terça-feira, 20 de dezembro de 2011

AS ALTERNATIVAS COM QUE PORTUGAL SE DEFRONTA



AS VERDADEIRAS OPÇÕES ESTRATÉGICAS



Muito se tem falado entre nós sobre a crise da dívida ou antes sobre a crise do euro, como parece preferível chamá-la, e muitas são as pessoas que dos mais diversos modos têm exprimido a sua indignação perante o que se passa.

Por mais louvável, e até útil, que seja o estado de espírito de quem se indigna, a verdade é que essa indignação, alguma dela já expressa em movimentações de cunho político-moral com alguma organicidade, se tem revelado insuficiente tanto para ajudar a compreender o que na realidade se passa, como para se transformar numa eficaz proposta de acção, mobilizadora, susceptível de levar a uma verdadeira alternativa política.

De facto, as propostas que andam à volta de uma alteração da política europeia, que sempre teria de ser radical para ser eficaz, revelam-se à medida que os dias vão passando uma autêntica miragem, nas quais não vale a pena investir tempo nem talento, sob pena de na sua impossibilidade prática se perder, pelo desencanto, a maior parte das forças dos que estão dispostos a empreender com entusiasmo uma luta contra a presente situação.

De facto, o que está em causa é um projecto de poder à escala europeia quaisquer que sejam os argumentos com que esse projecto tem vindo a ser apresentado e a ser posto em prática. Um projecto alemão de poder, agora já exibido sem subterfúgios, não muito diferente de outros que a mesma Alemanha tem protagonizado desde que no século XIX se unificou, embora recorrendo desta vez a meios diferentes dos que noutros contextos utilizou.

Mas a retórica é substancialmente a mesma. Há sempre alguém de fora que está a perturbar a grandeza e a pureza germânica. Seja a oposição dos que recusam à Alemanha novos “espaços” exigidos pela “vitalidade” do povo alemão; seja a inferioridade racial que, depois de se ter apoderado de parte das riquezas, estava corrompendo o “espírito do povo”, urgindo, por isso, eliminá-la sem deixar sementes para evitar que semelhante desaforo volte a repetir-se; seja o laxismo da gente do sul a quem o sol e o seu uso imoderado com reflexos directos nas longas sestas, nas refeições a horas tardias, no excesso de férias e em tantos outros vícios que o rigor germânico não pode deixar de combater com toda a firmeza para impedir que se ponha em causa o que há de mais valioso no património cultural alemão, agora também ele mais próximo do materialismo dominante: a estabilidade financeira e monetária; os aforros de uma classe média prudente e moderada; as pensões dos que descontaram durante uma vida de trabalho honesto e dedicado.

Este discurso germânico é apresentado pelos seus porta-vozes (aparentemente) mais polidos como um imperativo moral exigido tanto pela salvaguarda de interesses legítimos como pela necessidade de corrigir comportamentos alheios, no interesse dos próprios, através de meios coactivos, eficazes e credíveis, destinados a impedir o descontrolo de quem já deu sobejas provas de desregramento.

 Para os outros, para os que falam a linguagem do “Bild”, e que nem sequer têm de disfarçar aquilo que realmente querem dizer, o discurso é muito mais claro: os gastadores irresponsáveis do sul são uma espécie de drogados ou de alcoólicos a quem é preciso, para bem da comunidade, infligir severas sanções e sacrifícios correspondentes aos perversos prazeres de que imoralmente desfrutaram.

E contra isto não adianta estar a esgrimir argumentos morais. Não adianta estar a lembrar aos alemães as condições que lhes foram proporcionadas a seguir à guerra para reconstruir o país; não adianta recordar-lhes as vantagens que o euro lhes proporcionou; não adianta demonstrar-lhes a responsabilidade dos credores no endividamento dos devedores (eles até têm Nietzsche, para responder a esse argumento); não adianta, numa palavra, lembrar-lhes onde chegaram e como chegaram à situação em que estão. Assim como não adianta tentar demonstrar-lhes que uma outra política que se alheasse da culpa e da austeridade e apontasse mais no sentido do crescimento acabaria por satisfazer o seu interesse muito mais eficazmente do que as políticas que estão a ser seguidas.

Os alemães não são sensíveis a argumentos morais quando está em causa a interpretação dos seus interesses e o entendimento que deles têm. Não são hoje como não eram ontem, quando, durante a guerra, se não questionavam sobre a prosperidade que a rapina de riquezas alheias e o trabalho escravo de milhões de pessoas lhes proporcionavam. Não são hoje como não eram ontem, quando, alheados e indiferentes, assistiam impassíveis (para não falar dos autores) ao extermínio de milhões de seres humanos.

E, por favor, que se não invoque os grandes nomes da filosofia alemã, da música, da poesia e até da literatura para matizar este juízo. Todos eles já existiam quando o descalabro moral alemão aconteceu. Por isso nada melhor do que citar o velho Marx, sempre muito seguro nas suas generalizações: “Os alemães só se encontram com a liberdade no dia do seu enterro”.

Perante este quadro, somente duas posições são viáveis, curiosamente muito bem expressas em dos textos ontem vindos a lume no jornal “Público”, um de Vítor Bento, outro de Loureiro dos Santos:

Ou a subserviência ao projecto alemão, de que o Governo português é um dos mais conhecidos defensores, mesmo assim criticado por Vítor Bento, por estar a perder o “tempo político” para introduzir as indispensáveis reformas estruturais, nomeadamente no campo laboral – leia-se uma significativa deflação dos salários que deveria ir até aos 50%; ou seja, a posição dos que, por razões ideológicas ou por limitações do pensamento tecnocrático – uns e outros subvertidos pelo discurso inimigo -, são incapazes de apresentar uma proposta nacional condizente com a dignidade de quem não aceita subjugar-se;

Ou os que já concluíram que no actual contexto o único meio de combater o projecto hegemónico germânico é abandonar o euro, por maiores que sejam as dificuldades no curto prazo. Um caminho difícil, mas o único compatível com a dignidade nacional, que tem de ser percorrido sem ilusões e com a antecipada certeza de que não serão muitos, agora como no passado, aqueles que estão dispostos a não aceitar o jugo germânico, pelo menos enquanto a hegemonia for evidente.

7 comentários:

  1. Fantastico comentario (Terao que os sinos das Igrejas tocar" arrebate")

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  2. JM Correia Pinto,

    desta vez, no texto intitulado "As Alternativas com que Portugal Se Defronta", parece-me que V. passou um limite perigoso, levado embora por um sentimento de revolta compreensível.

    Ou o li mal, ou V. acaba por postular uma entidade mítica, uma essência a-histórica, a que chama "os alemães", em termos simétricos dos utilizados por alguns governantes ou responsáveis alemães, quando descrevem como uma espécie de tara, semelhante ao alcoolismo, o meu desempenho económico dos povos do Sul.

    Este deslize seu tem consequências graves e condena-nos fatalmente a uma perspectiva, falsa e antidemocrática, propriamente mosntruosa. Queira V. ou não, o caminho que este seu post aponta é a luta pela dignidade nacional contra "o alemão" uno, indiviso e irrecuperável, que a sua intervenção hipostasia.

    Suponho que não preciso de lhe dizer que a única alternativa - com ou sem saída da moeda única, etc. - que me parece valer a pena é a da luta pela democracia contra o governo da economia política hoje dominante. E acontece que esta luta por mais democracia passa, na realidade, por mais Europa, e não pela resignação perante a sua liquidação pelos interesses da oligarquia económico-administrativa que, neste momento, o governo alemão lidera nesta parte do mundo.

    Gostaria de estar enganado na leitura que faço do seu texto e que V. esclarecesse a sua posição, de modo a tornar claro que me equivoquei. Mas receio que seja um desejo vão da minha parte. Sinceramente

    msp

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  3. Miguel Serras Pereira
    Acho que os mitos são muito interessantes e desempenham um papel de relevo em todas as civilizações. Nem sempre pelos melhores motivos. Recorre-se aos mitos para explicar o que de outro modo seria de difícil compreensão, mas também se recorre a eles para tornar difícil a compreensão do que é fácil.
    E nesta nossa conversa sobre a Europa, bem como sobre a democracia, há muitos mitos. O primeiro, e mais grave, é o que veicula a ideia de uma Europa solidária. Falso, completamente falso. Por muito que custe a aceitar, o primeiro elo da solidariedade é o nacional. Atenção: não estou a dizer que deva ser; não estou a dizer que me revejo nele; estou apenas a dizer o que é. Bem gostaria que fosse outro, mas não é. E apesar dos avanços, que nunca são lineares – há avanços que parecem consolidados, mas que logo a seguir regridem a patamares nunca antes imaginados – a Europa de hoje é ainda menos solidária que a dos primeiros catorze anos do começo do século passado. Por isso, estar a contar com a solidariedade democrática dos europeus para resolver em conjunto os nossos problemas, é como na Revolução de Outubro ter ficado à espera da Revolução na Alemanha e.,.e…
    Depois, a democracia, embora não seja um mito, é algo consensualmente tão vago que também não vai ser pelo seu aprofundamento como palavra de ordem que vamos mudar as coisas. Por uma razão muito simples: quanto mais aprofundamos mais a base de apoio diminui.
    Finalmente, a Alemanha. Aí é, porventura, onde historicamente tenho mais certezas. O regime Nazi não foi obra do acaso, nem de um louco. Com aquelas ou com outras características, eventualmente menos vincadas na sua brutalidade, o nazismo tem as suas raízes intelectuais na “essência” do pensamento germânico (no romantismo, no neo-romantismo, na redescoberta dos "antigos alemães", nas utopias germânicas e depois no aproveitamento de tudo isto feito pelas correntes nacionalistas....). Tudo isso está hoje muito estudado, como sabe tão bem como eu.
    Ainda um dia destes li um artigo, que vou traduzir e publicar no blogue, de um catedrático alemão que explica com notável singeleza por que razão a política da Alemanha não pode ser outra. Na exposição das razões que lhe assistem nem por um segundo lhe passa pela cabeça considerar, no mínimo que seja, o interesse dos outros. Dos outros a quem está ligado e de quem é sócio.
    E para finalizar: a Revolução faz-se em casa…e não na casa dos outros. E a democracia também…

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  4. Jm Correia Pinto,

    uma coisa é reconhecer a "eficiência histórica"; outra é dizer que esta funciona como necessidade, ou prescreve esta. Uma coisa é elucidar a história em que se apoia, interpretando-a a seu modo, a hegemonia da oligarquia alemã; outra dizer que, sendo essa história o que é, o que vai ser é como a pescada, e está escrito de antemão.
    Aliás, se, em tese geral e para além do caso alemão, a eficiência histórica funcionassem em termos de necessidade, a própria política, como acção dotada e criadora de sentido, seria impossível, e a ideia de autonomia democrática - nós somos aqueles que querem dar-se, sabendo-o, as suas próprias leis - , um absurdo.

    Quanto á ideia de que a democracia se faz em casa, muito bem - se por isso se entender que tem de ser feita no tempo e no lugar onde estamos. Mas sem esquecer que a nossa casa não mora apenas em si própria, que nós próprios não moramos apenas nela, que as fronteiras são o mapa que governa um território, que poderia ser governado de outro modo. Além de que, como gosta de lembrar George Steiner, as árvores são, sem dúvida, admiráveis, mas os seres humanos têm pernas…

    De momento, talvez já chegue. Embora não tenhamos passado dos pontos prévios. Como fazer de outro modo, no entanto, se são pontos também fundamentais?

    msp

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  5. Acho que estou de acordo. Acordo aliás reforçado com a resposta que deu a MSP.

    Sou de opinião, aliás (ao meu estilo) já publicada, que pouco é o que nos liga à Europa. Nem sei, porque, num tempo em que a globalização livra os povos de amarras geográficas, tenhamos que decidir estrategicamente na base de uma localização, ainda por cima periférica.

    Que se aprofunde um Plano B, pensando em outros espaços e em outros solidários laços... há um grande e inexplorado caminho a percorrer. Que se comece a pensar nele...

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  6. Esta discussão entre comentaristas e autor está muito interessante, mas não estará a desviar-se do essencial que me pareceu ter lido no post?

    Não creio que JMCP localize tão estreitamente na Alemanha e nas suas idiossincrasias a crise do euro. Admito que possa parecer, por talvez se ter deixado ir muito, neste post, ao sabor da desmontagem do discurso de economia moral, em que estamos inteiramente de acordo.

    Tudo o que aqui tenho lido me indica o neoliberalismo e as suas consequências (a falta de solidariedade económica europeia, a desregulação dos mercados, principalmente o financeiro, a competitividade intra-euro feita por desvalorizações internas, etc) como o culpado principal.

    Acompanho JMCP, desde há muito, numa conclusão crucial: não vem aí nenhuma fada da boa Europa. Transferir o principal do combate necessário para a arena europeia, como faz alguma esquerda, é ir ao campo do inimigo.

    Já só mais recentemente cheguei a outra conclusão, que muito gosto me dá ver tão transparentemente dita pelo meu caro JMCP. Quem me lê sabe que sou de há muito forte adepto da reestruturação da dívida. Mas dentro ou fora do euro? Hoje julgo que só é possível reestruturar imediatamente depois de, primeiro ou quase concomitantemente, sair do euro.

    Obrigado por este excelente post. De quem mostra aquilo que muita gente quer gritar: "merda, sou lúcido!"

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  7. No meio de tão elevadas reflexões, mas sempre opiniões, permito-me, por isso, uma nota muito pouco filosófica, mais à Sancho Pança. O que faz amouchar os portugueses e passar ao lado da farronquice bacoca do tipo da do inflamado deputado PS e mais a sua bomba atómica, é que o zé povinho não conhece nada da filosofia filo ou anti-germânica, mas têm uma vaga ideia é de se que a "coisa" descambar vai passar fome de cabo a rabo. O termo "fome", nessa eventualidade, não é simbólico. Não vai poder meter a dignidade nacional recuperada na panela. A varinha mágica da rotativas do Banco de Portugal (impressionante a demagogia neste ponto!) não irá impedir a redução dramática dos salários e pensões. Penso que é esta percepção e a esperança que seja possível permanecer no euro e amenizá-la que tem levado para "resignação" face ao verdadeiro e cruel "ajuste de contas" da DIREITA portuguesa. Continuando ao nível do trivial parece-me que os argumentos sobre a natureza do "problema alemão" e a sua erecção como argumento para a luta dos portugueses contra o actual "estado de sítio" não adiantará grande coisa: primeiro porque, na arena internacional/europeia, é irrelevante, apesar da bomba do deputado, depois, porque muita da argumentação da austeridade (identificada com a Merkel) é "compreendida" pelo português "comum".
    Nas causa do nazismo parece-me que é hoje tmabém pacífico o lugar para a humilhação em Versailles, na sequência de uma guerra em que é discutível a identificação das causas e dos "culpados".
    A.M.S.

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