E O CAPITALISMO SEM RESPOSTAS PARA A SOCIEDADE
Que o euro não tem condições para subsistir no quadro institucional hoje existente é uma conclusão que neste blogue se deu por adquirida há muito tempo. No fundo a incapacidade de subsistência da moeda única não resulta tanto do modo como ela foi gizada, como do processo de construção europeia, ele próprio fortemente dependente do contexto que o gerou. Alterado este, dificilmente poderá subsistir sem a prevalência de fortes posições de domínio que a prazo relativamente breve se tornarão inaceitáveis pelos povos dos países em crise, orgulhosos da sua história e ciosos da sua soberania.
Mas é bom que se perceba que, para lá de todas as dificuldades técnicas e políticas que têm pautado a atribulada vida do euro nestes últimos anos, o que verdadeiramente está em causa no mundo capitalista desenvolvido é a incapacidade de o sistema responder positivamente aos anseios e aspirações da sociedade. A crise do euro não passa na Europa de um epifenómeno ou, para quem não goste da palavra, de um sintoma de uma doença muito mais grave do que aquela que resulta da construção de uma união sem alicerces fundados na vontade popular e interiorizados pela maioria das pessoas como uma conquista irreversível. A crise do euro na Europa tal como a crise da dívida e do défice na América têm de certo modo a mesma origem apesar de se manifestarem de maneira aparentemente diferente.
Exactamente por isso é que os “bons remédios” que tanto lá como cá as correntes mais humanistas ou progressistas do capitalismo tendem a prodigalizar de pouco servem e em regra nada resolvem ou porque são inaplicáveis no actual contexto ou porque, se aplicáveis, não produziriam os mesmos efeitos que noutras ocasiões e noutros contextos já produziram.
A crise que vivemos é, portanto, uma crise do capitalismo potenciada pela globalização e pelo domínio hegemónico do capital financeiro. Mas atenção: quando se fala em crise do capitalismo de forma alguma se pretende sugerir a ideia de que o capitalismo esteja na defensiva ou à beira do colapso. Pelo contrário, o capitalismo nunca esteve em toda a sua história, nem mesmo nos “anos dourados” do último quartel do século XIX e nos primeiros anos do século XX, tão ferozmente agressivo como hoje nem tão seguro da completa ausência de alternativa como está nos nossos dias. Basta ouvi-los falar nas televisões ou lê-los nos livros e nos jornais para imediatamente se perceber que a arrogância com que se exprimem não tem nada de fanfarronice resultando antes da segurança absoluta de quem julga ter a seu favor todo o tempo que está para vir.
A crise de que falámos é antes a que a resulta de o sistema ter perdido a capacidade para gerar as respostas por que anseiam as pessoas que continuam nele fielmente integradas por também elas estarem (ainda) convictamente convencidas de que não há alternativa ou de que, se esta teoricamente existe, não há a possibilidade prática de a executar e pôr em prática. O crescimento do desemprego e a desigualdade crescente na distribuição dos rendimentos criando um fosso cada vez mais profundo entre um pequeno número de privilegiados e a grande massa dos cidadãos que se debate com um emprego tendencialmente mais precário a cada dia que passa e sempre mais mal pago constituem o contraste mais flagrante com o modo de funcionamento do sistema em épocas relativamente recentes. E isto acabará por se notar, acabará por ser compreendido pela maioria como um constrangimento que tem de ser afastado a bem ou mal. E só nessa altura é que a crise que hoje existe se tornará evidente dando lugar à substituição do sistema.
Dir-se-á – e é isso que os arautos do pensamento único dizem todos os dias – que a situação que hoje se vive nas sociedades capitalistas ocidentais resulta da melhoria das condições de vida nas demais regiões do globo, nomeadamente nos países emergentes, bem como do papel que estes passaram a desempenhar na economia mundial. Ou de uma forma mais simples: perdemos competitividade por força da emergência desses países no processo produtivo mundial, logo vamos ter de “ajustar” os nossos rendimentos a esta nova realidade.
Esta explicação como todas as veiculadas pelos “pires de lima e os borges” deste mundo assenta numa enorme e deturpadora falácia. Em primeiro lugar, o rendimento dos países desenvolvidos do Ocidente, não obstante a crise e as recessões posteriores a 2007, é hoje incomparavelmente superior ao que existia antes da globalização. O próprio rendimento per capita, apesar de constituir uma média fictícia, é também muito superior, o que significa que, se a riqueza gerada fosse distribuída de acordo com outros critérios, toda a gente poderia estar numa situação bem melhor do que aquela em que se encontrava anteriormente. E se ao acréscimo de rendimento, associarmos os extraordinários progressos técnicos que desde então se verificaram, e o que isso representa em comodidades de toda a espécie, então o nível de vida de hoje poderia ser incomparavelmente superior ao que existia antes. Infelizmente não é isso que acontece. Muita da aparente prosperidade de quem vive do seu salário assentou num endividamento crescente directamente ligado à acentuada desigualdade na distribuição dos rendimentos.
Em segundo lugar, a globalização e a concorrência à escala mundial de forma alguma impedem que essa competição ocorra tendencialmente com base nas mesmas ou idênticas regras – regras ambientais, regras de protecção social, etc. Aliás, é isso que os países emergentes fazem relativamente a outras áreas – e fazem-no sempre que isso é fundamental para a sua economia e para o seu modelo de desenvolvimento económico – quando estabelecem protecções da mais variada espécie para defender a produção nacional da concorrência estrangeira.
E isso só não acontece no Ocidente porque não é esse o interesse do capital dominante. O interesse do capital é o lucro. As pessoas somente contam na medida em que servem aquele objectivo e não como entidades autónomas. Portanto, se o capital industrial tiver que desempregar milhares de trabalhadores, deslocalizando a empresa para aumentar o lucro, fá-lo-á com toda a tranquilidade. Aliás, para o capital é muito mais lucrativo não apenas imediatamente mas também a prazo proceder àquelas manobras do que proteger com regras justas e equitativas a sua produção, uma vez que a deslocalização como regra acabará por ter como efeito geral uma quebra considerável do preço da força de trabalho. E se às manobras do capital industrial juntarmos a liberalização dos mercados financeiros, então a desprotecção dos trabalhadores ocidentais é ainda muitíssimo maior.
Voltando à crise. As medidas que a direita radical de inspiração neoliberal propõe para “combater” a crise são praticamente as mesmas de ambos os lados do Atlântico. Na América, as propostas vão todas no sentido da redução do défice e da dívida mediante um combate encarniçado à maior parte das despesas do Estado, salvo as da defesa, e eliminação do que resta dos incipientes programas de protecção social (revogação da reforma da saúde de Obama, eliminação ou drástica redução das verbas destinadas ao financiamento do Medicaid, substituição do Medicare pelo Vouchercare, ou seja, entrega do negócio aos privados, co-pagamentos cada vez mais desproporcionados entre o que cabe ao Estado e ao cidadão e ampliação da redução de impostos para os mais ricos).
Na Europa, a conversa é no essencial a mesma, com as adaptações indispensáveis à existência de um contexto bem diferente do americano. A pretexto da crise do euro, a direita marcadamente neoliberal, apoiada pelos seus instrumentos de acção política e financeira – BCE, Comissão Europeia e FMI –, impõe drásticos cortes nas verbas do Estado social, rebaixa os salários e ataca pela via dos impostos directos e indirectos e pela subida dos preços de bens essenciais os rendimentos mais baixos, reforçando do mesmo passo os lucros dos grupos monopolistas ou oligopolistas prestadores desse bens e serviços. É, porém, verdade que o ataque ao Estado social não se faz em todo o lado do mesmo modo nem com a mesma intensidade, mas isso não resulta da existência de uma diferente estratégia, mas antes, contrariamente ao que acontece na América, da existência não de uma mas de 27 economias diferentes na Europa, cada uma com os seus interesses próprios e com graus de solidez ou fragilidade diferenciados, além de uma diferente correlação de forças que faz com que não seja para já possível advogar na Europa certas medidas com a mesma “franqueza” com que são apresentadas na América.
Contra estas medidas manifesta-se a corrente capitalista de inspiração neokeynesiana propondo investimentos gigantescos do sector público, com agravamento do défice e da dívida, como único meio de relançamento da procura. Na Europa e na América os que se situam nesta área não defendem exatamente a mesma coisa. Na América as propostas dos neokeynesianos incidem fundamentalmente no investimento público em montante muitíssimo superior aos dos programas de relançamento da economia que desde há quatro anos vêm, com muita dificuldade grande oposição, sendo postos em prática. Na Europa, há por assim dizer duas frentes: a frente da taxa de juro das economias mais endividadas e a frente das medidas de austeridade. Os neokeynesianos europeus advogam antes de mais uma actuação do BCE muito distinta da que tem tido, quer garantindo a solvabilidade dos Estados mediante a compra ilimitada da dívida pública, quer promovendo medidas de apoio ao crescimento económico, e defendem na ordem interna algum abrandamento das medidas de austeridade (que não rejeitam) com vista ao relançamento do emprego, mantendo a questão da dívida e do défice como questões importantes, embora susceptíveis de perderem a prazo a importância que hoje têm se houver crescimento económico, abaixamento substancial das taxas de juro e, consequentemente, a diminuição do peso da dívida relativamente ao PIB.
As alianças conjunturais a que nos últimos tempos se têm assistido, entre políticos da direita neoliberal dos países em crise e os adversários das correntes monetaristas tem, de facto, incidido mais sobre as questões relacionadas com a moeda do que propriamente sobre os modelos de desenvolvimento económico. Rajoy e Monti, altamente preocupados com o financiamento das suas economias têm convergido com outros políticos de inspiração neokeynesiana em tudo que diga respeito a um novo papel do BCE com vista ao abaixamento das taxas de juros, mas não recusam, antes defendem, internamente medidas de austeridade que na prática sempre serão limitadoras do crescimento económico.
Em conclusão e sintetizando: as medidas neokeynesianas que hoje são propostas para relançar a economia nada têm a ver com as que na década de trinta do século passado foram adoptadas na América, assim como os financiamentos que são solicitados para o mesmo efeito também nada têm de semelhante com o plano Marshall aprovado posteriormente à II Guerra Mundial numa época em que a Europa ameaçava mergulhar no mais profundo caos económico e político (a partir de 1947). O contexto em que as medidas keynesianas de há oito décadas foram tomadas, bem como os pressupostos em que assentavam, não existem hoje. Hoje o espectro do comunismo deixou de pairar sobre o capital, as preocupações de redistribuição dos rendimentos (New Deal) não existem, nem há quem ameaçadoramente as defenda, e os próprios Estados estão numa situação financeira bem diferente da então existente. Hoje estão fortemente endividados, apesar de as causas não serem em todo lado as mesmas, enquanto naquela época a divida pública era diminuta. E sem redistribuição de rendimentos não há neokeynesianismo que sobreviva…
Por outro lado, as “guerras” travadas no seio do euro sobre o papel do BCE poderiam, se vitoriosas num sentido menos monetarista, trazer algum alívio às economias mais endividadas, mas não resolveriam nenhum dos problemas que estão na origem da crise.
Como ainda hoje se viu, o BCE exigirá um drástico condicionalismo como contrapartida para uma actuação um pouco mais heterodoxa. E sabe-se que efeitos têm as medidas de austeridade e qual o propósito político que as anima. Portanto, nada de substancial vai mudar…
Aconteceu na Islândia
ResponderEliminar“A negativa do povo da Islândia a pagar a dívida que as elites abastadas tinham adquirido com a Grã Bretanha e a Holanda gerou muito medo no seio da União Europeia. Prova deste temor foi o absoluto silêncio na mídia sobre o que aconteceu. Nesta pequena nação de 320.000 habitantes a voz da classe política burguesa tem sido substituída pela do povo indignado perante tanto abuso de poder e roubo do dinheiro da classe trabalhadora. O mais admirável é que esta guinada na política sócio-económica islandesa aconteceu de um jeito pacífico e irrevogável. Uma autêntica revolução contra o poder que conduziu tantos outros países maiores até a crise atual.
Este processo de democratização da vida política que já dura dois anos é um claro exemplo de como é possível que o povo não pague a crise gerada pelos ricos.”
Ouvir em: http://www.youtube.com/watch?v=lNt7zc6ouco
É só um diagnóstico. Mas é um bom começo.
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