quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

DA PRAXE


O QUE SE ESTÁ A PASSAR…

Já toda a gente disse o que havia e o que não havia a dizer a propósito da praxe. Da minha experiência de docência universitária durante várias décadas tenho por certo que o alargamento da praxe para além das “fronteiras de Coimbra” tem a ver com a criação de novas universidades, principalmente universidades privadas, a partir de 1980.

Sem tradições universitárias que obviamente não poderiam ter mas das quais necessitavam para se credibilizar, as praxes e outras manifestações académicas, como os conhecidos agrupamentos de saltimbancos a que pomposamente chamam “tunas”, foram incentivadas e financiadas pelas próprias escolas que tudo faziam para que os seus estudantes se parecessem com o “estudante de Coimbra”. Uma figura mítica de contornos mal definidos, salvo os que resultam de durante muitos séculos, para o bem e para o mal, Coimbra ter sido a única escola de ensino superior existente no país, colónias incluídas, nomeadamente o Brasil. 

Enquanto a Universidade do Porto e a Clássica de Lisboa criadas pelo Governo Provisório em 1911 se demarcavam da de Coimbra pela rejeição dos arcaísmos praxistas, as novas, muitas delas sem nada que particularmente as recomende, e sem tradições que obviamente não poderiam ter, salvo os tristes exemplos das “licenciaturas à Relvas”, copiaram, deturpando e degradando o original, o que de mais arcaico Coimbra tinha para oferecer.

A minha vivência como estudante e docente em Coimbra durante quase toda a década de sessenta – de 1962 a 1969 – diz-me que a geração à qual pertenci, ou melhor na qual me integrei (já que havia “outras gerações da mesma idade” nessa época), encarou a praxe numa dupla perspectiva: como algo de arcaico a banir logo que possível mas simultaneamente algo que, enquanto existia, poderia ser aproveitado como instrumento de luta contra a ditadura naquilo que eram as suas manifestações mais comunitárias (as Repúblicas, mas não só).

E foi assim que naquela década o Dux Veteranorum sempre foi, como então se dizia, “Um gajo da malta”. O saudoso Ciniro comprometido com a luta antifascista dos estudantes e, mais tarde, Carvalho Santos, que sem hesitações decretavam a abolição da praxe sempre que um “acontecimento político” o exigia, como por exemplo o Dia do Estudante e em tantos e tantos outros casos, além do “luto académico” decretado na crise de 69.

Por outro lado, as grandes manifestações colectivas da praxe académica, como as “latadas” e a “tomada da Bastilha”, eram aproveitadas por muitos estudantes como momentos de crítica irónica ao regime, as primeiras, ou como grandes manifestações silenciosas de milhares de estudantes contra o fascismo como aconteceu com as “trupes” de 25 de Novembro de 1964 e 1968 comemorativas da “Tomada da Bastilha” – manifestações a que a PIDE teoricamente se não poderia opor nem proibir…por se tratar de uma “praxe académica” embora subvertida.

As Repúblicas eram verdadeiros centros comunitários de vida democrática, de boémia e cultura, sem hierarquias estúpidas, onde desde o mór até ao mais recente caloiro se forjavam sãs camaradagens e amizades que duravam pela vida fora. Foi o Conselho das Repúblicas que durante toda a década de sessenta propôs e patrocinou a lista unitária de esquerda à “Associação Académica” tendo ganho todas as eleições contra os fascistas de então, hoje “respeitabilíssimos democratas”.

E os praxistas, os verdadeiros praxistas, onde estavam e o que faziam? Havia um núcleo relativamente restrito, politicamente indiferente, que fazia trupes para praxar os caloiros “desprotegidos” que encontrava na rua fora de horas, cuja sanção máxima consistia, como se sabe, no “rapanço” e havia também os “julgamentos” numa ou noutra república (poucas) que poderiam terminar numa condenação, sendo a mais grave o dito “rapanço”. Não se metiam com as caloiras, nem as estudantes eram minimamente incomodadas, salvo uma ou outra chamada de atenção provocada por alguma irregularidade de traje.

Lembro-me de dois famosos praxistas com quem às vezes nos cruzávamos nas noites de Coimbra, um deles tinha um problema com os gatos e o outro estava casado com a estudante mais escultural de toda a Universidade. Ela passava e todo o mundo parava a contemplar aquelas mamas fantásticas como nem em Hollywood havia. E como na época não havia “truques”, tudo era como “Deus deu”, nós olhávamos uns para os outros e dizíamos “como é possível que este tipo ande nas trupes e deixe aquela mulher sozinha…”

Claro que a direita cultivava a praxe e a tradição, mas com excepção do Orfeão Académico, por ela maioritariamente dominado, tinha poucas ou nenhumas possibilidades de pública e colectivamente a exibir nos grandes acontecimentos académicos, dominados por um vida cultural relativamente intensa da qual a direita estava manifestamente arredada. A direita não tinha voz executiva na Associação Académica, nem suas secções artísticas e culturais, não tinha voz no Teatro académico (TEUC E CITAC), estava em franca minoria nos órgãos emblemáticos da praxe, como o Conselho de Veteranos e o Conselho das Republicas, não escolhia o Dux Veteranorum, enfim, defendia a praxe…mas a hegemonia era da esquerda. Desde a linguagem à arte, passando pelos costumes quem estava na defensiva eram eles e quem marcava o ritmo e agenda, como hoje se diz, éramos nós.

Apesar desta vantagem relativa, muito importante no contexto da época, a praxe, “usada e aproveitada”, estava sob o ponto de mira dos estudantes progressistas que, por táctica, tiveram que transigir com algumas das suas mais típicas manifestações e simultaneamente aproveitar-se delas para aquilo que na época era o mais importante: a luta política. E foi por isso que a praxe foi suspensa, por luto académico, durante a crise de 1969 e, logo que as condições o permitiram, abolida com o 25 de Abril tal como já havia acontecido com a Implantação da República, em 5 de Outubro de 1910.

Como a reacção aos grandes movimentos progressistas tem sido muito forte no Portugal Contemporâneo - é assim desde 1820 – a praxe voltou a ressurgir, desprotegida e com mais força, como acontece com a erva daninha que não é cortada pela raiz. Ressurgiu em 1919 logo depois do sidonismo e ressurgiu igualmente nos começos da década de 80 quando a direita reaccionária da Aliança Democrática governava o país.

Hoje, mais de três décadas depois da revoada de novas escolas superiores surgidas quase todas do nada – isto é da ausência de um suporte científico que as justificasse – e apenas apoiadas numa procura para a qual não havia a oferta adequada e conveniente, criadas num clima político onde gradualmente se foi consolidando o culto do privado e da liberdade numa caminhada imparável rumo ao estado de natureza, legitimadores de todos os atropelos e violações à dignidade humana, a começar pela degradação da situação económica dos milhões de desprotegidos em nome da liberdade dos mais ricos, tudo isto acompanhado pela expulsão do público da vida pública por acção de sucessivos governos que aqui e em todo o chamado “mundo ocidental” se têm empenhado na exaltação do privado e na desvalorização do papel do Estado em tudo o que pejorativamente denominam “engenharia social”, só poderia dar lugar a isto – ao uso de práticas indiciadoras e potenciadoras do aviltamento da dignidade humana como expressão caricatural e trágica das práticas legalizadas da sociedade em que vivemos.

Por isso é que, como noutro lugar já dissemos, não há nada mais grave do que afirmar que o que se passou no Meco é um “caso de polícia”. Foi exactamente isso o que se disse do BPN - “um caso de polícia”.
Um caso de polícia significa que no exercício de uma actividade normal, corrente e aceitável alguém cometeu uma infracção devendo por isso ser punido. Sendo o BPN um caso de polícia isso quer dizer que o capitalismo financeiro pode e deve continuar a dominar o mundo com as suas actividades “normais”, “correntes” e “aceitáveis”.

Com a praxe, guardadas as devidas proporções, passa-se exactamente o mesmo…


5 comentários:

  1. Camarada Correia Pinto dos tempos do Liceu de Viana
    Sigo o teu blog em França que me permite ter uma visāo lúcida sobre o meu triste Portugal de hoje. E o teu post sobre as praxes confirma bem o estado de mediocridade a que por aí se chegou!
    Desde Nancy, com amizade

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  2. Desde Praga.
    Já me manifestei em idêntico sentido, num pequeno comentário. Mas este magnífico post retrata com rigor o que apenas esbocei. Bravo, uma vez mais, meu caro Correia Pinto!

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