terça-feira, 17 de março de 2015

A RECUSA DO HABEAS CORPUS



 
 
 
OS MEANDROS DE UMA DECISÃO COMPLEXA
 
 
 
 

Já no último post dissemos que o Habeas Corpus é uma garantia constitucional que se destina a impedir que um cidadão possa ser privado da sua liberdade por força de acto de abuso de poder como aquele que ocorre quando é ordenada ou mantida uma prisão ilegal.

Por outro lado, a Constituição da República considera a prisão preventiva uma medida de natureza excepcional, sujeita aos prazos fixados na lei, que não deve ser decretada sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável.

O Código de Processo Penal, por seu turno, diz que o STJ concede a providência de habeas corpus a qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, devendo a ilegalidade da prisão fundar-se em: 1) prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente; 2) motivo que a lei não permite; 3) manutenção para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial.

O que estava em causa na petição de habeas corpus, tanto quanto se supõe (e a suposição estará certamente conforme aos factos) é o facto de ela ter sido ordenada e mantida por entidade incompetente e de ser mantida para além dos prazos fixados na lei (reexame da prisão preventiva no prazo máximo de 90 dias e cumprimento das demais formalidades, nomeadamente audição do arguido).

Consultado o longo acórdão elaborado pelo Conselheiro Santos Cabral (55 páginas), não obstante o intenso labor jurídico do seu Autor, apresenta como principais conclusões, muito resumidamente as seguintes:

Em primeiro lugar, aquilo a que poderíamos chamar a delimitação da competência do STJ em matéria de habeas corpus, na qual sobressai com uma força imperativa inusitada a ideia de que a competência do STJ para conceder a providência de habeas corpus está limitada às violações grosseiras e escandalosas da lei.

Em segundo lugar, a confirmação de que a determinação do tribunal competente para julgar os crimes praticados no exercício de funções por titulares de cargos políticos, no caso o Primeiro Ministro, não tem uma resposta unívoca já que para essa questão concorrem dois modos diferentes de encarar a solução – segundo uma, foro especial durante o desempenho das funções e perda desse foro depois do seu desempenho; segundo outra, manutenção do foro especial mesmo depois do desempenho de funções relativamente aos crimes praticados durante o seu exercício. O que imediatamente permite concluir que a providência de habeas corpus, entendida com a configuração acima referida, não é o meio adequado para decidir sobre esta questão, já que a existência de duas correntes opostas de interpretação, desde logo exclui, logicamente, a possibilidade de erro grosseiro ou violação escandalosa da lei. Por outro lado, a confirmação de que a incompetência do tribunal não acarreta a nulidade de todos os actos praticados, mas apenas daqueles que não teriam sido praticados pelo tribunal competente, mantendo-se a prisão preventiva até que sejam reavaliados os pressupostos em que assentou, o que também não configura, necessariamente, uma violação grosseira da lei.  

Em terceiro lugar, o reexame dos pressupostos da prisão preventiva – o outro fundamento do habeas corpus – confirma a ausência de fundamentação da decisão que a mantém e a falta de audição do arguido, qualificando-se tais “falhas”, não obstante a sua importância no plano da defesa dos direitos, liberdades e garantias, como simples irregularidades a apreciar noutra sede (tribunal de recurso) que não a de habeas corpus.

Perante esta decisão, que dizer? Afirmar, como afirmou o advogado de Sócrates, que a decisão de habeas corpus já representa um avanço relativamente ao passado, é verdade, mas é pouco.

A ideia de que a situação que fundamenta o habeas corpus tem de assentar numa afronta clara e indubitável “ao direito à liberdade”, destinada a impedir os chamados “casos indiscutíveis de ilegalidade”, traduz-se numa alteração por via jurisprudencial do estatuído na lei e da sua razão de ser. Ou seja, trata-se de criar direito onde ele já existe, substituindo o disposto na lei e na própria Constituição por uma interpretação que manifestamente as restringe e dificulta a defesa de um valor tão importante como a liberdade.

A questão da privação ilegal da liberdade é sempre uma questão da máxima gravidade. A Constituição e a lei não podem ser "alteradas" por uma jurisprudência que acrescente às palavras da lei adjectivos que dela não constam. Afirmar que o Supremo só deve intervir nos casos de indiscutível ilegalidade ou quando há uma actuação grosseira ou situações de clamorosa ilegalidade, deixando os demais casos à apreciação e decisão do tribunal de recurso, equivale a restringir a providência de habeas corpus a situações que na prática, em princípio, não existem ou quase nunca existem, como a jurisprudência do STJ amplamente o confirma.

Esta orientação jurisprudencial não é aceitável por mais elaboradas e trabalhadas que sejam as decisões que a suportam. O facto de um tribunal de recurso poder vir a reconhecer que a prisão é ilegal não significa que tenha deixado de o ser durante todo o tempo que ela durou. E é isso o que se pretende evitar. O que se pretende evitar é que a arbitrariedade ou mesmo a discricionariedade ou até o simples erro ou as violações da lei por parte do juiz de instrução criminal mantenham o cidadão indevidamente na cadeia até que o tribunal de recurso confirme a ilegalidade dessa prisão.

Ainda poderíamos admitir que naqueles casos em que existe uma factualidade complexa que carece de uma avaliação jurisprudencial demorada para fundamentar a prisão preventiva, como pode acontecer relativamente aos motivos que, em última análise, a justificam, ou seja, a fuga ou o perigo de fuga, o perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou ainda quando pela natureza do crime ou da personalidade do arguido haja o perigo de continuidade da actividade criminosa ou grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o STJ deixasse a apreciação destas matérias, salvo situações excepcionais e escandalosas, para o tribunal de recurso. Mas será inadmissível que quando estão em causa problemas de competência ou de prazos ou do cumprimento de formalidades essenciais o STJ continue a perfilhar a mesma doutrina e faça anteceder a fundamentação da sua posição com adjectivos (inadmissível escandaloso, grosseira, etc.,) que não constam da lei nem da Constituição e têm um efeito altamente restritivo da aplicação da medida.

No caso em apreço não se trata de fazer uma avaliação dos factos em que se fundamenta a prisão preventiva. Essa avaliação pode, sim, ser deixada para o tribunal de recurso. Do que se trata é de incumprimento de prazos, de formalidades essenciais e de regras de competência. E haja ou não dúvidas sobre a interpretação dessas normas, o STJ deve julgar o habeas corpus declarando se a prisão é legal ou ilegal

Pois bem, se o STJ se recusa a analisar estas situações, se remete a decisão para o tribunal de recurso, a que situações se aplica a providência de habeas corpus que a Constituição solenemente consagra? Que situações restam para que o STJ possa exercitar a sua competência? A prisão preventiva ordenada por quem? Por um polícia? Por um bombeiro?

Esta interpretação ultra restritiva da providência de habeas corpus leva na prática à sua inutilidade e transforma a decisão do Supremo numa recusa de jurisdição ou de algo que anda lá muito próximo.

Igualmente inaceitável é a lei exigir o cumprimento de certas formalidades para garantir direitos fundamentais, como a audição do arguido ou o reexame dos pressupostos da prisão preventiva dentro de certos prazos ou a sua fundamentação, e os tribunais, constatada a falta ou o deficiente cumprimento destas formalidades, qualificar esses incumprimentos como simples “irregularidades” das quais não decorrem quaisquer consequências. Dir-se-á que é a lei que procede a essa qualificação. Mesmo que assim seja a defesa dos direitos, liberdades e garantias deveria levar os tribunais nestes casos a fazer uma interpretação da lei mais consentânea com a defesa daqueles valores, ou seja, procedendo exactamente ao contrário do que fazem quando restringem a aplicação da providência de habeas corpus.

Quando está em causa o bem supremo que é a LIBERDADE não podem os tribunais deixar de o defender.

4 comentários:

  1. Como era esperado, ficou no lugar que lhe compete, atrás das grades.
    Os tribunais não vão em cantigas.
    Está enterrado em crimes contra o Estado e foi apanhado na curva. Pretendia concorrer a PR para manter a justiça longe da porta. Azar, era demasiado evidente que a vida de multimilionário que fazia não condizia com os rendimentos.
    Este género de criminosos com apoio de aparelhos partidários, media e blogosfera corrupta e da Maçonaria são os mais difíceis de combater.
    Para bem de Portugal, este não escapa, tantos são os crimes.

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  2. Excelente análise em termos técnicos !...

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  3. O anónimo das 05:01 confunde crimes efectivos com suposições, diz-que-disse e mentiras puras do correio da manhã.
    Ficamos a saber que o seu nivel de inteligencia não dá para mais, mas publicita-lo assim na blogoesfera é o cumulo do narcissismo.

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  4. O anónimo das 05.01 pelos vistos desconheçe um princípio basilar da nossa Legislação Penal, que é a presunção de inocência. Sócrates não está sequer preso, embora pareça, mas detido, visto a prisão resultar de uma sentença condenatória transitada em julgado. No caso dele, detido (como se diz, em "prisão preventiva"),aguarda uma acusação formal, que ainda não existe e nesse sentido, a existir, a constituição da situação de arguido, que ainda não é, nem se sabe se será. O ex-PM é tão só de momento um suspeito de determinados crimes. Apenas. Não cometeu crimes nenhuns até prova em contrário. O anónimo não tem de ser entendido em matéria de Direito, mas seguramente saberá que existe a figura jurídica da presunção de inocência até prova em contrário, ou seja, uma condenação efectiva. Convém pois não beber o que certos pasquins cospem cá para fora, publicando artigos sem critérios de imparciabilidade. "Compreendite?"
    P.

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