segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

AINDA O RELATÓRIO DO FMI


 
O MAIS PREOCUPANTE

 

Preocupante é antes de mais o conteúdo do “relatório do FMI”. Mas ainda mais preocupante que o seu conteúdo é a possibilidade da sua execução. E esta possibilidade existe - é essa como se sabe a vontade do Governo -, apesar da rejeição com que foi recebido por larguíssimos sectores da sociedade portuguesa.

O relatório encerra um programa de governo, pronto a executar no curto prazo, que Passos Coelho e Gaspar se preparam para pôr em prática, se a oposição a este atentado contra o Estado social se limitar à oposição parlamentar e aos meios institucionais que as forças políticas orgânicas consigam ou queiram mobilizar.

De facto, há fundadas razões para temer que, com base na estafada, mas sempre eficaz, argumentação da ausência de alternativa e com a concordância implícita dos que no fundo a reconhecem, embora publicamente queiram dar a impressão que a negam, o Governo e as forças ultra-reaccionárias que o apoiam consigam desde logo paralisar o Presidente da República e a UGT/João Proença (o que, diga-se, nem sequer é um feito de registo), bem como, no quadro de uma retórica enganadora, o próprio PS. E o que sobra, sendo politicamente muito importante, é orgânica e institucionalmente insuficiente para impedir a concretização daquele programa.

Por outro lado, não pode esperar-se, nem tal facto deve ser minimamente valorizado na luta política, que os atritos no seio da coligação levem ao colapso do Governo. Isso não acontecerá, pelo menos tão cedo, e se porventura, mais tarde, vier a acontecer as razões que poderão estar na base da dissolução da aliança nada tem a ver com divergências de fundo quanto ao sentido da governação mas prender-se-ão antes com razões de natureza puramente eleitoral e de oportunismo político.

Na verdade, o CDS, com excepção do agravamento dos impostos (na medida em que esse agravamento possa atingir os mais ricos), está substancialmente de acordo com as medidas constantes do relatório, nomeadamente com as relacionadas com o corte da despesa, sendo mesmo um dos grandes inspiradores desse programa. Aliás, são da sua responsabilidade principal algumas das medidas já em vigor que mais afectam os portugueses de menores recursos, de modo que com a falsa atitude que vem mantendo perante a comunicação social apenas pretende tirar vantagens políticas da interpretação que os comentadores e o próprio PS têm feito da farsa que tem sabido representar de oposição interna ao Governo.

Como aqui já foi dito e tem de se repetir uma vez mais, Paulo Portas apenas estava interessado em estancar uma corrente noticiosa prejudicial relacionada com a sua anterior passagem pelo governo que ele sabe ter origem em Relvas. Uma vez alcançado esse objectivo, a farsa baixou de tom e o CDS passou a alinhar cada vez com mais convicção no “combate pela diminuição da despesa”, ou seja, como parceiro privilegiado do FMI.

Outro dos equívocos deste debate político que tem claramente confundido o PS e até, às vezes, as forças políticas de esquerda, detectável em certos deslizes de linguagem, tem a ver com o papel do FMI. Se já não vale a pena falar no inacreditável Proença que se faz de muito ofendido mas que na realidade somente espera um pequenino sinal do Governo para concordar com ele, sinal que o Governo vai adiando para que seja cada vez mais pequena a cedência que acabará por lhe fazer, já vale a pena insistir no desconhecimento profundo que os políticos do PS mais em evidência nesta liderança de Seguro têm revelado acerca comportamento do FMI enquanto guardião e aplicador implacável da ortodoxia neoliberal.

O que na Europa há de relativamente novo quanto a anteriores actuações do FMI noutros continentes como representante e defensor dos credores são as consequências económico-financeiras da existência de uma moeda única, bem como os específicos problemas que esse facto levanta. Mas vistas bem as coisas nem sequer isto é completamente novo já que na América Latina na década de noventa (parte final) e começo do novo milénio o Fundo teve de se defrontar com uma situação sensivelmente idêntica como foi o caso da dolarização de algumas economias, nomeadamente as do Equador e da Argentina.

É certo que as situações são diferentes e a prova disso é que esses países puderam unilateralmente resolver os seus problemas de outra maneira, como aconteceu no Equador, e como poderia também ter acontecido com sucesso na Argentina, não fosse dar-se o caso de a Argentina continuar a ser, infelizmente sempre, um caso muito especial.  

Mas o que com esta digressão por anteriores experiências do FMI se pretende dizer é que num quadro monetário relativamente semelhante ou num quadro de autonomia da moeda nacional o comportamento do FMI foi sempre o mesmo: impor a aplicação de medidas recessivas, privilegiar as exportações, de preferência de matérias-primas, com vista a assegurar o pagamento integral dos credores mesmo que à custa do empobrecimento global do país e do desemprego em massa, principalmente dos sectores que não contribuam directamente para aquele objectivo. Na última década do século passado durante a crise asiática, da Rússia e da América Latina foram cometidas nos países que se sujeitaram às "receitas" do FMI autênticas barbaridades que Stiglitz (mas não só) nos vários livros que escreveu sobre o assunto relata com a acutilância crítica que tais situações merecem.

Outro factor de profunda preocupação, embora as duas questões estejam intimamente ligadas, tem a ver com a ausência de uma firme rejeição, por parte de sectores da oposição, da transformação de Portugal num protectorado de organizações internacionais representativas dos credores e do capital financeiro. É uma situação tão escandalosa a que se vive em Portugal neste domínio e há uma tal promiscuidade entre aquelas organizações e o governo-fantoche do Estado português que causa espanto como tal situação pode ser encarada como relativamente normal por uma parte muito significativa da oposição institucional. Governo-fantoche do ponto de vista da soberania nacional, entenda-se, mas não fantoche no zelo e na extrema eficiência com que sujeita o povo português à disciplina imposta do exterior!

Perante estas graves questões o PS de Seguro – e será só o de Seguro? – mantem-se cautelosamente nas franjas de uma oposição que na realidade não impedirá que a execução do programa do programa do Governo se venha a consumar. De facto, parece tratar-se de uma oposição que visa apenas e só assegurar, no tempo certo, a transferência do poder agora na posse do PSD/CDS para o Partido Socialista. E o tempo certo é aquele que permita ao actual Governo fazer tudo o que de mais importante tem a fazer na execução daquele programa – destruição do Estado social e desmantelamento do actual modelo económico com vista ao ressurgimento de um modelo que, dadas as condições económicas portuguesas, só poderá ser de tipo terceiro-mundista.

E por que é que isto acontece? Por que razão não faz o PS uma oposição à altura da gravidade da situação? Por que razão se mantém relativamente às questões essenciais numa oposição de meias-tintas? Porque o PS não é portador de uma verdadeira alternativa. O PS transporta na sua oposição uma pequena mala de cosméticos que, à parte a crença numa salvífica solução vinda da Europa, nada alteraria de muito significativo relativamente ao que de mais grave Passos Coelho tem feito. Esta é que é a terrível verdade.

Uma verdade que não corresponde aos interesses nem à vontade da esmagadora maioria do seu eleitorado, mas que o PS se recusa a rever porventura mais por uma questão de identidade partidária, como aqui já foi explicado, do que propriamente por convicção política.

De facto, só um ataque à questão central da despesa do Estado permitiria enveredar por um caminho capaz de relançar o crescimento. E a questão central da despesa do Estado é a dívida, ou mais correctamente: o serviço da dívida. Portugal não pode hipotecar o seu futuro nem o dos portugueses de hoje e de amanhã ao pagamento de uma dívida que quanto mais se ataca com medidas de austeridade mais cresce.

Portugal tem de eliminar uma parte significativa da sua dívida externa (a dívida interna terá de ter outro tratamento) e condicionar o pagamento da dívida sobrante a uma percentagem do crescimento das exportações. Se isto se não fizer e enquanto se não fizer o empobrecimento adquirirá uma dinâmica imparável.

Este programa inevitável pressupõe repensar a Europa, o Euro e as alianças. Mas não se pense que o que se passa com Portugal é caso único. No ano em curso a Espanha vai ter de pedir, em média, para cima de 600 milhões de euros por dia assegurar o serviço da dívida, aumentando esta de várias dezenas de milhares de milhões de euros no fim do ano!

Assim sendo, o que sobra para impedir que a tragédia se consume é um levantamento nacional, como de certo modo já aconteceu a 15 de Setembro contra a TSU. Só que os levantamentos inorgânicos ou insusceptíveis de serem enquadrados por forças organizadas correm sempre o risco de tornar efémeras as vitórias alcançadas, como se viu com levantamento de 15 de Setembro. O Governo recuou na TSU, mas replicou com um ataque fortíssimo nos demais domínios como o actual Orçamento sobejamente comprova, assegurando uma das maiores transferências de sempre de rendimentos do trabalho para o capital. Portanto, esse levantamento é indispensável mas tem de ser subsequentemente institucionalizado pelas forças que lhe saibam dar expressão política…

2 comentários:

  1. Excelente!... Lúcido, desassombrado e corajoso... como sempre, meu amigo!... obrigado por trazer esperança ao Ano Novo :)
    ... Faço link amanhã...
    Abraço.

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  2. O que a imprensa dominante gosta de chamar o "arco governativo" é de facto o "arco do governo". O PS e o PSD funcionam como os sitemas compostso por duas estrelas giram uma à volta da outra ou, melhor, giram à volta do centro de gravidade de ambas.No caso, giram ambos os partidos, com o asteróide CDS, à volta do centro de interesse de ambos a sua "cosa nostra" -o Poder-. Portanto o autor está certo sobre a verdadeira posição deste PS, e dos anteriores, em relação às questões de fundo.Que solução? passará sem dúvida por reequacionar a questão da dívida, mas o que e como poderia ser feito? O "Povo" ainda não "aderiu" a esta proposta. Haverá, para tal, razões de condicionamento ideológico mas também pouca confiança na sua viabilidade. Talvez a coisa comece a mexer quando os problemas comecem a doer num país com massa crítica. Será a França?
    lg

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