sábado, 29 de janeiro de 2011

AINDA HÁ JUÍZES!



LUTA SEM TRÉGUAS CONTRA O CAPITAL FINANCEIRO

O grande objectivo das correntes progressistas nos tempos que correm tem de ser a luta, por todos os meios, contra o capital financeiro e contra quem o apoia ou protege. Enquanto não há condições para adoptar medidas mais radicais, só possíveis no quadro de profundas transformações proporcionadas pelas grandes convulsões sociais que se avizinham, é dever de todos os que se não conformam com o governo plutocrático das nossas sociedades lutar contra o capital financeiro, boicotando-o, sabotando-o, defendendo os direitos dos cidadãos da sua prepotência e rapinagem.
Os exemplos dessa descarada actuação plutocrática estão presentes nas mais diversas manifestações da vida económica, quer contra cidadãos indefesos, contra Estados cúmplices das suas actuações, quer pelas crises económicas e sociais que os desmandos financeiros do capital especulativo propagam a todo o mundo, fazendo pagar com o desemprego, a miséria e a fome de muitas dezenas de milhões de pessoas o restabelecimento da sua capacidade predadora!
Ainda agora se viu como um banco português, depois de ter pressionado e exigido da empresa de que era accionista o pagamento antecipado de dividendos para fugir a uma tributação que no ano seguinte incidiria sobre os lucros obtidos, gizou a inacreditável manobra de aumentar nessa mesma sociedade a sua participação accionista …para ficar completamente isento de impostos.
A gente ouve e toma conhecimento disto e pensa que se está a falar da mulher do Ben Ali, mas não está. Está-se a falar de um banco português!
Vem tudo isto a propósito de duas decisões tomadas por dois tribunais espanhóis sobre um assunto da máxima actualidade.
Como se sabe, a crise financeira que em fins de 2007 rebentou na América, e depois se espalhou com particular intensidade por todo o “mundo desenvolvido”, dando lugar a uma crise económica e social sem paralelo desde 1929, teve a sua origem na especulação imobiliária, na chamada “borbulha imobiliária”insuflada pela concessão desregulada de crédito barato para a aquisição de casas, que se iam artificialmente valorizando num movimento especulativo igualmente sem precedentes, dando simultaneamente lugar à criação dos mais diversos produtos financeiros derivados daquele negócio inicial, que numa espiral especulativa incontrolada iam sendo vendidos nos quatro cantos do mundo, até que…sucedeu o inevitável: os compradores das casas sobreavaliadas deixaram de ter dinheiro para pagar os empréstimos contraídos, a saturação do mercado imobiliário baixou drasticamente os preços das casas…e tudo dá para a frente ruiu como um baralho de cartas com as consequências tsunâmicas de uma onda que não parava de crescer e de se espalhar por todo o lado onde houvesse o menor vestígio daquela especulação.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra quando o devedor hipotecário deixa de cumprir o empréstimo, salda a dívida entregando ao credor, ao banco, a coisa hipotecada (a casa). O risco da eventual diferença entre o valor da dívida e o valor da casa corre por conta do banco que, obviamente, o transferiu a uma seguradora. Ou seja, numa linguagem simples: pela divida apenas responde o bem hipotecado e não o restante património do devedor, no caso de o valor resultante da venda da casa não ser suficiente para pagar o capital em dívida.
Nos direitos europeus continentais, com o nosso e o espanhol, por exemplo, as coisas não se passam assim. Se uma pessoa contrai um empréstimo no banco para aquisição de uma casa, dando esta em hipoteca, pelo incumprimento do devedor responde a casa, mas se o valor desta não for suficiente para pagara a totalidade da dívida, pelo remanescente responde o património do devedor, desde logo o salário.
Na prática as coisas passam-se assim: o banco avalia a casa que o cliente quer comprar e empresta-lhe uma percentagem daquele valor, pelo qual responde a casa como hipoteca. Em situações normais, esta garantia é suficiente para assegurar o crédito do banco. Em épocas de crise como a actual, além de a casa ter sido muito provavelmente sobreavaliada, em consequência da tal “bolha”especulativa de que acima falámos – e em Espanha essa “bolha” existiu” –, o mais certo é ela ter agora um valor menor do que aquele que teria em condições normais de mercado.
Segundo a lei espanhola, em caso de incumprimento, a casa vai à “praça” por um preço relativamente abaixo do valor de mercado. Mas se a “praça” ficar deserta, vai uma segunda vez por metade do preço. Se não aparecer comprador, o banco normalmente fica com ela.
Foi o que aconteceu: um cidadão pediu emprestado ao banco 71 225 € para comprar uma casa que o banco tinha avaliado em 75 900 €. Três anos depois, por incumprimento, o banco ficou com a casa por 42 895 €, ou seja, por 33 005 € menos do que avaliação que ele próprio tinha feito há três anos, objectivamente correspondente a uma desvalorização de 43,5%!
Feitas as contas, depois de três anos de pagamentos, o devedor, apesar de ter entregado a casa ao banco, devia-lhe ainda 28 129€ mais 8 438 € de juros e despesas, num total de 36 612 €! Por outras palavras, depois de ter pago as prestações durante cerca de três anos e de ter perdido a casa a favor do banco, este infeliz comprador ainda ficava com uma dívida de 36 612€ por uma casa que já não tinha.
Com o baixo ordenado que tinha, e as limitações à penhora, ficaria durante toda a sua vida a pagar o empréstimo para a compra de uma coisa que ficou para o credor e ainda deixaria um apreciável património passivo aos seus herdeiros!
O tribunal de Navarra não teve dúvidas, apesar das disposições do Código Processo Civil e da Lei dos créditos hipotecários, decidiu, com base no artigo 3.º do Código Civil Espanhol, que manda “interpretar as leis de acordo com a realidade social do tempo em que são aplicadas”, que apenas o valor da coisa hipotecada, e não a totalidade do património do devedor, garante o cumprimento do empréstimo por ser moralmente inaceitável que o banco continue a reclamar um crédito que nunca teria sido concedido se o valor real da coisa que o sustenta o não garantisse na totalidade. E concluiu: “se houve perda de valor, isso se deve à crise económica, fruto das más práticas do sistema financeiro”!
Foi assim, com decisões ousadas e justas, que o pretor desenvolveu e transformou o direito romano fazendo dele uma das maiores criações do génio humano!
Felizmente, ainda há juízes!

4 comentários:

  1. Felizmente!
    Grande Post!
    Lamentavelmente, por cá as coisas são diferentes. Ainda. Haja igualmente coragem. Esse caso do BES é inaceitável. Ou deveria ser. A atitude da Banca, uma banca ave de rapina, por cá é o que sabemos, por complacência de quem o permite e não deveria permitir. A mesma Banca que está falida e aguarda ansiosamente pela vinda do FMI para lhe injectar "sangue" que nós contribuintes, depois, iremos pagar, a peso de ouro! Com o nosso sangue!
    Até ao dia!
    P.Rufino

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  2. Esse juiz arrisca-se a ser castigado.
    Quanto ao BES, se bem me lembro era um dos sustentáculos da ditadura e agora...agora...deixa lá ver... é um pilar desta democracia

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  3. O Direito dá para tudo (ou quase...).
    A sentença espanhola está (bem) fundamentada, segundo relata o poste.
    A ver se é mantida, em recurso...

    A.M.

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  4. Peço desculpa de chegar atrasado, mas gostaria de deixar aqui o meu agradecimento ao autor deste blog, pela limpidez e escorreiteza da sua escrita, e, ao mesmo tempo, lembrar as boas práticas desse banco, do qual nem é necessário referir o nome por tão contumaz ser. Lembremos apenas: acolhedor de depósitos suspeitos de Pinochett, buscas às suas instalações de Madrid, envolvimento no "mensalão" brasileiro, história dos sobreiros da Portucale com dinheiro para o CDS, envolvimento nas contrapartidas dos submarinos através da ESCOM e outras histórias que me escapam.

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