UM PRIMEIRO APONTAMENTO
Saiu há cerca de três semanas a versão portuguesa da Biografia de Salazar, de Filipe Ribeiro Meneses, professor na Universidade da Irlanda, em Meynooth, perto de Dublin. Muito publicitada na imprensa, esta obra de muitas centenas de páginas tem como selo de qualidade o facto de se tratar da primeira biografia académica de Salazar. A vida e obra de Salazar já tinham sido objecto de várias biografias, algumas delas escritas por alguns dos seus mais fervorosos defensores, mas esta é de facto a primeira vez que, no âmbito universitário, é produzida uma obra biográfica sobre Salazar.
Em princípio, a chancela universitária assegura-lhe uma qualidade e um rigor que de outro modo, ou noutro contexto, poderiam faltar. Mas apenas em princípio, já que nada obsta a que obras produzidas fora desse enquadramento revelem grande qualidade e interesse, como é indiscutivelmente a obra de Franco Nogueira sobre o mesmo biografado, assim como nada garante que obras produzidas na universidade, sobre Salazar ou sobre o Estado Novo (para nos circunscrevermos ao tema em análise) tenham um reduzido interesse científico, como num outro post a publicar mais tarde, intitulado “As Vigarices da História”, teremos oportunidade de demonstrar a propósito de uma obra actualmente muito em voga.
A publicação da “Biografia de Salazar” por Ribeiro Meneses parece enquadrar-se nesse acrescido interesse que a figura e a acção política do ditador de Santa Comba Dão têm despertado nos últimos tempos, muito provavelmente nas gerações mais novas. Não será certamente alheio a este novel interesse do grande público a muito apregoada similitude entre a actual situação económico-financeira e a vivida pelo país nos fins da década de 20 do século passado.
Falámos propositadamente no “grande público” já que seria uma grande injustiça não referir a multiplicidade de estudos que sobre as políticas do Estado Novo, em todos os domínios, têm sido feitos, nas últimas duas, três décadas, nas universidades portuguesas, principalmente em Coimbra e em Lisboa.
Salazar passa por ser o mago das finanças e foi sem dúvida explorando politicamente esses alegados atributos, mercê de uma propaganda digna dos tempos modernos, embora levada a cabo por outros meios, que acabou por seduzir militares genericamente incultos e politicamente inexperientes. Os “méritos” de Salazar no controlo das contas públicas estão ao alcance de qualquer simples mortal, melhor dizendo: ao alcance da “dona de casa” tal como Salazar reaccionariamente a concebia (" a que sabe remendar, consertar, poupar…"), já que eles se circunscrevem ao condicionamento das despesas pelas receitas, ficando aquelas, se possível, aquém destas, sem qualquer tipo de preocupação social pelos cortes drasticamente impostos e sem que dessa contenção e equilíbrio resultassem uma inequívoca preocupação de crescimento com vista a, por via de um aumento dos rendimentos, compensar, no futuro, as restrições impostas no passado.
Isso nunca aconteceu durante os anos em que Salazar firmou o seu prestígio, entre 1928 e o fim da Segunda Guerra Mundial, apesar de ter governado sem respeito pelas liberdades e ter, portanto, estado ao abrigo de conflitos ostensivos, sempre severamente reprimidos como manifestações anti-patrióticas destruidoras da “unidade nacional”.
O único mérito de Salazar na fase ascensional da sua carreira foi sempre e só político. Desprovido ainda dos elementos de coerção que mais tarde lhe permitiram impor ditatorialmente a sua vontade, Salazar soube sempre cativar os militares – únicos detentores da força – para as suas políticas por mais brutais e impiedosas que elas, na altura, lhes parecessem.
A Biografia de Salazar, de Ribeiro Meneses, que não estou em condições, neste momento, de avaliar histórico-politicamente, por ainda não ter lido um número de páginas suficiente para fazer com relativa segurança uma ideia do conjunto, tem, todavia, um mérito que não pode, desde já, deixar de ser reconhecido. É o de contrariar alguns dos mitos mais arreigados do salazarismo, incessantemente propagandeados durante o Estado Novo, e em grande medida mantidos até hoje por historiadores e políticos conservadores a quem continua a convir manter sobre o exercício das funções políticas o pretenso paradigma salazarista.
Salazar, principalmente depois de licenciado, actuou sempre como um verdadeiro político profissional. Primeiro, candidatando-se a deputado pelo Centro Católico Português (CCP), em Viana do Castelo, Guimarães e Arganil, sempre com insucesso, com excepção de Guimarães por onde foi eleito. E não cumpriu o mandato, não por incapacidade de convivência com o parlamentarismo republicano, mas por a legislatura ter terminado precocemente em consequência da dissolução do Parlamento dias depois da reabertura das férias de Verão, em virtude dos funestos acontecimentos de Outubro de 1921, conhecidos pelo nome de “noite sangrenta”. Tanto assim que ainda sob o Regime Republicano voltou a candidatar-se, agora por Arganil, sendo derrotado.
Muito mais mitificada está ainda a primeira passagem de Salazar pelo Governo – a sua grande aspiração - depois do 28 de Maio de 1926. Também neste caso, o livro de Meneses desmonta, sem adjectivações excessivas, mas com rigor e sobriedade (apesar das inúmeras lacunas com que o historiador se defronta por falta de fontes, já uma consequência da severidade com que a censura se impunha à imprensa) a tese do sacrifício, da saúde frágil, enfim, do exercício contrariado das funções políticas apenas aceites pelo abnegado esforço de quem tudo suporta para servir a Pátria.
Salazar saiu do Ministério, por estranho que pareça, porque alguém lhe tomou o lugar, mas tudo fez para a ele regressar o mais rapidamente possível, primeiro, participando activamente na Comissão da Reforma Tributária e, depois, conspirando e atacando Sinel de Cordes na imprensa numa campanha bem sucedida de desqualificação do então Ministro das Finanças.
Daí até ser novamente chamado e a ganhar a simpatia de importantes sectores militares, que perfidamente adulava, foi um percurso que Salazar calcorreou com grande mestria política.
Igualmente desmistificado está também o “sapientíssimo mestre” que sacrificou uma já muito brilhante carreira académica para colocar a profundidade do seu saber ao serviço da Pátria em perigo. De facto, Salazar tendo sido um aluno brilhante, que terminou o curso com as mais altas classificações, nunca foi, na verdadeira acepção da palavra, um grande mestre coimbrão. Tendo acedido à regência da cadeira de Finanças Públicas por morte do lente em exercício, sem se ter submetido a qualquer exame e sem ter apresentado uma tese original – facto então inédito em Coimbra – foi somando os graus académicos subsequentes à licenciatura “administrativamente”. Salazar nunca foi um investigador: o “Ágio do ouro - a sua natureza e as suas causas” e a “Questão cerealífera: o trigo”, apresentados no concurso para assistente, são dois trabalhos que recorrem copiosamente a estatísticas e a muitos escritos já publicados em Portugal, sem conterem verdadeiramente nada de novo. Aliás, mais não seria então exigível para o exercício do lugar a que se destinavam.
Muito mais questionável é a qualificação que Meneses faz do primeiro governo de Salazar: um governo moderado, com alguns elementos “esquerdistas”. È claro que esta qualificação não passa de uma fantasia, por mais retórica que ela pretenda ser – e é – no contexto da narrativa em que se insere.
Certamente que havia nas Forças Armadas, principalmente no Exército, e nas forças civis que apoiavam a ditadura sectores muito radicais, próximos da extrema-direita ou com ela identificados, que gostariam de um governo abertamente mais à direita. Acontece que Salazar sendo já um político experiente e muito racional, de imediato percebeu que, não controlando ainda as forças de coerção do regime, e tendo certamente presente as inúmeras revoltas civis e militares que desde o 28 de Maio já tinham eclodido, havia que construir primeiramente o seu poder pessoal para depois o poder exercer livre das peias que agora o tolhiam.
Nenhum propósito de moderação o moveu: de facto, havia que lançar as bases jurídicas do regime, “meter” o Exército nos quartéis e preparar o exercício pessoal do poder.
Saiu há cerca de três semanas a versão portuguesa da Biografia de Salazar, de Filipe Ribeiro Meneses, professor na Universidade da Irlanda, em Meynooth, perto de Dublin. Muito publicitada na imprensa, esta obra de muitas centenas de páginas tem como selo de qualidade o facto de se tratar da primeira biografia académica de Salazar. A vida e obra de Salazar já tinham sido objecto de várias biografias, algumas delas escritas por alguns dos seus mais fervorosos defensores, mas esta é de facto a primeira vez que, no âmbito universitário, é produzida uma obra biográfica sobre Salazar.
Em princípio, a chancela universitária assegura-lhe uma qualidade e um rigor que de outro modo, ou noutro contexto, poderiam faltar. Mas apenas em princípio, já que nada obsta a que obras produzidas fora desse enquadramento revelem grande qualidade e interesse, como é indiscutivelmente a obra de Franco Nogueira sobre o mesmo biografado, assim como nada garante que obras produzidas na universidade, sobre Salazar ou sobre o Estado Novo (para nos circunscrevermos ao tema em análise) tenham um reduzido interesse científico, como num outro post a publicar mais tarde, intitulado “As Vigarices da História”, teremos oportunidade de demonstrar a propósito de uma obra actualmente muito em voga.
A publicação da “Biografia de Salazar” por Ribeiro Meneses parece enquadrar-se nesse acrescido interesse que a figura e a acção política do ditador de Santa Comba Dão têm despertado nos últimos tempos, muito provavelmente nas gerações mais novas. Não será certamente alheio a este novel interesse do grande público a muito apregoada similitude entre a actual situação económico-financeira e a vivida pelo país nos fins da década de 20 do século passado.
Falámos propositadamente no “grande público” já que seria uma grande injustiça não referir a multiplicidade de estudos que sobre as políticas do Estado Novo, em todos os domínios, têm sido feitos, nas últimas duas, três décadas, nas universidades portuguesas, principalmente em Coimbra e em Lisboa.
Salazar passa por ser o mago das finanças e foi sem dúvida explorando politicamente esses alegados atributos, mercê de uma propaganda digna dos tempos modernos, embora levada a cabo por outros meios, que acabou por seduzir militares genericamente incultos e politicamente inexperientes. Os “méritos” de Salazar no controlo das contas públicas estão ao alcance de qualquer simples mortal, melhor dizendo: ao alcance da “dona de casa” tal como Salazar reaccionariamente a concebia (" a que sabe remendar, consertar, poupar…"), já que eles se circunscrevem ao condicionamento das despesas pelas receitas, ficando aquelas, se possível, aquém destas, sem qualquer tipo de preocupação social pelos cortes drasticamente impostos e sem que dessa contenção e equilíbrio resultassem uma inequívoca preocupação de crescimento com vista a, por via de um aumento dos rendimentos, compensar, no futuro, as restrições impostas no passado.
Isso nunca aconteceu durante os anos em que Salazar firmou o seu prestígio, entre 1928 e o fim da Segunda Guerra Mundial, apesar de ter governado sem respeito pelas liberdades e ter, portanto, estado ao abrigo de conflitos ostensivos, sempre severamente reprimidos como manifestações anti-patrióticas destruidoras da “unidade nacional”.
O único mérito de Salazar na fase ascensional da sua carreira foi sempre e só político. Desprovido ainda dos elementos de coerção que mais tarde lhe permitiram impor ditatorialmente a sua vontade, Salazar soube sempre cativar os militares – únicos detentores da força – para as suas políticas por mais brutais e impiedosas que elas, na altura, lhes parecessem.
A Biografia de Salazar, de Ribeiro Meneses, que não estou em condições, neste momento, de avaliar histórico-politicamente, por ainda não ter lido um número de páginas suficiente para fazer com relativa segurança uma ideia do conjunto, tem, todavia, um mérito que não pode, desde já, deixar de ser reconhecido. É o de contrariar alguns dos mitos mais arreigados do salazarismo, incessantemente propagandeados durante o Estado Novo, e em grande medida mantidos até hoje por historiadores e políticos conservadores a quem continua a convir manter sobre o exercício das funções políticas o pretenso paradigma salazarista.
Salazar, principalmente depois de licenciado, actuou sempre como um verdadeiro político profissional. Primeiro, candidatando-se a deputado pelo Centro Católico Português (CCP), em Viana do Castelo, Guimarães e Arganil, sempre com insucesso, com excepção de Guimarães por onde foi eleito. E não cumpriu o mandato, não por incapacidade de convivência com o parlamentarismo republicano, mas por a legislatura ter terminado precocemente em consequência da dissolução do Parlamento dias depois da reabertura das férias de Verão, em virtude dos funestos acontecimentos de Outubro de 1921, conhecidos pelo nome de “noite sangrenta”. Tanto assim que ainda sob o Regime Republicano voltou a candidatar-se, agora por Arganil, sendo derrotado.
Muito mais mitificada está ainda a primeira passagem de Salazar pelo Governo – a sua grande aspiração - depois do 28 de Maio de 1926. Também neste caso, o livro de Meneses desmonta, sem adjectivações excessivas, mas com rigor e sobriedade (apesar das inúmeras lacunas com que o historiador se defronta por falta de fontes, já uma consequência da severidade com que a censura se impunha à imprensa) a tese do sacrifício, da saúde frágil, enfim, do exercício contrariado das funções políticas apenas aceites pelo abnegado esforço de quem tudo suporta para servir a Pátria.
Salazar saiu do Ministério, por estranho que pareça, porque alguém lhe tomou o lugar, mas tudo fez para a ele regressar o mais rapidamente possível, primeiro, participando activamente na Comissão da Reforma Tributária e, depois, conspirando e atacando Sinel de Cordes na imprensa numa campanha bem sucedida de desqualificação do então Ministro das Finanças.
Daí até ser novamente chamado e a ganhar a simpatia de importantes sectores militares, que perfidamente adulava, foi um percurso que Salazar calcorreou com grande mestria política.
Igualmente desmistificado está também o “sapientíssimo mestre” que sacrificou uma já muito brilhante carreira académica para colocar a profundidade do seu saber ao serviço da Pátria em perigo. De facto, Salazar tendo sido um aluno brilhante, que terminou o curso com as mais altas classificações, nunca foi, na verdadeira acepção da palavra, um grande mestre coimbrão. Tendo acedido à regência da cadeira de Finanças Públicas por morte do lente em exercício, sem se ter submetido a qualquer exame e sem ter apresentado uma tese original – facto então inédito em Coimbra – foi somando os graus académicos subsequentes à licenciatura “administrativamente”. Salazar nunca foi um investigador: o “Ágio do ouro - a sua natureza e as suas causas” e a “Questão cerealífera: o trigo”, apresentados no concurso para assistente, são dois trabalhos que recorrem copiosamente a estatísticas e a muitos escritos já publicados em Portugal, sem conterem verdadeiramente nada de novo. Aliás, mais não seria então exigível para o exercício do lugar a que se destinavam.
Muito mais questionável é a qualificação que Meneses faz do primeiro governo de Salazar: um governo moderado, com alguns elementos “esquerdistas”. È claro que esta qualificação não passa de uma fantasia, por mais retórica que ela pretenda ser – e é – no contexto da narrativa em que se insere.
Certamente que havia nas Forças Armadas, principalmente no Exército, e nas forças civis que apoiavam a ditadura sectores muito radicais, próximos da extrema-direita ou com ela identificados, que gostariam de um governo abertamente mais à direita. Acontece que Salazar sendo já um político experiente e muito racional, de imediato percebeu que, não controlando ainda as forças de coerção do regime, e tendo certamente presente as inúmeras revoltas civis e militares que desde o 28 de Maio já tinham eclodido, havia que construir primeiramente o seu poder pessoal para depois o poder exercer livre das peias que agora o tolhiam.
Nenhum propósito de moderação o moveu: de facto, havia que lançar as bases jurídicas do regime, “meter” o Exército nos quartéis e preparar o exercício pessoal do poder.
Muito bom e oportuno este conjunto e reflexões e informações que levantam a ponta do véu mistificador ainda dominante em boa parte dos portugueses acerca de Salazar, agora reforçado pela campanha sobre a "genialidade do financista". Mas há duas pequenas coisas: É negativo saber consertar e poupar? É possível ter mais gastos/despesa que proveitos/receita se não for possível recorrer às poupanças alheias? Nas famílias e nas empresa não o é obviamente. Quanto ao Estado, como se sabe, é-o mediante o lançamento de impostos ainda que imperceptíveis, nomeadamente, através da famosa "ilusão monetária". Parece-me, sem ponta de ofensa ou diminuição do magnifico contributo aqui dado pelo autor, que também falta aos críticos dos fundamentalistas monetaristas, um nico de "seriedade" na questão da aritmética das finanças do Estado, a não ser que , como já li de um jovem economista, que escreve num blogue aqui ao lado, que Portugal, agora já tem o saneamento, as auto-estradas etc., exercesse o imenso poder que lhe dá a gigantesca dívida. Ideologicamente, a proposta até não é tão espúria como isso..o problema é o contexto...
ResponderEliminarNG
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