UMA DECISÃO SINGULAR
O acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional que
declarou inconstitucionais com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2013 as
normas do Orçamento de 2012 que suspendiam o pagamento dos subsídios de férias
e de Natal aos trabalhadores do sector público e aos reformados tem um “pecado
original”. Esse "pecado original" é o acórdão n.º 356/2011 de 21 de Novembro que
considerou conforme à Constituição as reduções remuneratórias impostas aos
funcionários públicos pelo Governo Sócrates.
Este acórdão, hoje quase esquecido pela hecatombe que se lhe
seguiu com o Governo Passos Coelho, considerou que aquelas reduções, apenas
incidentes sobre os funcionários públicos, não feriam o princípio da igualdade
nem atingiam outros princípios do Estado de Direito por se situarem dentro dos limites
do sacrifício suportável e também por não estarem em condições de igualdade com
os restantes cidadãos aqueles que recebem de verbas públicas, não
consubstanciando, por isso, o sacrifício adicional que lhes foi exigido um
tratamento injustificadamente desigual. Além de, dizia-se também, haver certas
metas a atingir em consequência de compromissos internacionais assumidos pelo
governo que são mais fáceis de alcançar a curto prazo através de meios
apenas incidentes sobre a despesa.
Explicando as coisas para que se percebam bem: este acórdão é, como se diz na gíria,
um “frete” ao Governo Sócrates. É evidente que o
princípio da igualdade foi violado pela norma que permitiu as reduções
remuneratórias não sendo juridicamente sustentáveis as conclusões a que nele se
chegou. De facto, não faz sentido nenhum valorar juridicamente a eventual eficiência
de certos meios para a obtenção da certas metas, consistindo no caso essa eficiência
no facto de aquelas verbas se poderem alcançar mais facilmente a partir de um
simples corte na despesa, quando se está a tratar de direitos fundamentais e de
princípios estruturantes do Estado de Direito. Então um princípio constitucional
pode ser postergado pelo facto de por essa via se alcançar mais rapidamente uma
meta a que o Governo se comprometeu? E se o meio fosse menos eficiente já não
poderia? Não, a questão não se pode colocar assim. A meta a que o governo se
comprometeu tem de ser alcançada nos termos do Direito e não contra ele ou à
sua margem. E, neste caso, respeitar o Direito era respeitar o princípio da
igualdade. E se para se respeitar o princípio da igualdade se tivesse de actuar
pelo lado da receita ou da receita e da despesa era essa a via que o governo deveria
ter seguido já que não há nenhum princípio constitucional que erija a eficiência em
valor superior susceptível de fazer precludir os demais princípios e valores
que informam a Constituição. Além de que a eficiência é ou pode ser a mesma
actuando apenas de um só lado ou de ambos os lados do orçamento.
Por outro lado, também não faz nenhum sentido, absolutamente
nenhum, afirmar que quem recebe por verbas públicas não está em posição de
igualdade com os restantes cidadãos se com isso se pretender dizer que há
outros deveres ou direitos para além daqueles que constam das leis gerais, do
estatuto dos funcionários ou da Constituição. E acaso nos tais "sacrifícios" pelo lado da receita há algum de que os trabalhadores do sector público estejam isentos? Onde fundamentar então a aceitação dessa tendencial desigualdade?
Finalmente, a invocação dos “limites do sacrifício” ou dos
“limites do sacrifício suportável” é uma novidade dificilmente compreensível
quando se está a falar da relação do cidadão com a sua Pátria. Como estabelecer
limites para o sacrifício de cada cidadão se até a própria vida lhe pode ser exigida
em determinadas circunstâncias? O que há, por maior que seja a gravidade da
situação ou a emergência nacional, é a obrigação de respeitar o princípio da
igualdade na distribuição dos sacrifícios por todos. E isso foi o que se não
fez na Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2011!
Com estes antecedentes compreende-se melhor o Acórdão n.º
353/2012 ontem tornado público.
Para poder declarar inconstitucionais as normas do Orçamento
para 2012 que “cortaram” os subsídios de férias e de Natal com base na violação
do princípio da igualdade o Tribunal, para manter um mínimo de coerência,
teria, por um lado, que considerar ultrapassados os tais “limites do
sacrifício” e, por outro, reconhecer que, embora haja razões para diferenciar
quem recebe por dinheiros públicos de quem não recebe, essa diferença de tratamento
se for desproporcionada viola o princípio da igualdade.
Portanto, o acórdão, contrariamente ao que se depreende das
declarações do Governo continua a abrir a porta ou, no mínimo, a deixá-la
entreaberta a um tratamento diferenciado entre os que recebem do sector público
e os que recebem do sector privado. E o que se depreende da fundamentação do Tribunal
é que não haverá violação do princípio da igualdade se essa diferenciação se
situar dentro de limites razoáveis, ou seja, se não for desproporcionada.
É certo que o Tribunal se debruçou sobre a natureza dos
“cortes”, isto, é sobre a natureza dos subsídios de férias e de Natal, tendo
concluído – e este é um dos pontos positivos do acórdão – que se trata de
vencimentos iguais aos outros e não de “bónus” como obscenamente ainda ontem
foi afirmado por um reconvertido constitucionalista neoliberal. Mas se este é
um ponto positivo do acórdão também não é menos verdade que o Tribunal não leva
esta sua constatação às conclusões que se impunham. Ou seja, o Tribunal deveria
deixar indicado ou pelo menos indiciado que o respeito pelo princípio da igualdade
impõe que a natureza das medidas que no futuro venham a ser tomadas tem de ser idêntica. Independentemente de se poderem situar em planos quantitativos diferentes
(facto que o Tribunal admitiu no acórdão 396/2011 e reiterou no actual por
estas ou outras palavras) a natureza da medida tem de ser idêntica para o
sector público e para o sector privado. Só assim se teria garantido sem margem
para dúvidas o princípio de que os subsídios são um direito e não qualquer
outra coisa. Recorde-se a
latere embora com pertinência que
o Primeiro Ministro numa das várias declarações que fez sobre o assunto
sublinhou que o Tribunal não havia considerado o direito aos subsídios como um “direito
adquirido”
O acórdão responde razoavelmente à argumentação do governo,
cretinamente repetida por alguns universitários e propagandistas políticos de
nível duvidoso, de que há uma diferença entre o sector público e o privado justificativa
da disparidade de tratamento entre ambos, baseada no facto de em média no
sector privado se ganhar menos do que no sector público e de o no sector
público haver uma garantia de emprego que o sector privado não tem.
Esta argumentação, aduzida pelo governo e repetida pelos seus
apoiantes, é juridicamente tão inapropriada que ela levaria imediatamente a que
a situação criada aos reformados fosse sem mais considerada inconstitucional.
Mas, independentemente desta conclusão que tem passado completamente à margem da
discussão, é legítimo perguntar-se: o que é a média para este efeito? Até
apetece lembrar a quem fala em média que um sujeito que esteja com a cabeça
numa fornalha e com as pernas numa potente câmara frigorífica até estará muito
provavelmente com uma temperatura corporal média bem razoável, e todavia…De
facto, falar em média para comparar os vencimentos do sector público com os do
sector privado não faz qualquer sentido por se tratar de funções que na maior
parte dos casos não são comparáveis por mais “outsourcings” que os neoliberais
inventem para tentar induzir na administração pública e nas funções do Estado a
lógica do capital privado. Por outro lado, a questão da segurança no emprego,
além de a sua invocação não passar de uma rematada hipocrisia – é bom não
esquecer que a causa desta vaga de despedimentos, que aliás as medidas sub judice agravam drasticamente, está no
fundamentalismo neoliberal do Governo – e de hoje estar longe de ser um facto
verdadeiro até para os funcionários públicos, quanto mais para os restantes
trabalhadores do sector público, não é um assunto possa ser invocado para
justificar as diferenças, porque do que se está a tratar é da penalização dos
rendimentos que se recebem e não dos que não se recebem! Quem tem criado a
insegurança no emprego privado – e também no público, é sempre bom relembrá-lo –
é o governo com a sua política económica e com as medidas contrárias à
Constituição que tem vindo a tomar. A que propósito é que os trabalhadores do
sector público e os reformados teriam de pagar esta insegurança
propositadamente prosseguida por quem governa?
Finalmente, o acórdão encerra mais duas fragilidades
irremediáveis: a primeira é de não ter analisado autonomamente a questão dos
reformados subsumindo a sua situação no princípio da igualdade em condições de
completa paridade com os funcionários públicos e outros trabalhadores do sector
público atingidos pelos “cortes”, quando a sua situação é radicalmente
diferente; e a segunda tem a ver com a delimitação dos efeitos das normas declaradas
inconstitucionais. Como é juridicamente possível que uma norma declarada
inconstitucional com força obrigatória geral continue a aplicar-se? Pois não é
óbvio, apesar da letra da lei, que a delimitação dos efeitos permitida a título
excepcional pelo n.º 4 do artigo 234.º da Constituição tem como limite temporal
inultrapassável a data da publicação do acórdão? Há na história do TC algum
acórdão que tenha ultrapassado aquele limite? Como pode o Tribunal Constitucional
decretar a suspensão temporária da Constituição que tem por missão defender? Delimitar
os efeitos da inconstitucionalidade até à data da eficácia do Acórdão é algo
completamente diferente do alargamento dessas restrições para além daquela data.
É juridicamente um absurdo.
Em conclusão: Independentemente da crítica de que sejam
passíveis os fundamentos que sustentam a declaração de inconstitucionalidade, facto
normal no comentário das decisões jurisprudenciais, a segunda parte da decisão
– a que permite a manutenção dos efeitos da norma nula até ao fim de 2012 – é
tão desprestigiante que já há quem vaticine que o Tribunal Constitucional dificilmente
lhe sobreviverá. Erigindo o princípio da oportunidade em regra de acção, como
se de um órgão político se tratasse, e relegando para plano secundário e
subalternizando o princípio da legalidade, o Tribunal Constitucional com a sua
decisão de ontem parece ter começado a escrever a sua própria certidão de
óbito!
Obscena, com efeito, a teoria de que os 13.º e 14.º meses não são retribuição laboral (exactamente 1/7 do rendimento anual), são meros bónus (brindes?) que a lei dá e a lei tira, livremente...
ResponderEliminarValha-nos Deus!
A.M.
356 em 2011
ResponderEliminar353 acordãos em 2012
acho que estes são acordãos mai apressados
Mas há uma diferença entre trabalhadores do privado e da função pública. Ambos pagam impostos, mas só os função pública recebem dessa parte ou bolo para onde todos os outros pagam ou contribem.
ResponderEliminarPara além disso e para haver igualdade seria bom que os funcionários públicos pudessem passar a ser despedidos como os privados, sejam porque desrespeitaram uma ordem da chefia ou cumprem deficientemente a função, seja porque ocorreu uma reestruturação, seja porque o “negócio” decresceu, seja porque está inadaptado. Isso da reforma compulsiva a cargo do “pessoal que paga impostos” deve acabar de imediato.Altere-se a Constituição.
O Estado é um gastador, assuma-se isso. Acabe-se, como defendem Miguel Cadilhe e outros, com as dezenas ou centenas de Institutos e Fundações que para pouco servem (quer dizer servem para prestígio e para mostrar que somos tão bons ou melhores que os países ricos).
José Pacheco