PORTAS REAGE, MAS NADA DISTO INTERESSA
Depois de alguns episódios manifestamente infelizes – a questão das reformas e o cancelamento da visita à escola António Arroio –, Cavaco tenta reganhar a simpatia do PS de Seguro e de Proença com algumas declarações contundentes sobre a política do Governo e da União Europeia.
Um dia depois de Gaspar, em substituição da Troika, mas com o seu agrément, ter exibido o “êxito” da política governamental decorrente de uma “avaliação muito positiva” da execução do Memorandum de intervenção que tem vindo a ser posto em prática com inexcedível zelo pelo Governo Passos Coelho, Cavaco apoiando-se na evidência dos factos - previsão de recessão superior à anteriormente prevista e subida em flecha do desemprego para números nunca antes alcançados, apesar de dezenas de milhares de portugueses já terem respondido à actual situação mostrando-lhe os calcanhares – e antevendo novas medidas de austeridade, atacou a covardia política dos líderes europeus, a ausência de solidariedade europeia e manifestou-se claramente contra novas medidas de austeridade que, com toda a probabilidade, o Governo se prepara para tomar este ano quando os resultados, nomeadamente do lado da receita, forem ainda piores do que as piores previsões da actualidade.
A esquerda reage com prudência às declarações de Cavaco, cada vez mais parecidas com as posições do PS – concordar no essencial e divergir no acessório - , apesar de elas causarem uma profunda incomodidade ao Governo, principalmente ao CDS.
O CDS, como se sabe, tem no Governo dois Ministros - Cristas e Mota Soares – encarregados, respectivamente, de acabar com os velhos e de manter o maior número possível de pobres em estado catatónico – no sentido etimológico do termo -, unidos no esforço conjunto de diminuir a despesa pública em áreas sociais mediaticamente pouco sensíveis e com escassa ou nenhuma capacidade reivindicativa, enquanto Portas, pavoneando-se nos Estrangeiros – onde por óbvias razões se sente como peixe na água – tenta capitalizar politicamente o descontentamento, pondo-se à margem do que se passa cá dentro e eclipsando-se da cena europeia, hoje na convergência fatal de todas as críticas de política interna.
Acontece, porém, que as declarações de Cavaco suscitaram em Portas o espectro de um “Bloco Central” apendiculado pelo CDS, receio que o fez reagir de imediato, mesmo antes do omnipresente Relvas, às declarações do Presidente.
Deixemo-nos de fantasias: nada disto tem muito interesse. Embora reconhecendo que estas divergências estão um bocadinho para além das guerras de Alecrim e Manjerona, a verdade é que nem o fanatismo ideológico de Gaspar nem o pragmatismo de Relvas, ambos apoiados por um Passos Coelho ainda indecisivo, e muito menos o oportunismo de Portas, têm qualquer possibilidade de tirar Portugal do atoleiro em que se encontra. Como também não têm as alterações pouco mais que cosméticas propostas pelos derrotados e desnorteados socialistas europeus, a cuja linha Cavaco parece ter agora aderido, pelo menos no plano retórico.
Já foi dito e redito há muito tempo: a “arquitectura” político-institucional do euro leva necessariamente, por um lado, ao que aconteceu em todos os países que aderiram à moeda única em condições de profunda desigualdade competitiva – um agravamento brutal do défice de conta corrente, traduzido numa dívida pública e (principalmente) privada gigantesca – e, por outro, à formação e consolidação de um projecto hegemónico de poder consubstanciado numa perda de independência real dos países devedores - da qual não têm qualquer possibilidade de sair por maior que seja exploração do trabalho assalariado - susceptível de a breve prazo pôr em causa os próprios princípios da democracia formal, apesar de esta, mesmo em condições de relativa normalidade, já estar muito longe de corresponder à vontade popular.
Quem consolidou vantagens apreciáveis com base no desenvolvimento de um projecto politicamente desastroso e conquistou posições hegemónicas que antes estava longe de ter alcançado, não vai perdê-las à mesa das negociações. Continuar a supor, como alguns fazem questão de afirmar, que a federação política da Europa vai ou pode resultar da crise financeira e que será pela via do “governo económico” que se chegará à governação política da Europa, é uma imbecilidade tão forte que até se torna penoso criticá-la.
O que a consolidação do projecto hegemónico de poder no actual quadro institucional pode levar é exactamente ao contrário, ou seja, a uma situação semelhante àquela a que em filosofia política se chama o “império universal”, aqui traduzido por “império regional”.
Qualquer pessoa que não tenha alienado a faculdade de pensar compreende que mesmo nas “federações capitalistas”, que são as que agora quase exclusivamente existem, sejam elas velhas ou novas, situem-se na Europa ou fora dela, se não passa nada de semelhante ao que se está a passar, ou ao que pretendem se venha a passar, nesta dita “União Europeia”. Todas as federações, sob pena de desagregação, funcionam com base num vínculo de solidariedade, anualmente reforçado pela via orçamental, que na União Europeia não existe minimamente.
Teoricamente haveria a possibilidade de a situação se alterar se a Itália e a Espanha estivessem na disposição de lançar todo o seu peso negocial contra as posições da Alemanha, forçando um quadro institucional diferente do actual. Tratando-se de duas economias muito fortes, respectivamente, a terceira e a quarta da zona euro, teriam em conjunto ou até isoladamente uma força negocial que qualquer dos países intervencionados, mesmo actuando conjuntamente, está muito longe de poder ter.
Mas nada disso se vai passar. Quando muito, a Itália e a Espanha tentarão mitigar a política de austeridade, quer pugnando por um alargamento dos prazos de redução dos défices, quer tentando introduzir nos respectivos orçamentos verbas que possam favorecer algum crescimento. No fundo, tanto uma como outra acreditam que podem ser competitivas no contexto da zona euro e ambas rejeitam politicamente qualquer política cujo fracasso possa levar ao abandono da moeda única. Ou seja, acreditam que com a continuação da ajuda do Banco Central Europeu podem superar a grave crise de endividamento que as afecta, apesar de uma observação mais distanciada levar à conclusão contrária.
O altíssimo endividamento privado de ambos os países, no caso da Itália agravado por um endividamento público também muito alto, fará com que no actual contexto da zona euro – o tal contexto que a Alemanha se recusa a modificar - a situação tenda a manter-se ou até agravar-se, apesar das medidas de deflação salarial que directa ou indirectamente já foram, e vão ainda ser, tomadas e da redução das despesas sociais, já que com actual quadro todas estas economias continuarão a lidar com uma moeda que não corresponde ao seu peso real no mercado. Mais tarde ou mais cedo passar-se-á com o euro o mesmo que se passou com o padrão-ouro no fim do século XIX e princípios do século passado. Vai ser necessário abandoná-lo. Ver-se-á depois em que termos e com que consequências…
Fantastico comentario! Um abraco
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