BATOTA AUTÁRQUICA
A Associação Transparência
e Integridade vai pedir a declaração de ilegalidade das candidaturas autárquicas
que estão sendo anunciadas por candidatos que já desempenharam três mandatos autárquicos
consecutivos como presidente de câmara.
De facto, nem se percebe como é possível a apresentação de candidaturas
de pessoas que se encontram naquelas condições.
É que tanto infringe a lei o comportamento de quem a viola
directamente (o que aliás é o caso) como aquele que a frauda, isto é,
que contorna uma disposição legal, tentando chegar por caminhos diversos ao
resultado que a lei proibiu.
A distinção que certos políticos – e certos partidos políticos - pretendem fazer entre a mesma autarquia e uma autarquia diferente para depois concluírem que a proibição só se refere à mesma autarquia não passa dum batota que nem sequer pode ser considerada uma variante interpretativa errada da letra e do sentido do texto legal.
Se é certo que o velho princípio romano “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus” deve ser aplicado
com cautela em matéria de interpretação das leis, também não é menos verdade
que qualquer interpretação tem de partir das próprias palavras da lei. E as
palavras da lei, salvo algumas situações que no caso em apreço se não
verificam, devem ser interpretadas de acordo com o seu sentido comum e corrente
já que é aos cidadãos que a lei se dirige e, portanto, deve entender-se que ela
reflecte tanto quanto possível aquele sentido.
Contudo, os vocábulos utilizados pelo legislador para
exprimir o seu pensamento raramente são unívocos e envolvem frequentemente múltiplos
sentidos, como aliás acontece com a linguagem em geral. Pois bem, a interpretação verdadeira e própria, ou se se preferir, a
interpretação stricto sensu, é aquela que cabe no sentido literal possível dos
vocábulos utilizados. Por exemplo, se a lei diz que determinada situação se
aplica aos filhos, poderemos discutir a abrangência deste conceito na linguagem
comum e corrente, sendo certo que ele abrange situações diversas, algumas delas
até relativamente distantes daquilo a que se poderia chamar o “núcleo” do conceito,
mas que por caberem no seu domínio marginal fazem parte do
seu sentido literal possível.
E de todos esses sentidos teremos de partir para, na sequência de um
processo interpretativo mais ou menos complexo, se concluir qual o sentido com que
a lei se deve aplicar. Para esse feito a teoria jurídica da interpretação da
lei dispõe de múltiplos instrumentos a que o intérprete deve recorrer para
saber, no exemplo dado, se a lei apenas se aplica aos filhos no sentido jurídico-biológico
do termo, ou se também abrange os adoptados, mas não já porventura os
enteados, os pupilos e os cônjuges dos nossos filhos, todos eles englobáveis
no sentido literal possível do conceito.
Mas o que está fora de qualquer dúvida é que no conceito de
filhos caibam os irmãos ou mesmo os netos. Uma busca de sentido que vá para
além do sentido literal possível já não é interpretação, mas modificação do
sentido da lei. Não quer dizer que isso não seja possível, que ao juiz esteja
vedada a possibilidade de ir além do sentido literal possível, mas aí já
estaremos no domínio do desenvolvimento judicial do direito, ou seja, no domínio
da integração de lacunas, patentes ou ocultas, estas por via daquilo a que os
juristas chamam “redução teleológica”, ou, nos casos extremos, no domínio daquilo
a que se chama o desenvolvimento do Direito superador da lei.
Se a integração de lacunas ainda cabe no domínio da
interpretação lato sensu, embora a
sua constatação e consequente colmatação estejam subordinadas à verificação de
pressupostos muito estritos, já o desenvolvimento judicial do direito superador
da própria lei é uma actividade excepcional, muito excepcional mesmo, que
somente em casos muito contados poderá ser utilizada pelo juiz sob pena de se
subverter o princípio da separação de poderes e a própria legitimidade
democrática.
Pois bem, no caso da Lei n.º 406/2005 o problema de saber se um
presidente de câmara pode exercer quatro mandatos consecutivos nem sequer se põe.
Não é preciso ser jurista para perceber a lei, basta ter a 4.ª classe, como diz
o Paulo Morais!
De facto, para que pudesse prevalecer o sentido daqueles que entendem
que a mesma pessoa pode desempenhar quatro, seis, doze mandatos, enfim, uma vida, como presidente
de câmara, desde que fosse mudando de câmara de três em três
anos era preciso que houvesse uma lacuna na lei. E não há lacuna nenhuma. A lei
é clara. Três mandatos consecutivos é o máximo que a lei permite. Não há quarto mandato consecutivo previsto na lei, seja qual for a câmara.
Para os que falaciosamente dizem que a lei se refere ao órgão
e não à pessoa que o integra, enfim, o mínimo que se poderia dizer é que então a
maior parte das câmaras tinha de ficar com o órgão vago…porque já tinha sido
preenchido três vezes consecutivas.
Em conclusão: a recandidatura ao quarto mandato é uma
ilegalidade e acima de tudo uma batota de partidos e de candidatos para quem a lei não passa de um pequeno obstáculo sempre transponível!
Estará em causa o princípio republicano e será à luz do mesmo que se iluminará o alcance do efeito normativo que, com a sua positivação, se terá pretendido estabelecer.
ResponderEliminarPorém, relembre-se também o princípio odiosa restringenda favorabilia amplianda, aqui em "missão de resgate" do princípio da liberdade de acesso aos cargos de eleição política e do princípio de participação nos assuntos da vida pública.
O elemento gramatical "do" na epígrafe do art. 1.º mas, depois, abrandado (esquecido?)quando se atenda ao elemento "de" dos seus diversos números, dará, porventura, margem para uma tal interpretação reducionista e contida, alimentada em face daqueles segundo e terceiro princípios.
Julgo que poderão ser, também, estes os pólos da questão.
Ponto é que as leis, mormente estas de organização do poder político, não deveriam passar sem o crivo dos melhores juspublicistas (mas, relembro-me agora, o dr. Paulo C. Rangel não o é?)...
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ResponderEliminarpenso que as pessoas responderão nas urnas a esta gente que não consegue viver sem feudos.
ResponderEliminar-> A limitação do número de mandatos dos políticos é um álibi/truque para reivindicar reformas antecipadas!
ResponderEliminar-> Os políticos não deverão ter o número de mandatos limitado... mas, em contrapartida, esses mandatos deverão estar sujeitos a uma muito maior vigilância/controlo por parte dos cidadãos...; e os políticos deverão ter uma idade de reforma igual à do regime geral! [blog: fim-da-cidadania-infantil]