O CASO DA POLÓNIA
(Texto publicado no FB em 20 de Outubro de 2021)
No debate parlamentar de hoje, 20 de Outubro de 2021, o deputado André Ventura interpelou António Costa sobre a dualidade de critérios da União Europeia por ter em curso, em relação à Polónia, a instauração do procedimento previsto no artigo 7.º do Tratado, em virtude de o Tribunal Constitucional daquele país ter considerado constitucionais certas medidas adoptadas pelo governo (em sentido amplo) polaco, e, consequentemente, insusceptíveis de fiscalização pela União Europeia qualquer que seja o fundamento desta, visto a Constituição da Polónia prevalecer sobre o direito comunitário e, por outro lado, nada ter feito, relativamente à Alemanha, quando em 2020 o Tribunal Constitucional alemão julgou contrária à Lei Fundamental (Constituição da Alemanha) a política de compra pelo BCE, no mercado secundário, de títulos dívida soberana dos Estados, por tal política e a interpretação da norma em que ela se fundamenta (segundo o TCA, contrária ao expressamente disposto no Tratado), ter violado um direito fundamental da Constituição alemã – o direito de voto, que obviamente prevalece sobre o direito comunitário.
Embora não tenha sido nestes precisos termos que Ventura levantou a questão (apesar de estes serem os termos precisos), o que o deputado reclamava do Primeiro Ministro é que este, como membro do Conselho, justificasse esta disparidade de comportamentos da UE.
Costa com o à vontade que lhe é característico, qualquer que seja o tema, afirmou que havia uma grande diferença entre as duas situações. Porque enquanto o TC da Polónia declarou que a Constituição polaca prevalecia sobre todo e qualquer direito comunitário, inclusive sobre o direito primário dos tratados, o TC alemão limitou-se a afirmar que somente o direito derivado (regulamentos, directivas (?) estava sujeito à sindicância da Constituição alemã.
É de facto uma grande “alhada” aquela em que Costa se meteu. Primeiro, a União Europeia não é um Estado federal. E somente no Estados federais (e por maioria de razão nos regionalizados) é que a constituição dos Estados (federados) é hierarquicamente inferior à constituição da federação.
A União Europeia assenta num ou vários tratados (tratados constitutivos) todos eles hierarquicamente inferiores à constituição dos Estados que a integram. Todas estas constituições prevalecem sobre os tratados da União Europeia. Aliás, estes tratados não teriam sido ratificados se contivessem normas contrárias à constituição dos Estados ratificantes. Quando em fase de ratificação dos Estados é detectada uma ou várias normas inconstitucionais só três comportamentos são possíveis: a) ou essas normas são eliminadas ou alteradas de modo a ficarem conformes à ou às constituições com a quais conflituam (procedimento este inusual, já que, segundo o DI, nenhum Estado pode ser obrigado a renegociar o que já foi negociado); b) ou os Estados com cujas constituições o tratado conflitua não o ratificam; c) ou Estados com cujas constituições o tratado conflitua alteram a sua própria Constituição para que haja (passe a haver) a referida conformidade.
Na União Europeia, temos exemplos das três situações. Na primeira situação, temos o frustrado “Tratado da Constituição Europeia” cuja ratificação parte dos Estados recusou (obviamente, por razões políticas que se reflectem juridicamente) por conter disposições contrárias às suas constituições (alteração substancial da natureza do Estado), levando a UE à sua reformulação e negociação de um novo tratado; na segunda, temos a rejeição do Tratado de Maastricht na sua primeira versão pela Dinamarca e pela Irlanda; na terceira, temos as alterações constitucionais de múltiplos Estados, entre os quais Portugal, como pressuposto necessário à ratificação do tratado em questão.
Portanto, Senhor Primeiro Ministro António Costa, não há nenhum Estado na União Europeia que não considere a sua Constituição hierarquicamente superior aos tratados constitutivos.
O que tem sido muito discutido é se o direito derivado da UE (regulamentos, directivas (?)), de aplicação imediata no território dos Estados membros, aplicação da qual o tribunal das comunidades tirou a conclusão de que ele prevalece sobre o direito interno, é se esta prevalência respeita apenas ao direito de natureza legislativa e inferior ou se, além disso, aquele direito é também insusceptível de sindicância constitucional.
A prevalência do direito comunitário sobre o direito interno dos EM não consta de nenhum texto de direito comunitário, nem mesmo dos tratados constitutivos. Foi o tribunal das comunidades que tirou esta consequência da sua aplicação imediata ao território dos Estados membros. Este é um caso típico de “direito jurisdicional”, ilegítimo como todo o direito desta natureza, mas muito mais frequente do que se supõe, inclusive internamente.
E o que se tem discutido é se esta prevalência atinge apenas o direito de natureza legislativa (anterior ou posterior) e outro de inferior hierarquia (regulamentos, portarias, etc.) ou se este direito, dada a sua natureza, ditada pela fonte donde provém, prevalece também sobre o direito constitucional estando assim a salvo da sindicância constitucional dos Estados.
Não adianta agora voltar a desenvolver aqui a enorme polémica que esta questão levanta ( que A. Costa dá por resolvida quase revolucionariamente, dando por assente o que a UE se não cansa de rejeitar), nem tão pouco analisar em pormenor o modo como tem sido resolvida na maioria os Estados membros.
Interessa apenas dizer que o Tribunal Constitucional alemão nunca abdicou desta sua competência. Numa primeira fase, anterior a Maastricht, o TC alemão, por entender que nos tratados constitutivos das comunidades não havia normas que assegurassem o respeito pelos direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias), reservava-se o direito de fiscalizar as normas comunitárias que pudessem violar os direitos consagrados pela Lei Fundamental. Era a doutrina do “enquanto não houver normas comunitárias que garantam estes direitos, os tribunais alemães continuarão…”
Com Maastricht a situação começou a alterar-se em virtude de o tratado passar a fazer uma referência explícita àquelas matérias, mas com Maastricht foi também introduzido o princípio da moeda única, nos termos que dele constam. O que levou igualmente o TC alemão, quando deu “luz verde” à ratificação do Tratado de Maastricht, a declarar que tendo a Alemanha abdicado de uma parcela importantíssima da sua soberania (a emissão de moeda própria), se reservava o direito de continuar a fiscalizar constitucionalmente as normas e política da UE neste domínio para assegurar que ela se processará segundo a transferência de soberania operada, por igualmente estar em causa um direito fundamental – o respeito pelo voto dos cidadãos.
O que levou os franceses a dizer que a partir de agora os “direitos fundamentais estão no BCE”.
Prescindindo de outras considerações, o que vai dito é suficiente para se perceber que a decisão do tribunal polaco é substancialmente idêntica à do tribunal constitucional alemão. Só que a do alemão diz respeito a dinheiro e a do polaco à comunidade LGBTI, mas não sendo de acreditar que em Bruxelas, por maior que seja a importância atribuída às questões “lgbti”, elas já prevaleçam sobre as do dinheiro, mola real da União Europeia, não há razão para distinguir entre as duas situações. Portanto…
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