terça-feira, 4 de março de 2014

A SITUAÇÃO NA UCRÂNIA


 

É POSSÍVEL EVITAR A GUERRA?

 

Provavelmente esta é a situação mais grave que se vive na Europa desde o fim da II Guerra Mundial. Não é a pior crise desde a Queda do Muro e da implosão da URSS como alguns responsáveis políticos ocidentais querem fazer crer. É muito mais do que isso.

 A situação que hoje se vive na Europa é explosiva e muitíssimo perigosa. Aliás, ela é uma consequência tardia da desagregação da URSS e resultante de um rastilho lançado para o terreno imediatamente a seguir, cuja extremidade mais longínqua da deflagração há muito estava incandescente e que, consoante as conjunturas, ia ardendo com mais ou menos intensidade, mas nunca extinto, como às vezes parecia acontecer.

O Ocidente, o “Ocidente” da Guerra Fria, além de ter tentado imediatamente após o fim da URSS “arrumar” a Rússia por 50 anos (como Stiglitz confirma em “A globalização começa mal”), humilhou-a desnecessariamente em várias ocasiões em assuntos que directamente lhe diziam respeito. Fez o mesmo à Jugoslávia, aqui com o êxito que se conhece, não deixando praticamente nenhuma meia centena de quilómetros quadrados sem um novo país. E depois passou ao ataque: primeiro nos Bálticos, a seguir na Polónia (apesar de Polónia, para este efeito, não ser um problema, embora o seja pela permanente pressão que exerce sobre as instituições europeias e sobre a NATO) e por último no Cáucaso e na Ucrânia. Basta ver o número de americanos que exerceram funções de Primeiro Ministro e de Presidente da República nesses países.

A Rússia, assim que recuperou o folego e logo que as condições permitiram que um “novo Ivan” emergisse, iniciou uma longa caminhada diplomática, política e militar tendente a evitar o cerco que dia após dia mais se apertava.

Aliás, como a opinião pública é completamente dominada pelos media e estes estão a soldo da ideologia expansionista do Ocidente, uma ideologia hipocritamente assente na democracia, direitos humanos, estado de direito, etc, hoje já ninguém recorda os compromissos assumidos perante a URSS de Gorbatchov pela América e pelas potências ocidentais depois da extinção do Pacto de Varsóvia e da retirada das tropas soviéticas da Alemanha: a garantia de que os ex-países do Pacto de Varsóvia não integrariam a NATO. Compromisso, diga-se, que Bush (Pai) cumpriu escrupulosamente durante o seu mandato. Mas depois veio Clinton que apanhou Yeltsin tanto internacionalmente como pessoalmente na sua fase mais frágil e fez dele o que quis. E só não avançou mais porque não teve tempo. Bush (Filho) envolvido em várias guerras, deu sequência ao cerco que Clinton começara, mas não teve tempo nem condições políticas para o fechar. Ainda hoje está por explicar quem deu carta branca a Saakashvili para avançar sobre a Ossétia do Sul…

Só que nessa altura já a Rússia estava suficientemente forte para cortar cerce as veleidades do “americano” da Geórgia e a lição que lhe deu foi suficiente para desencorajar acções semelhantes nos tempos mais próximos.

Apesar do abrandamento da tensão com Obama, a NATO, a União Europeia e os Estados Unidos foram prosseguindo a mesmo política embora com baixa intensidade. Mantiveram o projecto do escudo antimíssil na República Checa e na Polónia e nunca desistiram da Ucrânia que, de ou de outra forma, sempre esteve presente na agenda ao longo destes últimos vinte e tal anos.

A estratégia quanto à Ucrânia era óbvia,  embora um pouco diferente da que foi posta em prática relativamente aos outros “ex-aliados” de Moscovo. Aqui era preciso ser mais cauteloso. Não se tratava de uma “democracia popular” recém-saída do Pacto de Varsóvia mas de um grande Estado que antes integrara a própria União Soviética.

O namoro foi longo, cauteloso, às vezes mais ousado, mas nunca tendo chegado verdadeiramente a “vias de facto”. Como politicamente a governação da Ucrânia ia alternando entre os pró-russos e os pró-ocidentais, sem nunca as posições se extremarem exageradamente, tendo inclusive a Rússia tido a arte para converter às suas próprias posições a Sra Timochenko, líder da “revolução laranja”, que depois veio a sofrer as consequências pelo modo como se deixou converter;  enfim, como as coisas se passavam de maneira aparentemente controlável, a Rússia, mantendo-se embora em guarda, nunca precisou de usar meios não convencionais para defender as suas posições.

Mas a estratégia do Ocidente mantinha-se e estava em execução: a União Europeia, acenando com euros e muitas promessas, continuava a insistir na assinatura de um acordo que lhe garantisse chão firme na Ucrânia; depois, passado algum tempo, segundo a evolução dos acontecimentos, viria a NATO. Muito debilitada financeiramente, carente de divisas, a Ucrânia aceitou negociar e firmar com a UE um acordo de associação. Quando já estava iminente a assinatura do Acordo em Vilnius, a Rússia, como não poderia deixar de ser, interveio. Ofereceu, qualquer que tenha sido a formulação da oferta, um acordo alternativo à Ucrânia, que o aceitou, tendo o Ocidente respondido com fortíssimas pressões políticas para que o acordo de associação com a União Europeia fosse mantido e assinado, e instigando internamente os sectores anti-russos (muito fortes e muito activos) a revoltarem-se, prestando-lhes todo o apoio político. E o resultado viu-se: num país causticado pela má governação, dominado por oligarcas que se apoderaram das riquezas que antes pertenciam ao povo, não foi difícil aos sectores extremistas, nacionalistas e populistas da Ucrânia ocidental mobilizarem durante mais de dois meses várias dezenas de milhares de pessoas contra o Presidente eleito e manter a revolta até à tomada completa do poder em Kiev.

A partir de então a coisa teria necessariamente que mudar de figura: a Rússia, ainda muito causticada pela recordação da colaboração durante a guerra da extrema-direita ucraniana com Alemanha, não iria aceitar um governo extremista e xenófobo que, além de pôr em causa os seus interesses na região, iria também voltar-se contra a população de origem russa dominante na parte oriental e no sudeste da Ucrânia, como aliás as suas primeiras medidas deixaram bem patente. Se em Kiev valia a lei da selva, com o apoio dos do Ocidente, por que não fazer o mesmo do outro lado? Tendo direitos concedidos por tratado sobre a Crimeia, a Rússia prevaleceu-se desses direitos, concedidos para outros fins, para marcar posição militar na península e apoiar a revolta das populações pró-russas

E é neste ponto em que estamos. E por que é a situação explosiva? Porque a Rússia não vai sair donde está. Pelo contrário, vai apoiar a rejeição do governo de Kiev em toda a parte oriental e no sudeste da Ucrânia, com especial incidência nas grandes cidades industriais de maioria russa, como Kharkov, Donetsk e outras. A Rússia tentará impor a divisão da Ucrânia ou, no mínimo, uma Ucrânia federal com duas ou três repúblicas autónomas na parte russófila, se houver diplomacia que a tal a convença. Mas não vai recuar perante nenhuma ameaça.

 A Europa militarmente não pode fazer nada. Não tem meios, nem vontade. Nenhum europeu está disposto a morrer por Kiev. A Europa pode dar armas, pode apoiar, mas têm de ser os de Kiev a combater. Só que os de Kiev apanham uma gigantesca tareia se se meterem com os russos. E é aqui que o problema se complica.

E complica-se muito por duas razões. Primeiro porque não há hoje um líder europeu que mereça a confiança dos russos. Putin fala com Merkel, mas Merkel não é a interlocutora ideal para uma situação destas. Merkel manda económica e financeiramente na União Europeia, mas politicamente conta pouco na Europa que interessa. Era preciso que houvesse alguém, da França, credível e não há. Além de Hollande não ter qualquer prestígio internacional, os socialistas franceses sempre viveram na dependência política de Washington. E depois a situação complica-se ainda mais porque os americanos têm um presidente fraco. Um presidente sem poder e sem nenhuma capacidade para arbitrar internamente uma situação de grave conflito internacional. A fraqueza, como se sabe, é má conselheira e torna o fraco dependente de vontades alheias. Para mostrar que não é fraco, Obama pode pôr o mundo à beira do abismo.

Hoje são mais do que evidentes os perigos que o mundo corre por a América ter na presidência um político oriundo das minorias. A sua eleição foi aparentemente uma grande conquista civilizacional, mas paradoxalmente pode ter como consequência uma catástrofe de proporções inimagináveis.

Olhando para o passado, e é sempre arriscado fazê-lo, Obama se estivesse no lugar de Kennedy não teria resistido à crise dos mísseis e olhando ainda mais para trás se tivesse estado no lugar de Roosevelt provavelmente nunca teria entrado na guerra. Não há nada mais perigoso para o mundo do que ter na América um presidente fraco e sem prestígio. E é isso o que a América tem.

Para concluir falta acrecentar que a situação é hoje incomparavelmente mais  perigosa do que qualquer outra ocorrida durante a Guerra Fria. Na Guerra Fria cada lado tinha o seu terreno demarcado e nenhum ousava inavadir o terreno do outro. Hoje não falta quem pense que não há limites ao expansionismo...

 

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