ESBOÇO DE ANÁLISE DE UM
PENSAMENTO POLITICO-CULTURAL
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa,
tem pelo seu passado de comentador político televisivo, pelo seu estilo de
comunicador, pela sua própria personalidade e pelo Presidente que o antecedeu todas
as condições para ser amado pelo povo português.
E isso está a verificar-se e vai certamente intensificar-se
com o tempo. Para além daquilo que nele já apontava nesse sentido, a
informalidade da comunicação, o modo simples como se exprime, a simpatia que
irradia nos contactos pessoais, o curriculum universitário que sempre encerra
aos olhos dos portugueses um saber que outros não têm, Marcelo teve a enorme vantagem
de ter sido antecedido por Aníbal Cavaco Silva.
Cavaco Silva, outro caso de estudo, porque tendo sido o
político que em Portugal mais tempo esteve no poder por via eleitoral, ostenta
a inacreditável particularidade de ter ganho cinco eleições, quatro delas por
maioria absoluta, sem que ninguém tenha votado nele. Dir-se-ia que os
portugueses se revêem nele, mas que simultaneamente se envergonham dele. É um
pouco como aqueles casamentos em que a noiva era escolhida por conveniência,
mas que depois de casada nunca mais era mostrada pelo marido. Não porque a
pudessem cobiçar, mas porque era feia.
Marcelo teve essa vantagem. A vantagem de suceder a um
presidente sectário, rancoroso, mesquinho, ultra-convencido das suas
capacidades, culturalmente menor e incapaz de perceber a diferença.
Enquanto Cavaco é a expressão dura de um fascismo cultural,
que informa todo o seu pensamento político, Marcelo é a expressão doce de um “fascismo”
cultural pretensamente consensual ainda muito impregnado na sociedade
portuguesa.
Nem sabemos se Marcelo tem verdadeira consciência dos
pressupostos culturais em que assenta a sua acção politica. Certamente que
Marcelo se revê nos valores por que pauta politicamente a sua conduta, mas é
muito duvidoso que alguma vez tenha empreendido uma verdadeira análise crítica
desses valores. Mais do que valores são “sentimentos que o ligam à terra” e que
o fazem ser como é: “ saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade
na inclusão, o milagre de Ourique”. Imagine-se, “O milagre de Ourique!”.
É essa “doçura no falar e essa generosidade na inclusão” que
o leva a citar Mouzinho de Albuquerque (cujo nome omite), como grande herói nacional,
sem sequer se dar conta que ligada às campanhas de África está uma das páginas
mais dramáticas dos povos coloniais, mais dramática do que a própria escravatura.
É esse “fascismo cultural doce” que o leva a citar esses feitos gloriosos dos
portugueses perante os descendentes directos das vítimas como se da coisa mais natural
se tratasse. Tudo isto, porque no pensamento de Marcelo nem sequer aflora o
papel da vítima, tal é a pretensa consensualidade da acção em que assenta o seu
discurso. O que nele escondidamente está presente é a capacidade de os portugueses terem
sabido marcar pontos – e que pontos – perante a pérfida Albion.
E é tudo assim. Ambos os discursos que até hoje fez, o de
ontem, no Parlamento, e o de hoje, ao corpo diplomático, assentam nos mesmos
pressupostos, nesta grandeza pátria acriticamente assumida e outras vezes propositadamente
omitida por conveniência política, como é o caso do nosso relacionamento
histórico com Espanha.
Dirão alguns dos que lêem estas linhas: não é função do
Presidente da República criar atritos com terceiros onde eles podem ser evitados;
e é função do Presidente da República estimular o sentimento pátrio e o amor-próprio
dos portugueses. Certamente. Esses são objectivos que ninguém com um mínimo de
senso contestará. O que se contesta, ou pode contestar, é o modo de chegar a
eles; é o pressuposto ideológico em que se fundamentam.
Politicamente, não há nada a acrescentar ao que aqui foi
escrito, em 25 de Janeiro, no comentário à vitória eleitoral. O que então se
disse, e que a seguir se transcreve, parece constituir, por o que agora voltou
a ser dito, o verdadeiro objectivo político de Marcelo.
“(…) Interpretando correctamente o discurso da vitória, um discurso que
Marcelo teve a preocupação de escrever e de ler para se não deixar levar pela
emoção do momento, o que dele ressalta é a vontade política de contribuir,
através da sua presidência, para a “existência” de um país que seja governado
ao centro, seja pelo PS seja pelo PSD. Por outras palavras, por um país assente
no compromisso das grandes forças do centro político relativamente a todas as
questões fundamentais da governação. Um país que precisa, para que este
desiderato se materialize, da substituição das lideranças do PS e do PSD por
lideranças capazes de interpretar e pôr politicamente em prática aquilo que
Marcelo entende ser a vontade do país real.
Quando Marcelo apela ao compromisso e ao entendimento, como frequentemente
ontem fez no discurso da vitória, não se está a referir, como é óbvio, ao
compromisso entre as forças de esquerda, nem à vontade de trazer para a área da
governação forças que desde o primeiro governo constitucional dela têm estado
arredadas. Pelo contrário, o que Marcelo pretende é reforçar o entendimento
entre dois grandes partidos do centro, um do centro esquerda, outro do centro
direita. Para isso vai ter de apoiar todas as “conspirações” que num e noutro
lado visem derrubar as actuais lideranças”.
Também sob este aspecto, Marcelo
se demarca ostensivamente de Cavaco. Cavaco, à bruta, contra a Constituição e
contra a democracia, não teve pejo em afirmar raivosa e rancorosamente que esses
tipos de esquerda, esses subversivos inúteis e perigosos não têm lugar na nossa
“democracia”, embora se tenha depois
visto obrigado a deglutir o enorme sapo que levou atravessado na garganta na
sua reforma política para a Travessa do Possolo.
Marcelo jamais diria ou dirá o que
Cavaco afirmou. Marcelo também acha que a solução encontrada não é boa, mas
como tem outra noção do tempo político, entende inteligentemente que não tem de
se expor, tanto mais que há quem esteja preparado para fazer esse trabalho por
ele. Trabalho que aliás já começou e somente não está concluído porque a “questão
espanhola” ainda não está fechada.
Como também aqui já dissemos, o
nosso próximo futuro está intimamente ligado à solução que vier a ser
encontrada para a crise espanhola.
Para concluir a apreciação dos
discursos de Marcelo, lembrar apenas que depois de toda a “doçura patriótica”
derramada nos dois discursos, nem uma palavra de crítica à ignominiosa
chantagem da Comissão Europeia, da “Europa”, sobre Portugal exercida por razões
retintamente ideológicas, apesar de as divergências ideológicas não respeitarem
a um verdadeiro confronto de sistemas, mas apenas e só a duas formas diferentes
de encarar a gestão do capitalismo! Mas aqui fala mais alto a voz dos
fundamentalistas, que só vêem uma forma eficaz de calar a dissidência: eliminando
os cismáticos!
Das reacções aos discursos de
Marcelo, nomeadamente das reacções ao discurso de posse, nem uma palavra para
já, por razões óbvias, sem deixar de reconhecer que no actual contexto não
seria fácil, nem popular, manter distâncias.
Gostei bué (temos que dar este toque de juventude e de rappers, não é ?). Estás cada vez melhor.
ResponderEliminarÓptimo. Ainda bem que gostaste. Grande abraço.
ResponderEliminarFosse Cavaco a referir Mouzinho de Albuquerque, o que derrotou e humilhou o herói da resistência moçambicana, Gungunhana, exibido como "troféu" no século XIX e hoje perante a "Representação" Oficial da República de Moçambique, após uma longa e sangrenta Guerra ~ Colonial para uns, de Libertação para outros ~ o que se diria ? Fosse Cavaco e não Marcelo a invocar o desde Alexandre Herculano desmistificado "Milagre" de Ourique, contra a "infiel" moirama em cristã Cruzada e teríamos uma nova queda do Carmo e da Trindade ! E queriam que a "esquerda" no Parlamento duma República laica aplaudisse pérolas ou "morcelas" deste calibre ? By the way: porque faltou aos aplausos o líder do PSD, o senhor dr. Passes de Coelho, algures na "pérfida" Albion ?
ResponderEliminarExactamente. Mas como o país estava carente de um Presidente pelo qual se pudesse apaixonar, tudo é perdoado enquanto a paixão se mantiver.
ResponderEliminarMuito bom.
ResponderEliminarBoa!
ResponderEliminar“O milagre de Ourique!”
“fascismo cultural doce”
Registo
« o herói da resistência moçambicana, Gungunhana»
ResponderEliminarUm descendente de conquistador fugido de terras do Chaka zulu passa a resistente moçambicano para compor o ridículo quadro 'progressista' que se orgulha em diminuir tudo o que seja a acção portuguesa fora do rectângulo.
Não tarda recolhemos a bandeira aos limites do condado portucalense!
È um bocado ridículo falar em, por exemplo, resistência "moçambicana". Moçambique foi "feito" pelos portugueses em circunstâncias históricas que foram as que foram. Quem diz Moçambique pode dizer Angola. Esta laracha politicamente correcta já enjoa. Até os brasileiros se dão ao luxo de invectivar os colonialistas portugueses, identificando-me a mim como representante desses execráveis que, curiosamente, são antepassados deles.
ResponderEliminarMarcelo
ResponderEliminaro "verdadeiro" pastel de Belém
prepara o 2º mandato
Os comentadores que se insurgiram contra a crítica à exaltação de Mouzinho de Albuquerque, com todo o respeito, não compreenderam a crítica que no Post se faz ao estilo de Marcelo, aos pressupostos culturais da sua acção política. Enfim, uns têm uns pressupostos, outros têm outros. Mas, francamente, prefiro não encontrar no "Milagre de Ourique" - que curiosamente só ocorreu no século XIX - uma das causas da independência de Portugal. Do mesmo modo que prefiro não fundamentar a grandeza de Portugal nas "campanhas de África" do século XIX, mesmo que à primeira vista (e essa é a vista de Marcelo) elas tenham sido conduzidas contra os ingleses. Muito mais importante foi o relacionamento que a Coroa portuguesa soube manter em África com os povos africanos, principalmente até D. Sebastião, contra a vontade do qual ocorreram em África (Angola) os primeiros conflitos graves com africanos. Mas isso são contas de outro rosário, do rosário dos Jesuítas...
ResponderEliminarAcho singular criticar o que Marcelo pretende fazer mas não o diz, subentende-se, uma quase capacidade mediânica/chamânica! SIC! acrescento só o que escrevi no dia 9 após a tomada de posse. claro que o uso da fórmula V.Ex.ª Senhor Presidente é para me demarcar do politicamente grosseiro a que tinha acabado de assistir:
ResponderEliminar"Sua Ex.ª o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, nós, a iliteracia democrática da nossa Esquerda e a consequente minha vergonha (leia-se: não me revejo nas que deviam ser as minhas declarações e forma de se estar em democracia) em pertencer à esquerda:
Sua Ex.ª o meu Presidente da República fez um discurso que, não sendo meu costume ser bajulador para com as Instituições, classifico de mais que honesto, quer no conteúdo quer nas citações, não digo de esquerda (mesmo que proviesse da área de esquerda não o devia ser) dado ser presidente de todos os portugueses, mas regozijo-me por ter sido profundamente democrático na abrangência e amplitude do temas tratados, na colocação desses mesmos temas na comunidade nacional, na comunidade CPLP, na comunidade UE e Internacional. Democrático no apelo à Constituição, à cidadania, ao 25 de Abril e à sua capacidade em transformar um império (não gostamos do termo mas era-o) numa comunidade de países independentes de língua portuguesa. Mais não acrescento pois creio que todos ou assistimos ou temos possibilidade o ler.
Perante o acima dito como podemos explicar que o BE, o PCP e Verdes, não só não tenham aplaudido como tenham proferido declarações não só bafientas, como mais uma vez com a auto-afirmação de impolutos e portadores (sãos!?) de balofa superioridade. As Senhoras que conseguiram dar um novo respiro ao BE parece estarem a exaurir a sua força inovadora e propulsiva ... continuamos assim, na miséria cultural enquanto políticos da pós queda de muros, barreiras e sobretudo de falsas revoluções. Constatamos que 80% do que Sua Exª o Senhor Presidente afirmou afirma-o com frequência a esquerda, deixa de ser verdade, ou oportuno se afirmado por outrem? Ou então ainda pior, não se percebeu, pois alguns conceitos de normal aquisição foram reiterados fora dos chavões a nós tão caros. Como não perceber que o aplaudir o juramento, significa sim aplaudir Sua Ex.ª o Senhor Presidente, mas sobretudo e muito mais importante significa aplaudir a AR que promulga e chancela o termo de um acto fundamental e constituinte de qualquer democracia, o eleitoral, que juntamente com o aplauso de Sua Exª o Senhor Presidente se aplaudem os restantes Candidatos, de par dignidade, e que conferiram ao acto a espessura democrática necessária, e por último, mas não últimos, os Cidadãos Eleitores que tornaram possível o todo! Depois a tradução para o exercício quotidiano da política, o saber que a condição primeira para exigir o respeito por si próprios inicia-se respeitando os demais agentes que enformam a Instituição Democracia. Se o agente Presidência da República não respeitar o BE, o PCP ou os Verdes, a quem apelamos, após o precedente de peso que criámos, isto é fabricá-mos-Lhe um álibi. Se o fizer erra, os maus exemplos não se copiam, mas não creio que o faça, dado que obtuso não é. Fico-me por aqui, já externei a profunda desilusão que o meus me causaram"
Eu também acho que a solução não é boa. O espectáculo penoso da tomada de posse isso demonstra, não sei se Marcelo o pensa, dado que não o disse. Penso sim que é a melhor possível, não sei se Marcelo o pensa como eu, dado que igualmente o não disse. Este anoso hábito de praticar processos às intenções é-nos tão comum que nem damos por ele. Se olhamos para o actual governo, parece-nos de uma normalidade corriqueira, que lá está há já um ror de tempo. Como é possível que tenhamos esperado 40 anos por este governo tão singelo quão banal! Não terá sido esta nossa propensão ao purismo impoluto que nos coloca no orgulhosamente sós alheios a toda e qualquer mistura contagiosa?
ResponderEliminarCurioso que seja um post com aval de AM Hespanha a contar com tanto intérprete historiográfico. Os cultores das autoridades pessoais, querendo contrariar o parecer da maior autoridade portuguesa em assuntos de história.
ResponderEliminarComo hei-de dizer? Apenas que nada tenho a comentar...
ResponderEliminarÉ tarde volto amanhã - Só um apontamento assinado sobre a autoridade: também li que o A. Hespanha afirmou ter gostado, e tal facto de forma alguma o diminuiu, como o considerei menos autoridade do que antes o considerava. e sobretudo nunca suspeitei que pelo facto de ele gostar de algo, eu estaria na obrigação de tal opinião partilhar, pior tenho a certeza absoluta que nem ele. Essa de termos que partilhar a opinião da "autoridade é arquétipo com mais de 40 anos. Gostar é atributo que naturalmente lhe assiste, como me assiste não gostar, até porque seguramente gostou por alguns (ou muitos) motivos, eu desgostei provavelmente por outros. Só uma ressalva, nunca me considerei um cultor da própria autoridade pessoal, apesar de ser um singelo (ténue) cultor do elogio do banal (não da banalidade), muito menos me assaltou o despudor de contrariar a autoridade do A Hespenha, que aliás sempre reconheci, tenho é sérias dúvidas que ele goste de ser apostrofado como o "maior".
ResponderEliminarAo JM Correia Pinto, que não comenta apenas acrescento que amanhã volto a comentar, mas não recorrendo ao já escrito, que por esse motivo, a uma leitura descuidada, pode parecer nada ter a ver, ou de difícil compreensão
Fins Santana não fez nenhum comentário de cariz historiógrafico, escusaria pois de se juntar aos que o fizeram - os josės e isso.Era a esses, sempre tão sabujos a tudo que cheire a poder, que a autoridade devia interessar.Hespanha pode desdenhá-la,mas quem a glorifica não se pode aproveitar da modéstia de quem sabe.
ResponderEliminarPeço desculpa Anónimo das 11,39 de 16 de Março 2016. Também julguei isso, mas como vinha a seguir ao meu e não indicava os josés. fui reler o meu , e algumas das coisas que afirmo só se lá chega primeiro por análise empírica historiográfica depois implementa-se sobre a teorização consona ao que é recorrente. ex: ------ "Como não perceber que o aplaudir o juramento, significa sim aplaudir Sua Ex.ª o Senhor Presidente, mas sobretudo e muito mais importante significa aplaudir a AR que promulga e chancela o termo de um acto fundamental e constituinte de qualquer democracia, o eleitoral, que juntamente com o aplauso de Sua Exª o Senhor Presidente se aplaudem os restantes Candidatos, de par dignidade, e que conferiram ao acto a espessura democrática necessária, e por último, mas não últimos, os Cidadãos Eleitores que tornaram possível o todo!" ------ É rebuscado concordo mas foi a única passagem que poderia cheirar e cheira a enquadramento histórico e partilhado do exercício da democracia, Mais uma vês me penitencio por não ter sido capaz de entender que não era dirigido ao meu comentário
ResponderEliminarProvavelmente o comentário "nada tenho a comentar" do JM Correia Pinto também se refere a esses "josés". Igualmente me penitencio, e aqui acrescento profundo agradecimento, pois a resposta iria dar-me uma trabalheira, e para um preguiçoso crónico é verdadeiro maná
ResponderEliminarSó um apontamento sobre a história, da qual não sou especialista, nem sequer curioso apurado, mais que apontamento é pergunta ao A Hespanha: dado que sempre ma habituei a não contestar a história, mas sim a constatá-la. Sempre que se contesta pressupõe-se um juízo moral, só que essa moral é a dos nossos dias, e não a da época. Julgo sim que podemos ir até opções diferentes para situações semelhantes ocorridas na época e apenas alvitrar a preferência de umas comparadas às outras, na medida do possível limitando-nos aos diferentes resultados na época gerados. Se O A Hespanha ler agradeço-lhe a resposta
ResponderEliminarDaniel Santana