O QUE SE ESTÁ CONSTRUINDO
Há quem afirme que a União Europeia deu nestes últimos tempos passos decisivos para a construção de uma ordem económica europeia. É verdade. A União Europeia, pelo menos desde Maastricht, tem nos seus documentos fundadores a ordem económica que pretende construir, e está, desde que eclodiu a crise financeira, mas mais intensamente neste último ano, tomando as medidas necessárias para consolidar a ditadura dos mercados, como o verdadeiro governo da União.
Actuando subordinadamente aos mercados que, mancomunados com as agências de rating, ditam o destino dos países em crise, a União Europeia cavalga a onda neoliberal e lá onde os mercados exercem a sua função predadora junta-se eles para através da institucionalização de medidas punitivas de vária ordem agravar ainda mais a situação daqueles que hoje são vítimas indefesas da especulação financeira.
De facto, a União Europeia assenta a sua actuação em matéria financeira nas opções ideológicas que fundamentam o capitalismo neoliberal, fazendo passar por incontestadas verdades científicas o que de há mais reaccionário e socialmente perigoso no modelo que lhe serve de paradigma, a saber: que os mercados financeiros são eficientes e favorecem o crescimento económico, bem como na ideia de que a redução das despesas públicas induzirá necessariamente uma diminuição da dívida e um crescimento sustentado.
A experiência prova que nada disto é verdade. Prova que nem os mercados são eficientes como a actual crise desencadeada pela crise financeira claramente demonstrou, como prova também que o crescimento da dívida foi em grande medida resultante do aumento das despesas originado pela crise. E prova mais: prova que o cortes na despesa para redução, com prazos marcados – e muito curtos –, do défice levam à estagnação económica, se não mesmo à recessão, além de não impedirem o crescimento constante da dívida.
O que se passou em 2007 não foi uma consequência da desonestidade de alguns (muitos) nem mesmo devido à famosa “ausência de regulamentação”. O que se passou foi uma consequência inevitável do modo de funcionamento dos mercados financeiros que, assentando a sua actuação na irracionalidade especulativa, nunca podem ter, por definição, um modo de actuação semelhante ao dos mercados da economia real. Enquanto se não atacarem os mercados financeiros frontalmente naquilo que constitui a sua verdadeira essência nunca, na actual fase do capitalismo, se poderá viver ao abrigo de crises. Pelo contrário, elas serão cada vez mais frequentes e mais graves as suas consequências para camadas cada vez mais vastas da população.
Ora, a União Europeia funciona e regula para permitir a acção predadora dos mercados e não para a contrariar ou combater. Por isso, é verdade que se está a institucionalizar juridicamente a ordem económica neoliberal, a pretexto de se estar a regulamentar o governo económico da União. Esta ordem, pela premente necessidade que a si própria se impõe de assegurar uma constante valorização dos títulos em que se consubstancia, tende a desprezar os investimentos de longo prazo e a ter várias outras consequências perversas como é o caso dos altíssimos rendimentos dos “gestores” de títulos e da constante pressão sobre os salários para os reduzir ao mínimo politico-económicamente possível.
Sem prejuízo dos excessos que possa ter havido num ou noutro país em matéria de despesa pública, em consequência de opções políticas condenáveis, a verdade é que em 2007, na zona euro, o défice era de 0,6% do PIB e a dívida de 66%; em 2010 o défice passou para 7% e a dívida para 84%. E este aumento deveu-se à crise financeira. E são, como se sabe, esses mesmos causadores da crise financeira que agora exigem, de quem os financiou de graça, juros cada vez mais elevados e prazos cada vez mais curtos para restabelecer os equilíbrios. Mas é ainda preciso que se diga que o aumento da dívida nos anos anteriores à crise não resultou na maior parte dos países de um aumento das despesa pública, mas da diminuição das receitas, que é outra das ideias mestra da ordem liberal vigente: não tributar ou tributar muito moderadamente os lucros e os altos rendimentos. Por outro lado, a ausência de harmonização fiscal no interior da União Europeia leva a uma verdadeira concorrência fiscal entre os Estados para captar investimentos que, por seu turno, gera necessariamente uma diminuição da receita pública, quando não conduz mesmo à concessão de benefícios e subsídios que simultaneamente agravam a despesa e a receita, sem que tal aumento da despesa tenha algo a ver, como frequentemente se faz crer, com o aumento dos gastos sociais.
Finalmente, e muito mais haveria a dizer, a prova mais escandalosa da ordem neoliberal que a União Europeia está a institucionalizar, nomeadamente na zona euro, resulta da incapacidade de a própria União prestar auxílio aos países em crise, impedindo o Banco Central Europeu de os financiar, atirando-os assim para as garras dos predadores financeiros, mas simultaneamente permitindo que esse mesmo BCE financie praticamente de graça aqueles que agora usam esse mesmo dinheiro para financiar a preços especulativos os Estados em dificuldade.
O fundo de resgate europeu criado a propósito da “crise grega”, depois de os predadores já terem quase devorado o país, com a complacência ou até com o apoio da União Europeia, além de não passar de um paliativo, é ele próprio um instrumento da institucionalização dessa ordem económica neoliberal. Basta ver o condicionalismo que rodeia a sua utilização para logo se perceber que não é por aquele meio que os Estados em crise vão encontrar uma porta de saída para as suas dificuldades.
Para divulgar, porque é uma outra Europa que queria ver em construção. O neoliberalismo que nela está a triunfar, ancora num dos piores defeitos do ser humano: o egoísmo.
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