A ILUSÃO DE SPÍNOLA
Spínola se fosse vivo faria hoje cem anos. Os anos que viveu são contudo suficientes para apreciar a sua obra como militar e como político.
Como militar serviu devotadamente o Estado Novo e Salazar, como tantos outros. As biografias de Spínola, mesmo as mais volumosas, à parte algumas palavras iniciais sobre o Colégio Militar, verdadeiramente só começam em 1961 quando se oferece como voluntário para combater em Angola, como comandante de batalhão.
Os primeiros cinquenta anos da sua vida são pouco conhecidos, talvez porque não sejam muito relevantes historicamente. Sabe-se todavia que era um fervoroso apreciador da bravura do exército alemão, cujas façanhas acompanhou, no cerco de Leninegrado, como observador. Também há indícios relativamente seguros de que apreciava e apoiava os nacionalistas na Guerra Civil Espanhola, onde mais tarde, já com Franco no poder, estudou a organização da Guardia Civil.
Também se sabe que nos eventos políticos que coincidiram com o começo da guerra em Angola esteve sempre ao lado de Salazar, apesar da relativa irrelevância do seu posto na estrutura militar da época.
Em suma, Spínola simpatizava politicamente com o que de mais reaccionário havia então na Europa: o franquismo, a tradição prussiana do exército alemão enquadrada e dominada pelos nazis, e Salazar. Este pendor autoritário e anti-democrático acompanhá-lo-ia durante toda a sua vida.
Foi o fervor colonial inspirado na "Pátria una e indivisível do Minho a Timor" que o fez largar o lugar na administração da Siderurgia Nacional para combater em Angola contra os “terroristas a soldo de Moscovo”. Apesar de tudo há uma diferença relativamente aos de agora, que deixam o governo para “combater pelas suas convicções” em empresas dispostas a comprar a influência que continuam a manter sobre os governos a que pertenceram!
Depois de Angola, donde regressa em 1964, Spínola fica quatro anos por cá, até que Salazar se lembra dele para substituir Arnaldo Schultz que, com a sua acção completamente irrealista e desprovida de qualquer sentido político, deixara a Guiné numa situação político-militar quase irrecuperável.
Diz-se agora, melhor começou a dizer-se depois da morte política de Salazar, que Spínola quando foi convidado pelo Presidente do Conselho para o lugar de comandante-chefe das forças armadas na Guiné o terá advertido de que a “questão ultramarina” teria de ser resolvida politicamente e não militarmente.
Diz-se muita coisa depois da morte de Salazar. Adriano Moreira, Spínola e outros disseram depois que tinham dito antes o que ninguém até então tinha ouvido, e que aliás também não consta dos relatos dos próximos de Salazar. Mas isso não terá grande importância, pois não é verdade que a História se faz cada vez mais da frente para trás e não de trás para a frente?
A verdade é que Spínola, uma vez na Guiné, teve uma percepção mais correcta da guerra em que estava envolvido do que a percepção alguma vez tida pelos seus congéneres americanos no Vietname. Por isso, actuou politicamente e militarmente com idêntica determinação.
Militarmente não teve êxito: deixou a guerra perdida quando em Novembro de 1973 entregou o comando a Bettencourt Rodrigues. Mas aguentou durante mais de cinco anos uma guerra que militarmente já estava perdida. E até criou a ilusão de que a poderia ganhar.
Com o afastamento de Salazar por doença, Spínola passou a ser politicamente muito mais interventivo junto de Caetano. Como conhecia a realidade colonial, depressa chegou à conclusão de que o objectivo político de Marcelo, que, tal como o de Salazar, era o da "Pátria una e indivisível do Minho a Timor", não tinha qualquer viabilidade. Mas tal como Marcelo também ele não compreendeu o nacionalismo africano e sempre acreditou, ao ponto de ter mitificada a ideia durante toda a sua vida, que seria possível encontrar um rearranjo constitucional capaz de acomodar a presença política (económica e social) portuguesa com as aspirações autonomistas dos povos colonizados.
As várias tentativas que Spínola fez durante o governo de Caetano e depois do 25 de Abril para pôr em prática aquela ideia não falharam por tibieza e indecisão do Presidente do Conselho, nem pela “acção perversa” dos militares do MFA. Falharam porque tinham de falhar: não eram medidas daquele tempo, nem daquela época! Samora Machel, na eloquência incisiva das suas afirmações, disse peremptoriamente, com o sarcasmo estampado no rosto, aos últimos representantes envergonhados da pátria pluricontinental: “Não se pergunta a um escravo que já pegou em armas para se libertar, se quer ser livre!”
Spínola nunca compreendeu a profundidade da componente nacionalista da luta de libertação. Poderá ter superado alguns dos clichés mais repetidos da Guerra Fria, contrariamente ao que sucedeu com Salazar e com Franco Nogueira, que os empregavam com convicção e com tacticismo, com Marcelo, mais por convicção do que por táctica, e até com Soares que no contexto da época só “via” o que pudesse travar o avanço de Moscovo, interesse que para ele se sobrepunha a todos os demais. Mas o que Spínola nunca foi capaz de superar foi a subalternidade do interesse nacional português no processo de libertação dos povos africanos.
É essa a razão da sua incompatibilidade com o MFA. Do 28 de Setembro e do seu fracasso. E, mais tarde, do 11 de Março que ironicamente acabará por reduzir a escombros o país (irreal) com que ele sonhara.
Excelente!... duplamente excelente, dados o texto e a mensagem!
ResponderEliminarObrigado pela justeza e rectidão da História!
Um grande abraço.
Excelente texto, digo também eu! Ao lê-lo não podemos deixar de pensar na relatividade da Verdade e da Justiça no tempo histórico. O texto faz-me lembrar a agora ingénua proposta de Spnínola que, bem no fundo, não desagradava à maioria dos portugueses enquanto não perceberam a sua inexequibilidade.
ResponderEliminarAtrevo-mo a pensar se o autor, há trinta anos, teria também conseguido "ver" os factos como os vê agora.
Vou fazer link, caro amigo!
ResponderEliminarAbraço.
Obrigado Ana Paula. Conheci Spínola na Guiné e a sua prepotência. Naquela época não tínhamos nenhuma dúvida sobre o rumo que a política portuguesa deveria seguir em matéria de descolonização. Daí a apreensão com que acompánhamos o entusiasmo resultante da publicação de Portugal e o Futuro.
ResponderEliminarRecordo que a grande desilusão da noite de 25 de Abril, passada na Guiné, depois das emoções vividas durante o dia, foi ouvir pela rádio a composição da Junta de Salvação Nacional, presidida por com Spínola. Dos conhecidos (e havia gente desconhecida fora das ramos a que pertencia, como Pinheiro de Azevedo, Rosa Coputinho e Diogo Neto) somente Costa Gomes não suscitava reservas. Desilusão que logo se esfumou quando na manhã seguinte Vitor Alves leu na rádio o Programa do MFA.