quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

PREOCUPAÇÕES ALEMÃS



UM TEXTO ESCLARECEDOR

A criação da União Monetária Europeia nunca foi o grande sonho dos alemães. O chanceler Helmut Koll, consciente do valor emblemático que para muitos tinha o deutschmark, teve que empregar-se a fundo para convencer os seus concidadãos. Aceitámos o euro rapidamente. Diferentemente da Espanha, na Alemanha, quando se fala do que custa um carro ou uma casa, ninguém se expressa na antiga moeda nacional. Também estendemos ao BCE o respeito que sempre tivemos ao Bundesbank como guardião da estabilidade dos preços. E esse respeito deve-se ao facto de a política monetária do BCE revelar uns registos razoáveis no controlo da inflação - um tema ultra sensível na sociedade alemã, em cuja memória histórica figuram os enormes danos causados pela hiperinflação da República de Weimar há quase 90 anos e a inflação reprimida depois da II Guerra Mundial.

Na actual crise da dívida soberana o que preocupa muita gente na Alemanha, especialmente entre os assalariados, pensionistas e aforradores, é que a zona euro deixe de ser uma união de estabilidade, com uma moeda forte ,para se converter numa união de transferências financeiras dos países com solidez orçamental para os países com Governos vocacionados para o excessivo gasto público financiado com a dívida. As pressões políticas sobre o BCE para que este seja mais permissivo relativamente à inflação seriam fortes. O euro passaria a ser uma moeda débil. A reputação internacional da autoridade monetária cairia. Para a Alemanha complicar-se-ia neste caso o seu estatuto como país membro da zona euro: em 1993, no contexto da lei de ratificação do tratado de Maastricht, o Tribunal Constitucional Alemão sentenciou que uma União Monetária Europeia com inflação não seria compatível com o direito à propriedade privada garantido pela Lei Fundamental. O argumento dos magistrados foi então o de que a inflação equivale a uma expropriação dos particulares pelo Estado, e isso na Alemanha só está permitido se previamente o Parlamento aprovar uma lei determinando a forma e o montante da indemnização. Para um economista este raciocínio tão subtil é absolutamente convincente; para o cidadão comum, também.

Entre os acordos adoptados na recente cimeira europeia, o que mais convenceu a opinião pública alemã, e tem valido elogios à chanceler Merkel pela sua tenacidade durante as negociações, é o do reforço das regras da disciplina orçamental. A chave está em que os países da zona euro (e os demais da UE, com excepção do Reino Unido) se comprometeram a auto decretar pela via constitucional limites exigentes para o endividamento das Administrações públicas. A Alemanha já tem essa norma (desde 2009), a Espanha vai pelo mesmo caminho e em outros países (França, Itália, Áustria) abriu-se o debate a respeito deste assunto. Isso são sinais prometedores de que os líderes políticos aprenderam algo importante com a crise da dívida soberana: que o esbanjamento de recursos e o endividamento irresponsável ficam muito caros ao país que os pratica tanto financeiramente (pelo prémio de risco da taxa de juro) como economicamente (pela perda de crescimento e pelo desemprego). Os ajustamentos fiscais inexoráveis não vão ser indolores em nenhum país. Na Alemanha, a consolidação orçamental a nível federal e regional é aceite pela sociedade, mesmo quando haja lugar à perda de um ou outro direito adquirido. A redução da dívida do Estado é compreendida como um objectivo prioritário, a tal ponto que, como revelam as sondagens, a maioria da população recusa uma redução dos impostos mesmo nos tempos actuais em que há uma boa arrecadação de receitas tributárias.

Sob o pressuposto de que os acordos fiscais se cumprirão e os políticos não voltarão a transgredir as normas, como fizeram no passado, muitos na Alemanha se questionam se os Governos de outros países farão também as reformas estruturais indispensáveis para elevar o crescimento e a criação de emprego. Por muito que o BCE continue comprando bónus do tesouro de países com problemas de refinanciamento ou que se aumente a capacidade de “alavancagem” do Fundo de Estabilização Financeira ou que se envolva mais o FMI nos resgates, a zona euro não sairá do atoleiro se não se reforçarem paralelamente os pilares da economia real. Na Alemanha temos tido uma boa experiência com as reformas estruturais que se iniciaram há sete anos (Agenda 2010). O mercado de trabalho é agora mais flexível e o contexto para o investimento e a inovação mais amigável. Tudo isto se traduz em níveis comparativamente elevados da produtividade do factor trabalho e da competitividade internacional das empresas. O Pacto Euro Plus, aprovado em Março pelo Conselho Europeu a instâncias da chanceler Merkel, aponta nesta direcção. Porém, até agora não se traduziu nos países membros em políticas contundentes de reformas”.



Este texto foi escrito por Jürgen B. Donges, professor da Universidade de Colónia, e publicado por El País no domingo passado.

É um texto a vários títulos esclarecedor das posições alemãs.
Na primeira publicação deste post a imagem que encimava o texto reproduzia uma deturpação que a Focus alemã fez da imagem da Afrodite, que pode ser vista aqui, procurando-se com a sua colocação no texto fazer uma alusão aos dois discursos alemães sobre a crise: o discurso polido e o discurso do Bild. Dois discursos, um único objectivo. Como a imagem é ofensiva da cultura grega e embora a sua aposição no post não tivesse obviamente em vista ofender o passado grego, mas antes ilustrar o modo como os alemães vêem a "gente do sul", entendeu-se, para evitar mal entendidos,  substituí-la pela da Senhora Merkel que, não tendo nada de Afrodite, tem contudo muito de alemã e representa melhor do que ninguém os dois supra aludidos discursos.

2 comentários:

  1. O que este professor de Colónia escreveu é mais ou menos o que um observador normal vai apreendendo, mesmo sem acesso à imprensa alemã, por razões linguísticas como é o meu caso.
    Sobre a constitucionalização destas questões,(no verão há 2 anos, penso) que passou despercebida nos meios informativos daqui, o dr JM P. Correia chamou então, neste blog, à atenção para as consequências...
    Quanto ao entendimento de que a "inflação equivale a uma expropriação dos particulares pelo Estado", parece-nos forte mas, de facto de facto, é, no mínimo, um imposto sobre todos os rendimentos e direitos em geral titulados na moeda em causa, ou não? Com a agravante de que nem precisa ter qualquer aprovação parlamentar...
    A inflação é um meio de, sub-repticiamente, operar profundas transferência de riqueza. Na situação actual está-se mesmo a ver que, ainda mais que os salários, as pensões seriam o bombo da festa. Mas há muito quem esqueça o que eram as "actualizações" de salários e pensões dos anos 80 e, então,num contexto mais controlável que o actual... É evidente que as poupanças estão menos à "mão de semear" mas para lhe chegar pela via da desvalorização, sobretudo à de médio e elevado valor, seria necessário poder impedir a sua movimentação.
    LG

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  2. Caro amigo JMCorreia Pinto :))
    Fiz link...
    Com votos de Boas Festas e um grande abraço :)

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