AINDA SOBRE A REJEIÇÃO DO ORÇAMENTO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
(Texto publicado no FB em 29 de Outubro de 2021)
A recente rejeição do Orçamento de Estado para 2022, por voto contra de toda a direita, do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português bem como as consequências que, segundo o Presidente da República, lhe estão associadas, têm dado lugar a múltiplas reacções que vão desde a relativa apreensão com que o PSD as acolhe até à efusiva satisfação do Chega, da Iniciativa Liberal e também, paradoxalmente, do CDS, porventura supondo que ancorado no PSD poderá manter a sua actual bancada parlamentar. Do outro lado, à insatisfação do PAN que se absteve e preferia a continuação da legislatura até ao fim, junta-se o que parece ser o alívio indisfarçável do PS; enquanto da parte do PCP e do BE, não havendo o menor arrependimento pela votação efectuada por ela corresponder à análise exaustiva e cuidada que fizeram da situação, como se demonstra pela permanente exposição pública dos fundamentos dos seus argumentos, sabe-se também que os espera um trabalho sério, muito documentado e bem explicado da responsabilidade do PS neste processo, sob pena de sucumbirem à propaganda primária, de muito fácil absorção, já em curso e que os responsabiliza pelas consequências da reprovação do orçamento, apesar de as razões que ditaram a sua rejeição nada terem a ver, e até estarem nos antípodas, das que motivaram todos os partidos de direita
Comecemos pelo princípio: por que razão alteraram BE e PCP o sentido de voto que os acompanhou durante a primeira legislatura do Governo António Costa e que somente não terá sido mais cedo interrompido por força da crise pandémica? Há, como todos sabemos, duas versões que estão a circular para responder a esta pergunta.
Uma protagonizada pelo PS, desenvolvida de forma muito clara ao longo da segunda legislatura, ou seja, desde as eleições de 2019, que consiste fundamentalmente no seguinte: as vantagens acumuladas por esta actuação conjunta da esquerda, a que nos sentimos muito ligados, é um património construído com muita dificuldade, derrubando muros e neutralizando preconceitos, que não pode ser posto em causa por interesses particulares e na qual devemos prosseguir para manter a direita e as suas políticas fora do poder.
Evidentemente, que este discurso só pode ser feito por ter havido a cobertura do BE e do PCP às políticas do PS, regularmente sinalizada pela aprovação do orçamento. Daí que o discurso passasse a ter na segunda legislatura o efeito de uma espécie de chantagem subliminar que limitava o espaço de livre apreciação e avaliação da acção política do Governo, levada a cabo na completa ausência de um qualquer tipo de acordo programático com os seus “apoiantes” de esquerda, que a balizasse e condicionasse e, paradoxalmente, deixasse ao PS as mãos livres para, fora do tempo orçamental, mais do que do seu quadro, negociar e fazer aprovar as suas propostas com quem estivesse disposto a votá-las, como aconteceu durante esta segunda legislatura, maioritariamente com o PSD.
Este discurso do PS, como é óbvio, visava colher votos à esquerda e deixar inalterada a sua base de apoio do centro, sendo fundamental para o seu êxito, mais do que o voto do BE, o apoio ou a abstenção do PCP. Não se tratava de desvalorizar o BE, como frequentemente foi dito e nem sequer desmentido pelo PS, tratava-se de olhar para a realidade e perceber que a “certificação” de uma política de esquerda precisava muito mais do beneplácito do PCP do que da de qualquer outro partido, pela sua história centenária, pela sua luta antifascista contra a ditadura, por o partido ser como é.
O outro discurso que o “velho PS” começou a pôr em curso, desde logo no debate parlamentar do orçamento, pela porta-voz da bancada socialista, também em alguns jornais e restante comunicação social, principalmente nas redes sociais, um discurso que até começa por acusar o comunismo pela tomada do poder do nazismo na Alemanha, e de cá na terra pela queda de Sócrates por na votação do PEC IV ter votado contra e de agora essa mesma esquerda, para defesa de interesses particulares, ter votado contra o orçamento, não se importando de poder a estar a entregar o poder à direita ou de querer fazer uma “OPA” ao PS, é um discurso tonto facilmente desmontável, mesmo sem usar a artilharia pesada que a história da democracia portuguesa permitiria e que não lhe acrescente nenhum voto à esquerda, como anseia e aspira.
O PS vai ter à sua disposição estes dois tipos de discursos, o de Costa e o do “velho PS”, não sendo de pôr de parte a possibilidade de usar os dois consoante os destinatários a que se dirija. Costa vai continuar com um discurso de esquerda, sem injuriar o BE nem, principalmente, o PCP, com vista a alcançar a maioria absoluta, enquanto o “velho PS” será mais movido por um ódio a uma esquerda que não se deixa domesticar nem dominar pela conversa do PS:
Do outro lado, do lado do BE e do PCP, não se nega a importância do que se alcançou na primeira legislatura, em matéria de gradual recuperação de direitos e de rendimentos bem como da sinalização publicamente assumida de se ter posto termo a alguns dos efeitos mais nefastos da política da Troika, como o propositado e gradual subfinanciamento de serviços públicos essenciais que levasse à sua relativa inutilidade ou à sua transferência para a esfera privada como fonte de negócios altamente lucrativos. Este discurso, porém, passou a ser acompanhado, ainda antes de terminada a primeira legislatura, de uma mensagem de continuidade, de que era necessário prosseguir nesse caminho noutros domínios igualmente importantes para o bem-estar das pessoas e do desenvolvimento do país. Todavia, a partir da segunda legislatura, na qual o PS já era, ao contrário da anterior, o partido maioritário, começou a notar-se que havia dos partidos à esquerda do PS uma crescente insatisfação por o Governo não estar a cumprir e a executar os compromissos a que se obrigou ou a fazê-lo com excessiva lentidão por via das enormes e paralisantes cativações das verbas orçamentadas consignadas ao cumprimento daqueles compromissos e também por denotar um intransponível muro de vontades para acudir a problemas diferentes dos que inicialmente foram tratados mas com eles intimamente conexionados, como a melhoria dos serviços públicos essenciais ou a criação de outros, o crescimento do salário mínimo, a caducidade das convenções colectivas e a reforma das medidas mais gravosas da legislação laboral, fazendo-a regressar à anteriormente vigente, muita dela aprovada por proposta do Partido Socialista, no Governo.
E estes partidos começaram também a perceber que o diálogo com o Governo era um verdadeiro diálogo de surdos, porque às novas proposta que faziam o Governo ia respondendo com a promessa de aprovação de outras que ficavam muito aquém do pretendido ou que nada tinham a ver com o que estava e discussão. E, numa primeira fase da segunda legislatura, compreenderam que a obsessão do Governo pela execução do orçamento com superavit se sobrepunha a todos os demais assuntos. Esta ideia de fazer boa figura em Bruxelas perante a burocracia fiscalizadora do défice levou o Governo, na segunda fase desta caminhada com a esquerda que, segundo afirmava queria continuar a fazer, a dar um passo que o fez rejeitar tudo o que de perto ou de longe pudesse em Bruxelas ser interpretado como um afastamento, por pequeno que fosse, das suas orientações doutrinárias. E é ai que começam os problemas. Contrariamente ao que o Governo propagou, a maior parte das propostas apresentadas pela esquerda foram rejeitadas não por razões orçamentais nem de contenção ou recuperação do défice, visto que algumas delas nem matérias orçamentais eram, mas por o Governo temer que em Bruxelas fossem interpretadas como um desvio à sua cartilha ideológica, que o Governo, pelos vistos, considera mais importante do que o seu entendimento com a esquerda e do que os próprios interesses do país tal como a esquerda no sua heterogénea composição, no essencial, os entende e interpreta.
É preciso que se diga para que não haja dúvidas, como meio de combate à desinformação e às noticias falsas que as propostas que o Governo rejeitou, e à aceitação das quais preferiu a rejeição do orçamento, não tinham nada de revolucionário nem visavam nenhuma mudança política estrutural visto a maior parte delas até já ter vigorado com o apoio ou por iniciativa do próprio PS, nem por outro lado agravavam o défice pondo-o em zonas censuráveis por Bruxelas. Portanto, não se tratava de medidas que implicassem um desrespeito pelas obrigações legais assumidas perante a UE, mas apenas, quando muito, contrárias às imposições doutrinárias ilegais que a burocracia de Bruxelas inflige aos parceiros conjuntural ou estruturalmente mais fracos, segundo um processo que muito se assemelha com as típicas actuações à margem da lei, ou, retomando a linguagem de Santo Agostinho, que faz com que um governo que actue sem respeito pela justiça mais não seja do que um “bando de ladrões”.
É neste contexto assim genericamente traçado que a decisão sobre o voto nas próximas eleições deve ser tomada, sem sentimentalismos nem emoções que a realidade não justifica, mas segundo uma análise fria e racional da realidade circundante, tendo sempre presente que uma política de esquerda em Portugal só é possível com a participação dos partidos de esquerda!
«E estes partidos começaram também a perceber que o diálogo com o Governo era um verdadeiro diálogo de surdos, porque às novas proposta que faziam o Governo ia respondendo com a promessa de aprovação de outras que ficavam muito aquém do pretendido ou que nada tinham a ver com o que estava e discussão. E, numa primeira fase da segunda legislatura, compreenderam que a obsessão do Governo pela execução do orçamento com superavit se sobrepunha a todos os demais assuntos. Esta ideia de fazer boa figura em Bruxelas perante a burocracia fiscalizadora do défice levou o Governo, na segunda fase desta caminhada com a esquerda que, segundo afirmava queria continuar a fazer, a dar um passo que o fez rejeitar tudo o que de perto ou de longe pudesse em Bruxelas ser interpretado como um afastamento, por pequeno que fosse, das suas orientações doutrinárias.»
ResponderEliminarE FOI AQUI QUE COMEÇARAM, DE FACTO, OS PROBLEMAS!
BE e PCP vão pagar muito caro nas urnas mais este taticismo político, ó se vão, é esperar para ver e não há nada que os apologistas destes partidos sem visão possam dizer/escrever que vá alterar esse facto. E os cínicos ainda se atrevem a dizer que não há motivo para eleições... Pudera, estão à rasca, é o que é.
ResponderEliminarTalvez fosse de explicar melhor em que consistiu o "tsticismo político
EliminarO argumento da cartilha ideológica de Bruxelas não deixa de ser comparável ao do governo polaco sobre o uso que as instituições europeias fazem dos tratados no que respeita ao Estado de Direito.
ResponderEliminarE o que o Governo polaco diz sobre a actuação de Bruxelas faz todo o sentido. Tanto sentido como o do Tribunal Constitucional Alemão.
ResponderEliminarA que propósito é que Bruxelas quer decidir sobre o conteúdo das leis laborais? Por que não sobre todas as outras, também?
Com todo o respeito, creio que há diferenças entre o acórdão do Tribunal de Karlsruhe e o tribunal constitucional polaco. Isto sem contar com o facto de o tribunal constitucional polaco ser hoje um mero instrumento do partido no poder.
ResponderEliminarSe bem entendo do que diz, o problema de fundo está na legislação laboral e na condicionalidade da UE: esta a insistir na liberalização do mercado de trabalho e os partidos de esquerda a quererem ver revogada a legislação aprovada durante o período da troika. São dois caminhos opostos.
Como já disse noutros sítios, o problema para os Partidos de Esquerda vai ser justificarem junto dos seus potenciais eleitores que a defesa dos seus princípios perante uma suposta intransigência do PS (o PS dirá o contrário) é preferível a deixarem passar um OE que consideravam claramente insuficiente, mas que permitiria, como reconheceu o próprio PCP, alguns ganhos de causa.
ResponderEliminarFalamos de um aumento do SMN de 40 Euros, creches gratuitas já para o ano a partir do primeiro ano, mais verbas para o SNS, etc. E isto era o mínimo dos mínimos, já que mais poderia ser alcançado na negociação na especialidade, como bem lembrou Costa num dos discursos mais acutilantes que já lhe ouvi, em que gozou com a Direita, atingindo a Esquerda.
O aparte sobre o discurso de Rio e da sua concepção de um OE de Direita, em contraposição com o que as Esquerdas se preparavam para recusar, que incluía algumas das medidas que propuseram (Costa é um Maquiavel da Política), deve ter sido sentido como uma estocada fria lá para os lados da bancada do PCP-PEV e do BE.
As motivações das Direitas e das Esquerdas para o voto contra são obviamente diametralmente opostas (e qualquer tentativa de meter os dois blocos no mesmo saco é imbecil e escandalosa), mas concorreram para que a consequência fosse a mesma para ambas, e ela é boa para a Direita, que obtém tudo o que queria e má para as Esquerdas, que obtêm ainda menos do que o Governo lhes oferecia, ou seja, zero.
Vai dizer-me que o que eu exponho representa uma variante do argumento da chantagem. Porventura, só que no momento, em 2019, em que as Esquerdas se prestaram a apoiar o Governo sem um acordo escrito (e foi o PCP pelos vistos que começou por o recusar), elas ficaram efetivamente reféns e o custo a pagar por se libertarem desse pacto informal iria ser muito alto, sobretudo neste caso em particular, já que elas ficam efetivamente com o ónus de recusar, em nome de melhores políticas e de um rumo diferente, ganhos imediatos (o PEC4 era um documento austeritário e ainda assim, a queda do Governo Sócrates e a intervenção da Troika foram muito danosas para o BE).
E fazem-no num contexto ainda muito difícil para as pessoas. Quem quer um Governo cessante com poderes limitados, um OE só lá para abril e campanha e eleições em pleno Inverno, numa meio de uma pandemia que ainda não foi vencida?
A maioria dos eleitores não é particularmente ideológica e prefere o proverbial pássaro na mão aos dois a voar.
E, lamento dizê-lo, não me parece que o trabalho de que fala vá servir para muito. O que está a propor tem um nome simples, recriminações de parte a parte, e as pessoas detestam quezílias. Se as Esquerdas desatarem a acusar-se uma às outras, perdem todas e quem se fica a rir é a Direita que nem tem que se lhes opor.
O PS deverá acusar o menos possível as Esquerdas e falará antes de reivindicações a que o Governo não poderia atender neste momento. O discurso das contas certas é popular.
Por isso, e como disse alguém, a existir racionalidade no voto das Esquerdas, ela não envolve qualquer cálculo eleitoral. Fica-lhes bem, mas é capaz de lhes custar muito caro...
Finalmente, de menos ainda serve criticar o PR, se ele acabar por dissolver a AR, como anda a ensaiar o PCP. Eu entendo que a pressão que fez foi ilegítima e talvez até contraproducente, mas pelo menos a mensagem foi cristalina e de certo modo lógica, pois o fim da Maioria representaria o fim do Governo. E, acaso não tenham reparado, este é um PR de Direita que desejaria sempre satisfazer o seu campo em caso de crise.
As Esquerdas sabiam perfeitamente ao que iam e o que estava em causa. A tentativa de pedir agora um novo OE chega pois a ser patética...
E, Lúcio Ferro, parece-me que BE e PCP-PEV não podem ser acusados de taticismo político, isto assumindo, claro está, que um ou outro partiram para a negociação com o Governo de boa fé e não tinham decidido a priori que o voto no OE era contra (mas nesse caso, não vislumbro por que razão decidiriam desse modo, seria suicidário, espero que as Esquerdas prefiram negociar com este Governo na AR a opor-se a um Governo de Direita na rua).
ResponderEliminarVotaram como votaram porque têm uma visão para o País, que obrigaria a que não aceitassem nada menos do que as linhas vermelhas que traçaram.
O que lhes faltou justamente, na minha modesta opinião, foi jogo de cintura. O mal menor (bem menor) neste caso era mesmo a abstenção, sob fortes críticas, e seguida de uma negociação dura na especialidade.