O PRINCÍPIO DA CONVENIÊNCIA
PRÁTICA CONSTA DA CONSTITUIÇÃO?
Antes de mais é preciso reconhecer que a decisão do Tribunal
Constitucional constitui um acto de todo inesperado para a maioria dos cidadãos.
Por razões que não adianta desenvolver neste momento, tanto mais que elas estão
bem elucidadas no processo de escolha dos seus membros, como recentemente se
viu a propósito do preenchimento de três vagas, toda a gente esperava que o
Tribunal Constitucional naqueles seus raciocínios redondos e quase
incompreensíveis com que costuma brindar a generalidade dos portugueses
acabasse por tomar uma decisão que, essa sim, todos, muito particularmente os trabalhadores
do sector público e os reformados, compreenderiam imediatamente. Ou seja, que os “cortes” são
legais dada a gravidade da situação económica do país ou não fora isso o que por
outras palavras já haviam dito alguns dos seus mentores que, tendo perdido com
a idade o fulgor e a rectidão que os acompanhou na juventude, entendem agora
que a Constituição e os princípios que ela consagra verdadeiramente só valem em
tempos de normalidade. Em momentos críticos, em que esteja em causa a salus populi, a necessidade de defender
o interesse geral sobrepõe-se a todos os demais direitos. Entre parênteses: Ver como em Roma era entendido o conceito de ditadura e a sua evolução até hoje no comentário escrito em 2008, a propósito
das palavras proferidas por Manuela Ferreira Leite sobre os tais seis meses sem democracia…
Pois bem, contrariamente ao que se esperava, o Tribunal
Constitucional considerou inconstitucional a norma do orçamento que permitiu o “corte”
do subsídio de férias e de Natal dos trabalhadores do sector público e dos reformados com base
no óbvio fundamento da violação do princípio da igualdade. Mas apressou-se a
esclarecer que a decisão não vale para o ano em curso pelos inconvenientes que
a sua aplicação necessariamente acarretaria à execução do orçamento. E por aqui logo se começa a ver que, afinal, a surpresa é bem menor do que à partida parecia.
A argumentação do Tribunal Constitucional, sem falar na especificidade da situação dos reformados que merecia uma decisão autónoma, é de todo incompreensível, tanto no plano
jurídico como no plano lógico. Juridicamente não se compreende onde pode o Tribunal
Constitucional fundamentar semelhante decisão. Com efeito, a
inconstitucionalidade de uma norma decidida com força obrigatória geral
acarreta a nulidade da respectiva norma. E uma norma nula não produz, em
princípio, quaisquer efeitos, obrigando, pelo contrário, à destruição retroactiva
dos efeitos produzidos durante a sua falsa vigência. É certo que a Constituição
permite ao Tribunal Constitucional, em situações excepcionais, fixar com
alcance mais restrito os efeitos da inconstitucionalidade por razões de
segurança jurídica (que no caso não existem, pelo contrário), por razões de
equidade (ainda menos, tanto mais que o fundamento da inconstitucionalidade
acaba também por ter por suporte este princípio, embora equidade se não
confunda com igualdade) ou por interesse público de excepcional relevo (que
também não existe, como facilmente se demonstrará).
O “corte” de dois ordenados do sector público visava assegurar
o equilíbrio orçamental quantitativamente fixado, de acordo com os princípios de doutrina económica perfilhados pelo governo. Supondo que aquele equilíbrio orçamental é uma meta de interesse
público de excepcional relevância, a decisão do TC que considere inconstitucional
um dos meios para o alcançar (ou seja, o “corte” dos dois subsídios) não poria
em causa aquele interesse público (isto é, o tal equilíbrio orçamental quantitativamente
fixado) se a decisão produzisse todos os seus efeitos a partir da data em que
foi tornada pública e o governo pusesse em prática medidas gerais que garantam o respeito pelo princípio da igualdade.
De facto, o que seria expectável numa situação destas, tendo em conta outras decisões do Tribunal, era que a actual decisão não tivesse efeitos retroactivos e se aplicasse sem restrições no futuro. É assim que o Tribunal sempre procede quando uma daquelas três
razões desaconselha a destruição retroactiva dos efeitos produzidos pela norma inconstitucional. No
presente caso ao atribuir aos efeitos da inconstitucionalidade uma relevância
quase nula, o Tribunal vergou-se antes de mais ao princípio da conveniência prática
(é mais prático este ano alcançar o objectivo pelo meio que já tinha sido posto
em prática do que substitui-lo por outro), o que não deixa de ser uma
fundamentação aberrante perante o próprio
princípio que fundamenta a inconstitucionalidade e perante a própria
Constituição que em parte alguma permite subordinar as decisões do juiz a considerações
daquela ordem. Mas, pior do que isso, vergou-se também a uma doutrina económica
ideologicamente marcada, que defende que as restrições do lado da despesa se
façam fundamentalmente à custa dos vencimentos do sector público e das pensões dos reformados para por essa via se
influenciar decisivamente a diminuição da procura e, indirectamente, o abaixamento dos salários no sector privado.
São estas razões e o silêncio do Tribunal quanto ao modo de assegurar o princípio da igualdade que levam a supor carecer a presente decisão de efeitos práticos relevantes. Dito de outro modo porventura mais correcto: a decisão não seria de todo
irrelevante no plano jurídico se ela pudesse ser entendida no sentido de o
respeito pelo princípio da igualdade valer em toda a linha para todos os cidadãos.
Infelizmente, não é isso o que se depreende desta estranha decisão do Tribunal
Constitucional. De facto, ela abre a porta a um entendimento perverso que
continuará a penalizar os funcionários públicos e os reformados. E porquê? Porque ela deixa subentendida a possibilidade de a igualdade se assegurar fazendo também participar nos sacrifícios os trabalhadores do sector privado obviamente pela única via que está ao alcance do governo trilhar: a tributária. Mas não é a mesma coisa participarem todos ou participarem todos nas mesmas condições.
A criação de um imposto extraordinário incidente sobre os rendimentos de todos
os cidadãos, mesmo que na prática ele viesse a recair, como é hábito,
fundamentalmente sobre os rendimentos do trabalho, é uma coisa bem diferente da
criação desse imposto apenas para os trabalhadores do sector privado deixando tudo
como está para os funcionários públicos e os reformados. No primeiro caso teríamos
um imposto que incidia sobre um direito (o rendimento) enquanto no segundo teremos
a supressão de um direito (“corte” puro e simples dos subsídios de férias e de Natal).
Ora, estas duas situações são realidades jurídicas e economicas muito diferentes! De facto, os trabalhadores do sector privado ficariam a perder com esta decisão e os trabalhadores do sector público bem como os reformados nada ganhariam com ela nem sequer aquilo que de mais elementar estava em jogo: o reconhecimento do direito aos subsídios de férias e de Natal.
A criação de um imposto
extraordinário geral incidente sobre o rendimento de todos os cidadãos, embora sendo na
prática um imposto sobre o rendimento do trabalho, é algo de muito
diferente da supressão pura e simples de um direito com base em considerações
de doutrina económica. Como não há nenhuma razão para supor que o Tribunal
se não contente com este entendimento, que no fundo era o de Cavaco, a decisão
poderá ter por efeito prático apenas e só a criação de um imposto extraordinário
(temporário) sobre os trabalhadores do sector privado, deixando tudo como está no sector público e nos reformados. Outro poderia ser o
efeito prático da decisão do TC se ela própria não estivesse enredada nas
múltiplas contradições que a suportam.
Por isso é que ainda se está para saber se esta construção do
Tribunal Constitucional vinda hoje a lume, não obstante as repercussões quase
tsunâmicas que está a ter, não visa alcançar por caminhos perversos o
mesmo ou até um "melhor resultado" do que aquele que canhestramente lhe tinha sido sugerido por alguns dos seus mais conhecidos mentores.
Este acórdão do Tribunal Constitucional vem mesmo a calhar a Pedro Passos Coelho (PPC) e ao seu Governo. Acaba por ser mais um amparo para a tomada de decisões de austeridade que já estavam a ser ponderadas face ao novo e ampliado buraco orçamental.
ResponderEliminarNa verdade, neste momento a Constituição é apenas um papel pintado com tinta. Não admira que PPC e os seus tenham deixado de falar na necessidade de proceder a alterações à Constituição. Afinal, nem sequer é preciso, pois há muito que deixou de ser respeitada, e em primeiro lugar, pasme-se, pelos que tinham por missão salvaguardá-la.
Os acordos com quem trabalha e com os pensionistas (os direitos sociais e laborais) foram prontamente rasgados e desrespeitados, "dada a gravidade da situação económica", mas os acordos com as parcerias público privadas, esses, têm de ser ponderados lá mais para diante, logo se vê, quem sabe…
Eles que continuem a minar a sua própria base eleitoral – a classe média – que acabarão por cair com estrondo. É uma questão de tempo. A não ser que, e é o mais provável, antes saiam "de fininho", dada a sua manifesta incompetência.
Percebo pouco das "leis" que regem as leis e, sobretudo, da retórica acerca das mesmas. Para mim tenho que as mesmas podem ser um empecilho, mais ou menos temporário, mas haverá sempre maneira mais ou menos "legal" de contornar essa dificuldade por forma a que se cumpra a vontade de quem tem o verdadeiro poder de que elas são, por definição, a expressão. Já o Mao dizia que o poder e, portanto, fazer e desfazer as leis, está na ponta das baionetas.
ResponderEliminarQuanto à questão de fundo, acho engraçado um certo discurso que quer fazer passar a ideia de que se se pudesse desvalorizar a moeda à portuguesa tudo seria muito mais fácil. De facto têm alguma razão: nos anos 70/80 houve cortes de salários na ordem dos 15-20% (reais)ao ano e nunca ninguém se lembrou de invocar qq inconstitucionalidade. Essa pessoas parecem esquecer que se para lá voltarmos (eu não vejo como se poderá evitar), por exemplo os reformados, porque têm pouca ou nenhuma força reivindicativa, levariam uma ripeirada monumental e até poderiam obter, no princípio do ano, generosas actualizações. Era tão bom aquele tempo em que os nossos competentes e patrióticos governos dispunham da saudosa "soberania" monetária.....Agora, mesmo com o grande Relvas, sofremos as agruras dum protectorado às ordens dos luteranos. Igreja Católica Apostólica Romana, estás perdoada!!
LUGO
Não questiono nem comento a decisão do TC, visto não ter conhecimentos sobre Direito que me permitam emitir uma opinião fundamentada. O que me parece evidente é que o Governo vai fazer recair o dinheiro que vai perder, sobre toda a população, o que é uma grande injustiça. Eu trabalho para o sector privado e já me vi obrigado a mudar de cidade e de emprego várias vezes estando sempre sujeito aos ditames da evolução da economia e dos despedimentos. Não tenho garantias que possa estar empregado daqui a 6 meses ou 1 ano com todas as consequências que isso acarreta. No sector público existe segurança laboral e os horários são cumpridos. Não há despedimentos. Tenho a certeza que 80% das pessoas do sector privado não se importariam de trabalhar no sector público, mesmo sem o subsídio de férias, se mantivessem o salário. O TC poderia então opinar sobre este tipo de equidades.... Pelo supracitado e face à crise e à necessidade urgente de arranjar receita não é de todo aceitável que a parte produtiva da sociedade, a que contribui efectivamente para gerar riqueza, seja sancionada com cortes em proveito daqueles que vivem da riqueza gerada, tendo em conta claro que os serviços públicos são indispensáveis, mas o que se analisa aqui é segurança do trabalho e a justiça económica.
ResponderEliminarNo meio da austeridade, os contratos das PPP's já foram negociados? Ou os sacrifícios continuarão a recair sempre sobre os mesmos.....?
“...ou não fora isso (a legalidade dos "cortes") o que por outras palavras já haviam dito alguns dos seus mentores que, tendo perdido com a idade o fulgor e a rectidão que os acompanhou na juventude, entendem agora que a Constituição e os princípios que ela consagra verdadeiramente só valem em tempos de normalidade”.
ResponderEliminarNão, meu Caro CP, com a idade não se perde a retidão. Com a idade só se perde a saúde e outra coisa que eu agora aqui não diga. Fora isso, com a idade ganha-se quase tudo. O que os fez perder a retidão não foi a idade, foi o dinheiro e os múltiplos esquemas em que estão enredados como juristas.
É raro um post brilhante, como é seu timbre, resultar em conclusões tão óbvias.
ResponderEliminarÉ claro que tudo isto foi feito com reserva mental. Era óbvia a inconstitucionalidade, ou melhor, as inconstitucionalidades. Naturalmente que os juízes do TC, todos eles comprometidos,como bem diz o Anónimo das 12:40, escolheram, das várias, aquela que mais convinha aos seus enredos.
Não li o acórdão mas as conclusões a que tive acesso permitem-me concluir, na linha do que o Zé Manel bem refere, que juridicamente é um aborto.
Bem, uma coisa este acórdão tem de positivo: não declarou inconstitucionais as alterações unilaterais aos contratos de trabalho que o Estado tem com os funcionários públicos.
Podemos concluir daqui que, caso o governo vier a fazer alterações unilaterais aos contratos com as PPP, o TC também não as irá considerar inconstitucionais. Será...?
JR