!
Por isso, não há outra atitude que não seja a de estar incondicionalmente ao lado dos povos que do Mediterrâneo ao Golfo lutam pela sua dignidade contra os opressores internos e externos!
Essa luta acabará por favorecer, a Norte, todos os que lutam por um mundo diferente!
O que escreve é, também para mim, uma evidência, nomeadamente a hipocrisia "ocidental". Mas quanto aos ganhos, inclusive para os próprios povos, desta hipotética libertação estou bem mais céptico. Atente-se num, um único dado; a evolução demográfica de todos estes países torna muito difícil avançar sustentadamente nos diversos campos do desenvolvimento social (saúde, emprego,etc.) mesmo os que dispõem de petróleo. O que se passou há anos na Argélia da "gloriosa" FLN intrigou muita gente de esquerda ( Manuel Alegre deu uma explicação mas que quando lá esteve não antevira). Para as "democracias" foi um sobressalto com a FIA a ganhar com regras civilizadas e lá tiveram que meter a democracia entre parênteses até ver ..
ResponderEliminarlg
Com discordâncias muito pontuais ou, principalmente e mais exatamente, dúvidas e incertezas, subscrevo o essencial, como escrevi num post antes de ter lido este.
ResponderEliminarO aspeto central que me levou à escrita desse tal post foi o que levantas no último parágrafo: isto ajuda à nossa luta, no lado norte. Mas que luta?...
Há 20 ou 30 anos andou por aí um livro com o título "A granada desencavilhada" cuja ideia central foi sobranceiramente recebida pelo "politicamente correcto" e pela esquerda em particular já que se tratava de mais um tremendismo malthusiano, até porque, para esta, havia uma solução única que decorria de uma análise "científica" dos problemas. O Egipto em 40 anos passou de 30 para 80(?)Mh, a Argélia de 10 para 40 etc. etc. Com esta progressão demográfica, que entre os muçulmanos não recua mesmo quando atingem um razoável desenvolvimento educacional, o optimismo do autor do blog não vai ter concretização. Quanto aos benefícios que os trabalhadores do lado de cá vão ter (contagiados/incentivados) não sei se não se traduzirá em mais uma vaga da mundialização, ou seja, os capitalistas, cinicamente, vão virar-se para as minguantes classes médias: então vocês não acham que os vossos irmãos de classe têm direito a comer carne, ter carro etc etc, como agora dizem relativamente às "consequências" da entrada da China índia etc. ?. Sobre o dito malthusianismo é curioso que o mundo politicamente correcto é objectivamente aliada das teses mais reaccionárias da I.Católica, ayatolas, evangélicos americanos e quejandos
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