quinta-feira, 12 de abril de 2012

PORTUGAL: COMO IMPEDIR A TRAGÉDIA?



O PROBLEMA É: QUE SOLUÇÃO?



O que se está a passar com Portugal não tem nada de novo para quem conheça a história do capitalismo nos últimos trinta anos. Está em curso desde a década de oitenta do século passado um fortíssimo ataque a tudo o que possa entorpecer a acção do mercado, quer facticamente quer juridicamente.

Esta batalha, como se sabe, começou a travar-se na América contra a sociedade criada na sequência da Grande Depressão e depois consolidada após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, aquilo a que Roosevelt chamou o New Deal e muito mais tarde Lyndon Johnson, a Grande Sociedade.

Na Europa Ocidental, tal tipo de sociedade, iniciada por Bismark, acabaria por se desenvolver muito mais amplamente do que nos Estados Unidos, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, sob a designação de Estado Social.

Tanto na Europa como na América este tipo de sociedade caracterizada por uma forte intervenção do Estado na vida económica não resulta de uma evolução, mas de decisões políticas, legalmente sustentadas e consolidadas. Ou seja, não se trata, como tantas vezes acontece na história dos povos, de situações de facto gradualmente criadas que posteriormente foram sancionadas pelo direito. Aliás, o tipo de situações em que se desdobra o Estado Social nem sequer permitiria que as coisas se passassem desse modo.

Obviamente que isto não significa que tais decisões tenham “caído do céu” como benesses de um imaginário mecenas ou filantropo que vê no bem comum a suprema aspiração da sua vida.

Numa sociedade recheada de contradições, como é a sociedade capitalista, com interesses tão radicalmente divergentes, as coisas não se passam assim. O Estado Social nas suas múltiplas concretizações resulta, por um lado, de factores preventivos e por outro de factores decorrentes da luta social. De facto, nas várias décadas que antecederam o Estado Social estava em curso no mundo ocidental uma intensa luta de classes entre os detentores dos meios de produção, nomeadamente a exploração fabril, e os simples assalariados.

O fosso então existente entre quem somente tinha a força de trabalho para vender, pelo mínimo preço economicamente possível, e os detentores dos lucros por ela gerados era abissal, tendo, primeiramente, potenciado revoltas sociais de todo o tipo levadas a cabo por quem não tinha rigorosamente nada a perder, e subsequentemente, dado origem à formação de partidos operários revolucionários manifestamente orientados para a tomada do poder com vista à construção de uma nova sociedade, liberta de exploradores.

É, assim, com fins preventivos que Bismark toma na Alemanha as primeiras medidas destinadas a atenuar aquele imenso fosso, garantindo pela via do Estado alguns direitos a quem até então só conhecia obrigações e servidão.

Mais tarde, com a chegada vitoriosa ao poder de um partido revolucionário dos trabalhadores e lançadas as bases da construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores, o capitalismo passou a encarar de modo diferente aquilo que até então podia na maior parte das vezes ser resolvido com violentas e mortíferas cargas policiais, que era o que frequentemente acontecia às lutas reivindicativas por melhorias salariais e aos movimentos operários em geral, tanto na América como na Europa.
Mais: antes mesmo da consolidação do Estado Social na Europa, partidos totalitários de direita, na Itália e na Alemanha, como resposta ao primeiro Estado Socialista, puseram em prática amplos programas sociais que iam muitíssimo além daquilo que poderia ser considerado como uma simples operação cosmética destinada a disfarçar o “capitalismo terrorista de Estado” como tantas vezes erradamente foi dito. O fascismo e o nazismo eram muito mais que isso, sendo extremamente redutor circunscrevê-los a simples instrumentos do capitalismo na defensiva. Todavia, para poderem emular com o socialismo não poderiam desvalorizar o lado social do regime, mesmo que ele fosse alcançado à custa da rapina e da sobre-exploração de outros povos, como aconteceu na Alemanha.   

A seguir à guerra, com excepção da Espanha e de Portugal, há na Europa Ocidental uma redistribuição de rendimentos que vai claramente no sentido da atribuição de uma fatia muito maior ao trabalho, tanto por via dos rendimentos directos como dos indirectos. O capitalismo ocidental numa luta de vida ou de morte contra o socialismo, não apenas no Ocidente europeu, mas em todo o mundo, não tinha condições para continuar a resistir, como tinha feito até então, a uma distribuição mais equitativa da riqueza. E aceitando esse pacto social ele acabou por se fortalecer na medida em que deixava de ser maioritariamente questionado, atenuando fortemente a luta de classes, e simultaneamente passou a ter um extraordinário poder atracção junto daqueles que, vivendo em socialismo, tinham que lidar com dificuldades, nomeadamente económicas, que o regime, por razões várias, mas onde dentre todas sobressai a ineficiência económica, não conseguia superar.

Todavia, a partir do momento em que a Leste o socialismo entrou em crise profunda para depois acabar mesmo por colapsar e a Ocidente o movimento operário e sindical perdia força, inicialmente como consequência das primeiras grandes deslocalizações que foram tendo lugar ao longo das duas últimas décadas de novecentos, mas também por via da própria estrutura da sociedade que, entretanto, por força dos avanços tecnológicos, se estava alterando radicalmente, o capitalismo retomou aquilo que sempre foi a sua verdadeira matriz: impor o mercado como verdade absoluta, invertendo o sentido do papel que até então havia aceitado que o Estado tivesse.

Doravante, o Estado já não será mais utilizado como instrumento regulador da economia, intervindo no mercado para atenuar ou até eliminar as suas distorções e os seus efeitos em todos aqueles que sem a protecção do Estado ficavam sujeitos à lei do mais forte, mas como instrumento exactamente destinado a eliminar todo e qualquer entrave ao livre jogo das forças económicas.

É por isso que é um grave erro supor ou, pior ainda, dizer que o neoliberalismo quer acabar com o Estado. O neoliberalismo precisa do Estado tanto como o socialismo dele necessita, o que pretende nesta fase que estamos a viver é atribuir-lhe funções e fazê-lo desempenhar um papel completamente diferente daquele que até então desempenhara. Sem Estado ou com um Estado fraco o capitalismo neoliberal colapsaria.

Este vasto movimento iniciado há mais de trinta anos, primeiro, na América por Reagan e que teve o seu apogeu com Clinton e na Europa por Thatcher, estendeu-se a todo o mundo, tendo actuado nos diversos continentes ao abrigo de conjunturas que favoreciam a sua ampla penetração.  

Da África à América Latina passando pela Ásia (com excepção da China e, em certa medida, da Índia) até Rússia e às ex-democracias populares, a dívida e a prévia penetração do capital financeiro em larga escala foram os factores determinantes para a implantação do capitalismo neoliberal, do qual o Tesouro Americano e o FMI foram os verdadeiros pontas de lança sempre com a colaboração, a princípio hipócrita, como é hábito, da União Europeia nas áreas onde mantinha uma razoável influência ou mesmo supremacia, como era o caso da África subsariana e, obviamente, da própria Europa.

Num panorama de tragédia generalizada que todos os dias bate records negativos em tudo quanto interessa ao bem-estar das pessoas, o êxito de que falam os agentes da alta finança nas sucessivas avaliações que vão fazendo do programa português é, portanto, este: o da alteração do papel do Estado. E é de facto um êxito, embora para já apenas relativo.

De facto, não apenas na Europa Ocidental, mas em muitas outras partes do mundo, nomeadamente na América Latina, a ideia de um Estado que possa desempenhar um papel atenuador das desigualdades sociais, quer criando à partida condições de relativa ou tendencial igualdade para quem se encontra em planos muito diferentes da pirâmide social, quer intervindo directamente na distribuição dos rendimentos, continua muito presente no imaginário popular. Por isso, esta  não é uma batalha que já se tenha de dar por perdida, apesar dos poderosíssimos instrumentos de que o neoliberalismo dispõe e de que diariamente faz uso.

Mas para a vencer será necessário estar à altura do desafio que ela impõe. Supor que pelos processos “clássicos” da democracia representativa se poderá lá chegar é uma ilusão tanto mais grave quanto é certo ela corresponder exactamente ao jogo que o inimigo nos convida a jogar certo de que já conhece o resultado final.

Nunca como hoje a hegemonia ideológica foi tão forte como a actualmente exercida pelo capitalismo neoliberal. Sob a capa de total ausência ideológica, fazendo mesmo a propaganda de que isso são coisas do passado, ela impõe um pensamento único que não deixa no imaginário popular lugar a qualquer alternativa. Tudo, falsamente, se reconduz a questões técnicas, que não deixam qualquer espaço para um pensamento e acções alternativos já que o que se tem de fazer é tão natural e óbvio como a própria “natureza das coisas”. Esta ideologia aparentemente anódina que está penetrando até ao âmago os estratos sociais que dela são as principais vítimas continua muito activa e aparentemente invencível naquilo a que poderíamos chamar os campos “consensualizados ou legitimados” de luta.

Como a peça fundamental desta luta é o Estado, ela só será ganha se o Estado mudar de mãos. E para mudar de mãos o campo de batalha não pode ser mais o escolhido pelo inimigo, qualquer que seja a pretensa “consensualização” ou “legitimação” de que esteja revestido, porque a sua aceitação corresponderia à aceitação de um caminho que, como se está a ver, levaria à servidão. O resto virá depois…

E a História também ensina que é sempre pelo elo mais fraco que a cadeia se parte…








4 comentários:

  1. Pois é. O campo de batalha não pode ser o escolhido pelo inimigo. E é uma árdua tarefa fazer passar essa mensagem. Continua. FORÇA!!!
    V

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  2. Zé Manel,
    não sei se publicou o texto no FB,
    atrevo-me a faze-lo para que se divulgue o seu trabalho.
    Abracinho
    Ana

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  3. Caro José Manuel,

    Falta levar o seu argumento até ao que me parecem ser as suas consequências. Se o campo de batalha não pode ser o da democracia representativa, que já vimos ser apenas um mecanismo de substituição do "mesmo" pelo "mesmo" e, portanto, de perpetuação do "status quo", depreende-se que a alternativa passa pela emergência de movimentos sociais fora dos quadros formais da representação parlamentar, e, muito provavelmente, passa também pela violência socialmente organizada. O problema está em saber onde estão os protagonistas ou os actores sociais que poderão dar corpo a essas soluções alternativas e, sobretudo, a formas de violência dotadas de um potencial política e socialmente transformador (e emancipatório). Confesso que, para já, não consigo vislumbrar nada que se pareça, sequer remotamente, com isso (e, por favor, não me venham falar dos "indignados"!...)

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  4. Artigo muito bem escrito, todavia marcado, ideologicamente, por uma solução a que poderíamos chamar de tendência “neo-marxista”, embora apresentada muito veladamente. Pena é que o Senhor Dr. na explicação de como impedir a tragédia só diga que a “luta só será ganha se o Estado mudar de mãos”. Contudo, V. Ex. não diz como. Claro está que não é com políticas neoliberais, social-fascistas ou neo-social- fascistas, como aquela que o poder apeado em Junho último quis impor ao povo Português, que se podem resolver os problemas que afligem os povos, pois já todas foram experimentadas e as consequências estão à vista.

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