UMA RESPOSTA À CRISE QUE ESCONDE UM OBJECTIVO ESTRATÉGICO DE PODER
Por muito que custe a certas pessoas, a crise grega é a questão mais grave da actualidade na Europa. Não apenas pelo que ela representa para os gregos, pelo que representa para a generalidade do povo trabalhador, mas principalmente pelo objectivo estratégico pressuposto na forma como ela tem sido abordada no quadro comunitário.
Como toda a gente sabe, a actual crise económica e social tem a sua origem numa crise financeira da exclusiva responsabilidade da ideologia neoliberal de que o capital financeiro e especulativo é o principal intérprete.
Movidos por uma ganância sem limites e exercendo a sua actividade interna e internacional em regime de completa anomia, os bancos assumiram riscos absolutamente desproporcionados em relação aos recursos de que dispunham. Uma vez cortada a corrente que transforma o risco em certeza, perfilou-se no horizonte do sistema financeiro mundial uma crise de proporções planetárias que tinha como consequência necessária a falência em cadeia do capital financeiro, a qual arrastaria consigo a falência do capital industrial e de todas as demais actividades empresariais cuja existência estivesse directa ou indirectamente ligada àquele capital.
Embora tal crise não acarretasse, na actual conjuntura política, uma mudança radical de sistema económico, iria seguramente causar perturbações de toda a ordem, principalmente políticas e sociais, com uma mais que previsível mudança do poder económico para outras mãos e, muito provavelmente, para outras latitudes.
Perante este panorama, não obstante algumas hesitações iniciais dos ortodoxos do sistema, os Estados resolveram intervir com biliões (ou centenas de milhares de milhões, consoante se prefira) para salvar o capital financeiro e o sistema por ele dominado, endividando-se muito para além do razoável.
Qualquer analogia acrítica entre o que se passou a partir de 2008 e que se tinha passado a partir de 1929 corre o risco de deixar incompreendido o essencial.
Antes de mais, a crise de 1929 é, como todas as crises por que o capitalismo até então havia passado, uma crise de sobreprodução: de excesso da oferta sobre a procura. Depois, os bancos em 1929 faliram e com eles todos os que tinham os seus negócios a eles ligados ou as suas economias neles depositadas. Finalmente, a “intervenção keynesiana” a partir de 1932 (Roosevelt) é uma intervenção que obedece a dois propósitos, embora o segundo, na conjuntura da época, se reconduza ao primeiro: salvar o capitalismo e assegurar uma muito maior igualdade na distribuição do rendimento (este segundo propósito está igualmente presente, por muita polémica que a afirmação possa causar, na origem do sucesso do nazismo alemão e do fascismo italiano).
Em 2008 não há verdadeiramente uma crise de sobreprodução, mas antes uma crise originada pela assunção, pelo capital financeiro e especulativo, de riscos insuportáveis que, uma vez consumada a alta probabilidade da sua verificação, se propagaram como uma nódoa de azeite a todo o tecido económico, nomeadamente ao produtivo. Em segundo lugar, com excepção do Lehman Brothers e de algumas “banquetas” de insignificante importância, os bancos não faliram, antes foram salvos, e com eles o sistema que eles dominam, mediante transferências astronómicas de fundos para os seus activos a custo zero (ou quase). Finalmente, as intervenções que os Estados fizeram nos demais domínios económicos e sociais não tiveram verdadeiramente em vista salvar o capitalismo, que não estava nem está ameaçado por nenhum sistema concorrente, mas antes evitar uma queda excessiva da actividade económica com vista a uma recomposição do tecido económico afectado pela crise, nessa perspectiva se inserindo igualmente as medidas de natureza social de carácter tipicamente assistencial.
Dito isto, compreende-se agora muito melhor por que razão os bancos não faliram e os Estados se endividaram para além dos limites do razoável, nomeadamente, dentre os desenvolvidos, os de economias mais fracas.
E compreende-se também por que não podem esses mesmos Estados, que aparentemente correm o risco de falência, como é o caso da Grécia e de outros do sul da Europa ou até do norte, mas periféricos, gozar dos mesmos privilégios ou das mesmas vantagens que os bancos beneficiaram para não falirem.
Embora seja admissível supor, sem nunca se poder garantir, que a falência dos bancos não acarretaria uma mudança radical do sistema político-económico, a verdade é que essas mesmas falências, além das consequências económicas em cadeia, susceptíveis de atingir um número indiscriminado de pessoas diferentemente posicionadas no processo produtivo, teriam como consequência inevitável a mudança de mãos do poder económico, eventualmente até, como já se disse, para outras latitudes. E foi isto, tudo isto, o que seguramente se quis evitar.
A falência ou o risco de falência dos Estados (porventura ainda mais grave do que a própria falência) tem, em princípio, efeitos, perfeitamente suportáveis pelo sistema, muito diferentes dos provocados pela falência dos bancos. Não estando em causa actualmente a salvação do sistema que, por falta de alternativa não corre o risco de ser substituído por outro de sentido radicalmente oposto, a única situação susceptível de gerar alguma preocupação é a dimensão económica do Estado em quebra. Se se tratar de uma grande economia, como aconteceu nos últimos vinte anos do século passado por duas vezes com o México, as economias directamente afectadas pela sua falência têm de ir inevitavelmente em seu auxílio sob pena de elas próprias também sofrerem as consequências. Foi o que fizeram os Estados Unidos. A própria Reserva Federal emprestou dinheiro ao México, a juro baixo, para que este fosse pagando aos bancos americanos as suas dívidas. Apesar de o juro a que o dinheiro foi emprestado ter sido abaixo do preço do mercado, os Estados Unidos ganharam muito dinheiro com o negócio e evitaram as consequências da falência do México sobre os bancos americanos.
Se se tratar de uma pequena economia, como é o caso da Grécia, e seria também o de Portugal ou o da Irlanda ou da Islândia, a situação como já se está a ver pode ser muito diferente. Não havendo o risco de alteração do sistema, facto que até há cerca de trinta anos era sistematicamente tido em conta, sendo reduzidos os efeitos sobre as demais economias, e não estando também em causa a transferência do poder económico do Estado falido, ou em risco de falência, para mãos indesejáveis, o meio que o actual sistema capitalista europeu considera mais apropriado para lidar aquelas situações é pôr os nacionais desse Estado a pagar a crise fazendo incidir sobre eles todo o ónus da situação criada e causada pelo capital financeiro. E como o trabalho é, em todos os Estados, aquele que mais contribui para as receitas dos Estados, acabam por ser os trabalhadores os que vão necessariamente arcar com a parte principal dos sacrifícios. Não apenas porque passam a ganhar menos, mas também porque muitos deles vão perder o emprego.
Esta solução imposta pela Alemanha obedece, no actual contexto europeu, a um claro objectivo estratégico de poder: impor a toda a Europa da zona euro o seu modelo de política monetária e de crédito, o qual arrasta consigo necessariamente uma política orçamental (fiscal) igualmente dependente. Por esta via aparentemente multilateral e de respeito pelos tratados, mas na realidade de profundo nacionalismo, se desarticula o essencial do poder soberano de cada Estado dentro da União não em proveito do conjunto, nem das chamadas “soberanias partilhadas”, mas antes em claro benefício de uma das partes.
A questão que obviamente se põe é a de saber se, não obstante os êxitos iniciais desta política (e esta não seria a primeira vez que a Alemanha tem êxitos iniciais), ela poderá frutificar a médio-longo prazo. Dificilmente a Alemanha ganhará por esta via o que historicamente já perdeu por outras….
Penso que o autor, como muitas outras pessoas, refere a Alemanha para simplificação, porque, parece-me, nestas fissuras há por detrás da Alemanha um conjunto de países que com ela estão sintonizados. A propósito desta tentativa de reordenamento de forças à boleia da questão financeira, lembro-me de na única vez que estive na Alemanha, e ter constatado, pelo pouco que vi, que há grandes assimetrias entre o Norte e o Sul. Parece-me que as diferenças são económicas mas, e sobretudo, não só. Verifiquei por exemplo que para era já na altura bem mais fácil adquirir casa em Portugal que na Alemanha. A conta tinha que chegar.
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