OS MEANDROS DE UMA
DECISÃO COMPLEXA
Já no último post dissemos que o Habeas Corpus é uma garantia constitucional que se destina a impedir
que um cidadão possa ser privado da sua liberdade por força de acto de abuso de
poder como aquele que ocorre quando é ordenada ou mantida uma prisão ilegal.
Por outro lado, a Constituição da República considera a prisão
preventiva uma medida de natureza excepcional, sujeita aos prazos fixados na lei,
que não deve ser decretada sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida
mais favorável.
O Código de Processo Penal, por seu turno, diz que o STJ concede
a providência de habeas corpus a
qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, devendo a ilegalidade da
prisão fundar-se em: 1) prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
2) motivo que a lei não permite; 3) manutenção para além dos prazos fixados na
lei ou decisão judicial.
O que estava em causa na petição de habeas corpus, tanto quanto se supõe (e a suposição estará
certamente conforme aos factos) é o facto de ela ter sido ordenada e mantida
por entidade incompetente e de ser mantida para além dos prazos fixados na lei
(reexame da prisão preventiva no prazo máximo de 90 dias e cumprimento das
demais formalidades, nomeadamente audição do arguido).
Consultado o longo acórdão elaborado pelo Conselheiro Santos Cabral
(55 páginas), não obstante o intenso labor jurídico do seu Autor, apresenta
como principais conclusões, muito resumidamente as seguintes:
Em primeiro lugar, aquilo a que poderíamos chamar a
delimitação da competência do STJ em matéria de habeas corpus, na qual sobressai com uma força imperativa inusitada
a ideia de que a competência do STJ para conceder a providência de habeas corpus está limitada às violações grosseiras e escandalosas da lei.
Em segundo lugar, a confirmação de que a determinação do
tribunal competente para julgar os crimes praticados no exercício de funções
por titulares de cargos políticos, no caso o Primeiro Ministro, não tem uma resposta unívoca já que para essa questão concorrem dois modos diferentes de
encarar a solução – segundo uma, foro especial durante o desempenho das funções e perda desse foro depois do seu desempenho; segundo outra, manutenção do foro especial mesmo depois do desempenho de funções relativamente aos crimes praticados durante o seu exercício. O que imediatamente permite concluir que a providência
de habeas corpus, entendida com a
configuração acima referida, não é o meio adequado para decidir sobre esta
questão, já que a existência de duas correntes opostas de interpretação, desde
logo exclui, logicamente, a possibilidade de erro grosseiro ou violação escandalosa
da lei. Por outro lado, a confirmação de que a incompetência do tribunal não acarreta a nulidade de todos os actos praticados, mas apenas daqueles que não teriam sido
praticados pelo tribunal competente, mantendo-se a prisão preventiva até que
sejam reavaliados os pressupostos em que assentou, o que também não configura, necessariamente, uma violação grosseira da lei.
Em terceiro lugar, o reexame dos pressupostos da prisão
preventiva – o outro fundamento do habeas
corpus – confirma a ausência de fundamentação da decisão que a mantém e a
falta de audição do arguido, qualificando-se tais “falhas”, não obstante a sua importância
no plano da defesa dos direitos, liberdades e garantias, como simples
irregularidades a apreciar noutra sede (tribunal de recurso) que não a de habeas corpus.
Perante esta decisão, que dizer? Afirmar, como afirmou o
advogado de Sócrates, que a decisão de habeas
corpus já representa um avanço relativamente ao passado, é verdade, mas é
pouco.
A ideia de que a situação que fundamenta o habeas corpus tem de assentar numa afronta
clara e indubitável “ao direito à liberdade”, destinada a impedir os chamados “casos
indiscutíveis de ilegalidade”, traduz-se numa alteração por via jurisprudencial
do estatuído na lei e da sua razão de ser. Ou seja, trata-se de
criar direito onde ele já existe, substituindo o disposto na lei e na própria
Constituição por uma interpretação que manifestamente as restringe e dificulta a
defesa de um valor tão importante como a liberdade.
A questão da privação ilegal da liberdade é sempre uma questão
da máxima gravidade. A Constituição e a lei não podem ser "alteradas" por uma jurisprudência que acrescente às palavras da lei adjectivos que dela não constam.
Afirmar que o Supremo só deve intervir nos casos de indiscutível ilegalidade ou
quando há uma actuação grosseira ou situações de clamorosa ilegalidade,
deixando os demais casos à apreciação e decisão do tribunal de recurso, equivale
a restringir a providência de habeas corpus
a situações que na prática, em princípio, não existem ou quase nunca existem,
como a jurisprudência do STJ amplamente o confirma.
Esta orientação jurisprudencial não é aceitável por mais
elaboradas e trabalhadas que sejam as decisões que a suportam. O facto de um
tribunal de recurso poder vir a reconhecer que a prisão é ilegal não significa
que tenha deixado de o ser durante todo o tempo que ela durou. E é isso o que
se pretende evitar. O que se pretende evitar é que a arbitrariedade ou mesmo a discricionariedade
ou até o simples erro ou as violações da lei por parte do juiz de instrução
criminal mantenham o cidadão indevidamente na cadeia até que o tribunal de
recurso confirme a ilegalidade dessa prisão.
Ainda poderíamos admitir que naqueles casos em que existe uma
factualidade complexa que carece de uma avaliação jurisprudencial demorada para
fundamentar a prisão preventiva, como pode acontecer relativamente aos motivos
que, em última análise, a justificam, ou seja, a fuga ou o perigo de fuga, o
perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente a aquisição, conservação ou
veracidade da prova ou ainda quando pela natureza do crime ou da personalidade
do arguido haja o perigo de continuidade da actividade criminosa ou grave
perturbação da ordem e tranquilidade públicas, o STJ deixasse a apreciação
destas matérias, salvo situações excepcionais e escandalosas, para o tribunal
de recurso. Mas será inadmissível que quando estão em causa problemas de
competência ou de prazos ou do cumprimento de formalidades essenciais o STJ
continue a perfilhar a mesma doutrina e faça anteceder a fundamentação da sua
posição com adjectivos (inadmissível escandaloso, grosseira, etc.,) que não
constam da lei nem da Constituição e têm um efeito altamente restritivo da
aplicação da medida.
No caso em apreço não se trata de fazer uma avaliação dos
factos em que se fundamenta a prisão preventiva. Essa avaliação pode, sim, ser
deixada para o tribunal de recurso. Do que se trata é de incumprimento de
prazos, de formalidades essenciais e de regras de competência. E haja ou não
dúvidas sobre a interpretação dessas normas, o STJ deve julgar o habeas corpus declarando se a prisão é legal ou ilegal
Pois bem, se o STJ se recusa a analisar estas situações, se
remete a decisão para o tribunal de recurso, a que situações se aplica a
providência de habeas corpus que a
Constituição solenemente consagra? Que situações restam para que o STJ possa
exercitar a sua competência? A prisão preventiva ordenada por quem? Por um
polícia? Por um bombeiro?
Esta interpretação ultra restritiva da providência de habeas corpus leva na prática à sua
inutilidade e transforma a decisão do Supremo numa recusa de
jurisdição ou de algo que anda lá muito próximo.
Igualmente inaceitável é a lei exigir o cumprimento de certas
formalidades para garantir direitos fundamentais, como a audição do arguido ou
o reexame dos pressupostos da prisão preventiva dentro de certos prazos ou a sua
fundamentação, e os tribunais, constatada a falta ou o deficiente
cumprimento destas formalidades, qualificar esses incumprimentos como simples “irregularidades”
das quais não decorrem quaisquer consequências. Dir-se-á que é a lei que
procede a essa qualificação. Mesmo que assim seja a defesa dos direitos,
liberdades e garantias deveria levar os tribunais nestes casos a fazer uma
interpretação da lei mais consentânea com a defesa daqueles valores, ou seja,
procedendo exactamente ao contrário do que fazem quando restringem a aplicação
da providência de habeas corpus.
Quando está em causa o bem supremo que é a LIBERDADE não
podem os tribunais deixar de o defender.
Como era esperado, ficou no lugar que lhe compete, atrás das grades.
ResponderEliminarOs tribunais não vão em cantigas.
Está enterrado em crimes contra o Estado e foi apanhado na curva. Pretendia concorrer a PR para manter a justiça longe da porta. Azar, era demasiado evidente que a vida de multimilionário que fazia não condizia com os rendimentos.
Este género de criminosos com apoio de aparelhos partidários, media e blogosfera corrupta e da Maçonaria são os mais difíceis de combater.
Para bem de Portugal, este não escapa, tantos são os crimes.
Excelente análise em termos técnicos !...
ResponderEliminarO anónimo das 05:01 confunde crimes efectivos com suposições, diz-que-disse e mentiras puras do correio da manhã.
ResponderEliminarFicamos a saber que o seu nivel de inteligencia não dá para mais, mas publicita-lo assim na blogoesfera é o cumulo do narcissismo.
O anónimo das 05.01 pelos vistos desconheçe um princípio basilar da nossa Legislação Penal, que é a presunção de inocência. Sócrates não está sequer preso, embora pareça, mas detido, visto a prisão resultar de uma sentença condenatória transitada em julgado. No caso dele, detido (como se diz, em "prisão preventiva"),aguarda uma acusação formal, que ainda não existe e nesse sentido, a existir, a constituição da situação de arguido, que ainda não é, nem se sabe se será. O ex-PM é tão só de momento um suspeito de determinados crimes. Apenas. Não cometeu crimes nenhuns até prova em contrário. O anónimo não tem de ser entendido em matéria de Direito, mas seguramente saberá que existe a figura jurídica da presunção de inocência até prova em contrário, ou seja, uma condenação efectiva. Convém pois não beber o que certos pasquins cospem cá para fora, publicando artigos sem critérios de imparciabilidade. "Compreendite?"
ResponderEliminarP.