UMA PERSPECTIVA
A crise
de 69 como qualquer outro movimento social, estudantil ou não, não nasceu do
nada nem aconteceu por inspiração de uma iluminada vanguarda de dirigentes. A
crise de 69 insere-se antes de mais no movimento associativo estudantil da
segunda metade do século XX, cujos contornos e conteúdos foram variando com o
tempo e os contextos, desde a luta, em 1956, contra o Decreto-Lei 40 900, muito
heterogénea, por força da integração de elementos politicamente muito
diferenciados, principalmente pelos reflexos do decreto na secção de futebol da
Associação Académica de Coimbra; passando pelas vitórias eleitorais de 1960/61
e 1961/62, que marcaram um tempo novo condizente com a década então iniciada e
o afastamento, que se manteve durante toda a década, da direita da direcção da
AAC, afastamento que culminou com a crise de 62, a prisão e a expulsão de
muitos estudantes de todas as universidades ou apenas da Universidade de
Coimbra ou de Lisboa, o encerramento da Associação Académica, até à sua
reabertura em 1963, e as vitórias eleitorais de 1963/64 e de 1964/65, que o
Governo breve se encarregou de jugular mediante uma repressão sem igual desde a
II Guerra Mundial, encerrando por tempo indeterminado a AAC, em 1965, prendendo
inúmeros estudantes em Coimbra e em Lisboa, expulsando durante vários anos de
todas as universidades dirigentes associativos, mobilizando para o serviço
militar centenas de estudantes em todas as universidades e empurrando por essas
mesmas razões dezenas de outros para o exílio.
Falar da
crise de 69 sem ter em conta história mais próxima do movimento associativo e
sem a integrar no contexto sócio-político em que ela própria ocorreu será
sempre uma explicação amputada de elementos essenciais à sua compreensão.
Passemos
agora ao contexto sócio-político da crise de 69. Três anos tinham passado desde
o encerramento da Associação, desde as expulsões dos dirigentes académicos e
menos de um ano depois da investidura de Marcello Caetano como Chefe do Governo
por incapacidade física de Salazar. Marcello Caetano, um homem do Estado Novo
desde a primeira hora, era alguém que Salazar teve quase sempre por perto,
principalmente quando dele necessitava ou a correlação de forças no seio do
partido único o exigia, quer para contrabalançar certas correntes a que Salazar
recusava conceder hegemonia, quer pelo peso dentro da União Nacional dos que,
desde a Ordem Nova, sempre se mantiveram fieis a Marcello. Mas nunca foi um
homem em quem Salazar confiasse completamente, se é que alguma vez confiou em
alguém como seu par, presente ou, hipoteticamente, futuro.
Marcello,
por força deste relativo e hábil distanciamento a que Salazar sempre o votou,
soube disso tirar excelente partido, deixando que à sua volta se criassem
algumas lendas, que rapidamente se desvaneceram pouco depois de se ter visto
investido nas responsabilidades políticas de sucessor do velho ditador, mas que
enquanto duraram serviram o efeito pretendido.
Em
primeiro lugar, a lenda de que era um homem com tendências liberais, muito
alimentada por um séquito de ex-alunos devotos que sempre apostaram na ascensão
de Marcello ao poder supremo do pais como meio, quanto mais não fosse, de na
repartição das benesses do poder algo lhes poder caber – lenda que o próprio
Marcello fez questão de manter quando na tomada de posse aludiu a algumas
“liberdades que se desejaria ver restauradas”; depois, a ideia de que era um
homem com especial sensibilidade para os problemas estudantis – por ter
discordado da intervenção da polícia na Universidade de Lisboa em 1962 e se ter
demitido do cargo de Reitor; e, finalmente, até sobre a Guerra Colonial corriam
rumores, atestados por pessoas merecedoras de todo o crédito, de que Marcello
tinha dificuldade em aceitar que a juventude portuguesa continuasse a ser
sacrificada numa guerra aparentemente sem solução. E sobre tudo isto, para dar
mais credibilidade às lendas, a oposição ostensiva e sem rodeios, logo em 69,
que os duros do regime, velhos e jovens (em Coimbra os da Cidadela, por
exemplo) lhe moveram por o considerarem um fraco e um sucessor incapaz de
garantir a continuidade e a riqueza da herança recebida.
Tudo
isto fez com que Marcello Caetano fosse visto, por largos sectores da oposição,
como um homem diferente de Salazar de quem algo, por pouco que fosse, haveria a
esperar. Estava criado no subconsciente colectivo um novo clima político que o
próprio crescimento económico ajudava a credibilizar, apesar de a acção
política quotidiana o desmentir. Importante, porém, para as grandes
movimentações colectivas não é tanto o que realmente está a acontecer, mas o
que as pessoas entendem ou acham o que está a acontecer. É isso que as
impulsiona ou não para a acção, é isso que lhes dá ou tira força.
Assim, a
chegada de Marcello ao poder deu força e potenciou um profundo descontentamento
contra o autoritarismo reinante, a ausência de liberdade e uma forte vontade de
viver um tempo semelhante ao que se estava vivendo noutros países. A década de
60, é bom não esquecê-lo, simboliza o apogeu da social-democracia na Europa e
até na América e, não obstante, é nesses países – França, Alemanha, Itália,
Estados Unidos - que as revoltas estudantis são mais violentas, a contestação
ao regime é aparentemente mais profunda e onde os ventos libertários sopram com
mais força, sempre apoiados doutrinariamente em revoluções distantes de que
verdadeiramente só se conheciam as palavras de ordem!
Assim, o
marcelismo, apesar de ser o contrário do que as lendas apregoavam, não deixava
de ser também uma caricatura do salazarismo e isso fez com que "almas
antes muito aprisionadas” pelo terror da repressão mais facilmente se tivessem
libertado e estivessem predispostas a participar numa luta que seguramente não
teria, no plano individual e colectivo, como consequência retaliações tão
gravosas e violentas como as que em 65 tiveram lugar
A isto
acresce, na caracterização do contexto sócio-político reinante, a guerra
colonial, a ostracização a que o pais estava internacionalmente votado, o
sacrifício sem retorno de gerações de jovens que viam o seu futuro imediato
comprometido ou a própria vida, pela participação forçada numa guerra distante,
conduzida em condições adversas e que tendia a eternizar-se por ser uma peleja
militar sem saída levada a cabo num contexto de um conflito politicamente
insolúvel.
Não ter
isto em conta na interpretação da crise de 69 ou fazer comparações com o que se
passou antes, nomeadamente em 65, num contexto político-social muito diferente,
só pode levar a interpretações defeituosas e pouco esclarecedoras do que
realmente aconteceu.
Em 65, a
repressão exercida sobre os estudantes não teve paralelo com nenhuma outra
dessa década. Os estudantes foram impiedosamente expulsos de todas as
universidades, foram presos, outros exilaram-se para não serem presos e outros
ainda foram compulsivamente incorporados no serviço militar (Janeiro de 65), a
meio do curso, contra os procedimentos habituais, em número nunca visto nem
antes nem depois.
Igualmente
errado será supor, independentemente dos seus méritos, que foi a clarividência
política dos dirigente associativos de então – e muitos eram – o sinal
distintivo e impulsionador de um movimento de grandes dimensões, concretizado
sem medo e em permanente espírito de festa, como tão bem ilustra a banda
desenhada do Carlinhos Santarém. Essa é uma ideia redutora que deixa escapar o
que de mais genuíno e espontâneo se passou em Coimbra durante cerca de três
meses
A crise
de 69 aconteceu nessa data e não antes, não por haver dirigentes académicos que
souberam conduzir a luta com uma arte política que faltou aos anteriores, mas
por as condições serem então muitíssimo diferentes das que antes existiram. Não
está em causa o mérito nem o desempenho dos múltiplos dirigentes associativos
de 69, nem estas palavras têm em vista contestar a sua actuação junto dos
múltiplos sectores do movimento que com eles mais se identificavam, mas apenas
inserir essa actuação no verdadeiro contexto da época, no qual a espontaneidade
estudantil desempenhou um papel determinante.
Estes
dois factores, o marcelismo e a guerra colonial, aliados a um cheiro a Maio 68,
é que são as verdadeiras causas do que se passou em 69.
A guerra
colonial em 69 já desempenhava um papel muito diferente do que tinha
desempenhado antes, tanto junto dos estudantes como da sociedade em geral.
Apesar de contestada de início, ou até antes de verdadeiramente começar a
sério, no seio do próprio regime, muito por força da oposição americana ao
colonialismo português, a guerra colonial adquiriu logo a seguir um
generalizado apoio patriótico – “Angola é nossa”, “para África rapidamente e em
força”, “só temos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem” - foram
algumas das muitas palavras de ordem que mobilizaram a sociedade portuguesa e
ajudaram a criar uma forte ilusão de generalizado apoio ao Governo e ao regime
que tão enfraquecidos haviam saído das eleições presidenciais de 58. Em 69 já
se percebia que a vitória militar não passava de uma ilusão, que o conflito
político que o regime encerrava no seu próprio ventre era insolúvel, que o
colonialismo qualquer que fosse o seu nome ou o seu disfarce não tinha saída e
que a recusa da juventude em participar na guerra era uma verdade que o exílio
e a emigração de milhares de jovens portugueses diariamente exibiam e
confirmavam.
Foi este
contexto-sócio político que permitiu que os estudantes tivessem participado em
massa no movimento estudantil e tivessem desempenhado um papel dinamizador que
obrigou os dirigentes a acompanhá-los nas suas aspirações sob pena de ficarem
completamente isolados
Além
disto, é preciso também dizer, para não adulterarmos o que se passou, que a
crise de 69 é uma espécie de confederação de movimentos, com vários polos
dirigentes, e uma grande, enorme, espontaneidade estudantil.
A prova
de que no seu subconsciente as pessoas intuíam estar a viver um tempo diferente
do que antes conheceram, não está apenas no facto de muitos dos que em 69
participaram na luta, já lá estarem antes, sem participação activa nas lutas
académicas dessas épocas, mas principalmente no facto de esta crise ter
terminado como se sabe, ou seja, em termos que não têm paralelo com nenhuma
outra ocorrida durante o fascismo, sendo necessário recuar até ao século XIX ou
ao começo da República para encontrar algo semelhante.
Finalmente,
a tentativa de filiar o 25 de Abril na crise académica de Coimbra de 1969 é
algo que não faz o menor sentido, não apenas porque o movimento estudantil
ficou praticamente circunscrito à universidade e a uma parte da cidade – a mais
afectada pela suspensão da Queima das Fitas – sem desempenhar no contexto
nacional qualquer papel dinamizador de um movimento social em larga escala, que
não existiu, mas também por ser incompreensível para o comum dos mortais a
razão de ser do protesto dos estudantes. Lembro a este respeito a confidência
que o saudoso Vítor Campos num programa de televisão realizado já muito depois
do 25 de Abril sobre a crise académica de 69, a propósito de um episódio
ocorrido no Jamor antes de iniciada a final da Taça de Portugal, entre o
Benfica e a Académica, em que esta, obedecendo ao luto académico, entrou em
campo de luto, tendo esse facto suscitado a perplexidade de um jogador do
Benfica (Simões) que antes do jogo se iniciar lhe perguntou; “Ó
Vítor, vocês estão de luto por quem?”, tendo este respondido: “No
fim do jogo, explico-te”.
Portanto,
em vez de se tentar encontrar uma filiação que não existe, mais correcto nos
parece dizer que a crise académica de 69 tem a sua génese em causas não muito
diferentes das que mais tarde, potenciadas pelo passar dos anos, originaram o
25 de Abril
Certamente
que os ganhos de um movimento associativo estudantil bem como das sucessivas
crises que factores conjunturais potenciaram não se avaliam, no quadro da luta
antifascista, apenas em função dos resultados imediatos alcançados face às
reivindicações específicas de cada uma dessas épocas, mas antes pelo efeito
geral obtido, nomeadamente o desgaste da ditadura e pelos efeitos que
esse mesmo movimento acaba por deixar nos milhares que nela participaram depois
de terem deixado a universidade.
A
frequência estudantil de uma qualquer escola, a universidade, por exemplo, é,
adaptando as palavras de Heráclito, algo em movimento, permanente, constante,
porém nunca a mesma. Assim, mais importante que os efeitos de uma determinada
luta para a frequência estudantil dessa escola são os efeitos que dessa mesma luta
perduram naqueles que nela participaram. E neste sentido é indiscutível que os
efeitos do movimento associativo de 69 se fizeram sentir nos anos subsequentes
da ditadura tanto nas diversas actividades profissionais desses licenciados, como nas
forças armadas, cá ou África, já que praticamente todos foram mobilizados para
o serviço militar e, obviamente, no 25 de Abril.
Por esta
específica natureza do movimento estudantil é que as lutas académicas contra a
ditadura fascista teriam sempre de ter mais em conta os seus efeitos directos e
indirectos sobre a ditadura do que os resultados académicos alcançados e
essa também a razão por que no movimento estudantil perde sentido a preparação
de uma luta a longo prazo. Como preparar uma luta a longo prazo com uma
população estudantil permanentemente flutuante?
Finalmente,
não seria justo nesta evocação dos 50 anos do 17 de Abril não referir aquele
que do nosso ponto de vista foi o grande herói do movimento associativo de 69,
um herói colectivo, a quem em última análise se deve tudo o que de inovador,
espontâneo e inesperado se passou – o Estudante de Coimbra!
De
referir também os que individualmente mais se notabilizaram na luta estudantil
contra a ditadura fascista, começando pelos que, tendo marcado assinalada
presença noutras épocas do movimento associativo, eram ainda estudantes em
1969, como é o caso de José Barros Moura,
João Amaral, já falecidos, e Rui Namorado. De referir igualmente o
papel importantíssimo desempenhado em 69 por Osvaldo de Castro, Fernanda
da Bernarda e Francisco Sardo,
todos falecidos; e depois os nomes incontornáveis de Alberto Martins (que passará à História como o homem que interpelou
publicamente Américo Thomaz), Celso
Cruzeiro, José Matos Pereira, José Gil, Carlos Baptista e Fernando
Catroga, entre tantos outros!
Este artigo é dedicado
àqueles dirigentes associativos que, em condições muito difíceis, sofreram a
prisão, a expulsão da universidade, se sujeitaram ao exílio, para manter viva
no seio dos estudantes a luta antifascista contra a ditadura salazarista, entre
os quais destaco, os meus contemporâneos em Coimbra, Eurico de
Figueiredo, Lopes de Almeida, Manuel Alegre, Valentim Alexandre, Correia de
Campos, Octávio Cunha e Pedro Mendonça, entre muitos outros.
a crise de 69 foi mais um mito de meia-dúzia de milhares de pseudo-esclarecidos e indignados a reboque do maio de 68
ResponderEliminarhoje até 600 coletes amarelos da cor certa param um país
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