quarta-feira, 23 de maio de 2012

A “CONSOLIDAÇÃO” ORÇAMENTAL COMO CONCEITO IDEOLÓGICO



O EXAME DA TROIKA E A REALIDADE


A Troika regressou a Portugal para avaliar a execução do programa de austeridade imposto pelo Memorandum de Entendimento “acordado” entre o Governo português e   a União Europeia, o FMI e o BCE.

À semelhança do que aconteceu das vezes anteriores, os agentes dos credores que cá se deslocaram irão dizer que o Programa está a ser executado com êxito, verterão umas lágrimas de crocodilo pelo desemprego, manifestarão muita preocupação pelo endividamento das empresas públicas de transporte, não ficarão totalmente satisfeitos com o acordo firmado entre o governo e as empresas de energia e concluirão pela necessidade de adopção de novas medidas com vista ao cumprimento das metas acordadas.
E, todavia, a situação portuguesa é calamitosa. O desemprego sobe para números inimagináveis, as falências sucedem-se, a receita fiscal diminui, o produto continua a cair e a situação das pessoas está a tornar-se insustentável.
Esta realidade tem sido externamente escamoteada, contrariamente ao que se passa na Grécia, em Espanha, na Irlanda e na Itália, muito por culpa daqueles que  têm privilegiado na sua actuação uma imagem exterior da situação portuguesa feita de grande consenso, paz social e “inteligente compreensão” das dificuldades que o país atravessa. Daí que o estado em que os portugueses se encontram nunca ou quase nunca seja referido quando algum articulista ou comentador estrangeiro traça o quadro geral resultante da aplicação dos programas de austeridade nos países intervencionados ou sujeitos a fortes medidas restritivas.
Ou seja, apesar de sofrerem internamente as consequências das brutais medidas de austeridade, os portugueses não têm dado, por causa daquele "consenso", a contribuição que poderiam dar ao movimento que na Europa vai ganhando força contra as medidas de austeridade como solução para a crise.
Está à vista de todos a ineficácia dos programas de austeridade e todavia eles continuam a ser defendidos e aplicados com a  firmeza e a convicção de quem não tem dúvidas sobre a sua eficácia. Porquê? Porque tais programas são acima de tudo instrumentos para levar à prática uma certa concepção de sociedade tanto mais fácil de alcançar quanto mais consensual for no seio do governo que os aplica o modelo de sociedade em questão. E neste aspecto Portugal tem sido, mais do que qualquer outro país da Europa, o terreno de eleição para a aplicação de tais programas. A austeridade conta com o apoio incondicional do Governo, todo ele ideologicamente imbuído do mesmo espírito da Troika se não mesmo mais fundamentalista do que a própria Troika, conta também com a serena aquiescência do PS, que faz uns pequenos reparos sem contudo se opor ao essencial, e goza ainda da colaboração activa da UGT que deu corpo, com a sua assinatura, ao tal consenso social triunfantemente exibido pelo Governo no estrangeiro.
Não admira por isso que tal programa, não obstante os efeitos verdadeiramente devastadores que está tendo na sociedade portuguesa, ainda não tenha sido maioritariamente repudiado pelo povo português. De facto, por força da permanente propaganda em todos os meios da comunicação social sobre as virtudes da austeridade, os portugueses ainda acreditam que da consolidação das contas públicas resultará o crescimento.
Dentro de pouco tempo, tanto pelo que se passa cá como pelos exemplos que vem de fora, irão contudo compreender que nem a dita consolidação ocorrerá – a dívida continuará a aumentar e os juros manter-se-ão em níveis estratosféricos – nem as medidas de austeridade tenderão a abrandar. Pelo contrário, agravar-se-ão por força da tal espiral recessiva por ela própria provocada.
Socialmente insensível, o Governo, porém, continuará sereno e optimista, mantendo o rumo traçado com vista à edificação de uma sociedade que faça desaparecer o Estado da maior parte dos sectores onde ainda se encontra. Na verdade, o tal equilíbrio orçamental por que o Governo aspira, bem como a desoneração fiscal que tem em mente, pressupõem um orçamento exclusivamente virado para aquilo a que eles chamam as “funções tradicionais” do Estado, deixando que os recursos, segundo eles, hoje indevidamente absorvidos pelo Estado, sejam libertados para a sociedade civil para que esta com a sua criatividade e operosidade promova o crescimento à margem do papel do Estado.
Esta a visão utópica do neoliberalismo tal como é entendido por Passos Coelho, Gaspar e Álvaro!
Para os ideólogos do Governo, até talvez mais do que para os burocratas da Troika, o facto de os ciclos económicos poderem ser directamente influenciados pelo Estado constitui uma aberração a que pretendem pôr cobro. Segundo eles, Portugal está em recessão porque a economia está-se a ressentir da falta do Estado em áreas onde, por direitas contas, ele nunca deveria ter estado e, por isso, deixará de estar. O objectivo dos programas de austeridade é mesmo esse. É tirar o Estado dos lugares que lhe não competem. E é por essa razão que Gaspar nem sequer disfarça a insensibilidade pelos números do desemprego, salvo no que respeita à sua incidência nas contas públicas, sendo também por essa mesma razão que Passos Coelho entende o desemprego como uma oportunidade redentora. O desempregado será, neste contexto, mais um que vai ter a oportunidade de se desligar da tutela asfixiante do Estado e de encontrar nas suas próprias capacidades o antídoto indispensável para combater a situação em que temporariamente se encontra!
E é também por Gaspar e Passos Coelho não terem qualquer espécie de dúvida sobre a ineficácia do dito “Apêndice sobre o Crescimento” ao Tratado Orçamental, tal como está a ser apresentado entre nós, que ambos agora afirmam não terem objecções à discussão do assunto, contanto que se mantenha o princípio de que o crescimento somente poderá resultar da consolidação orçamental.
Este o pensamento da gente que nos governa – uma gente perigosa que não hesita em sacrificar uma ou até mais gerações e o futuro do próprio país às suas convicções ideológicas.
É um erro supor que esta gente por ter poucos conhecimentos práticos e teóricos, como é o caso de Passos Coelho, ou por se deparar com dificuldades de monta, como é o caso de Gaspar, poderá vir a arrepiar caminho, acabando por ser vencida pelas duras realidades da vida. A história demonstra exactamente o contrário: quanto mais a convicção ideológica do militante se fundamenta na vulgata da doutrina que defende, maior é o seu fanatismo e a sua incapacidade para ver a realidade.
E é por não ser capaz de perceber isto, por estar a alinhar no essencial desta política, por não rasgar o acordo com a Troika, que o PS se arrisca a um futuro semelhante ao do PASOK!

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