A INCOMPATIBILIDADE ENTRE NEOLIBERALISMO E DEMOCRACIA
No artigo sucinto escrito há dias sobre a Ucrânia o estilo
usado e as afirmações proclamatórias sobre o comportamento político e o papel
da União Europeia na crise ucraniana bem como o dos governos das principais
potências da União, assim como o dos Estados Unidos, além, obviamente, do das
instituições financeiras internacionais, como o FMI, são propositadamente
provocatórias, por ausência de fundamentação, mas nem por isso deixam
de ser menos assertivas como no presente texto se tentará demonstrar.
Há um caminho que vem sendo meticulosamente percorrido desde
há mais de trinta anos que não se manifesta simultaneamente em todos os países
com a mesma intensidade, atingindo uns mais do que outros, embora o objectivo,
desde há muito traçado, esteja em vias de ser alcançado: a destruição
pura e simples do pacto social saído da II Guerra Mundial cuja aplicação
durante várias décadas fez crer mesmo aos mais avisados que o capitalismo era
compatível com a democracia e que era exactamente por via dele que mais
eficazmente se poderia garantir a liberdade e assegurar uma justiça
distributiva que embora privilegiasse, como não poderia deixar de ser, o
capital, garantiria também pela via da retribuição directa (salários) e
indirecta (despesas socais) uma relativa igualdade que tornava o sistema para a
generalidade das pessoas, pelas facilidades de acesso ao consumo que
proporcionava e pela mobilidade social que propiciava, indiscutivelmente muito
mais aliciante do que o socialismo real.
Tudo isto, porém, está em profunda transformação desde meados
da década de setenta do século passado. A transformação começou por ser lenta,
cautelosa, mas sofreu uma considerável aceleração depois da implosão da URSS e
mais recentemente com a chamada crise da “dívida soberana” que, no fundo, mais
não é do que a inevitável consequência da profunda alteração dos critérios de
distribuição do rendimento que desde há muito vinham sendo postos em prática, apesar
de a política de crédito barato, resultante de uma acumulação de capital sem
precedentes nos tempos mais recentes, ter atenuado consideravelmente, numa
primeira fase, os efeitos mais visíveis da desigualdade.
É claro – e isso tem sido frequentemente referido neste
blogue – que a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria, como
competição entre dois sistemas, favoreceram o desenvolvimento e a concretização da
estratégia capitalista neoliberal, embora haja entre os dois fenómenos uma
relação dialéctica que não pode nem deve ser menosprezada. A verdade, porém, é que o “guião”
já estava há muito escrito e somente precisava que as condições objectivas necessárias
à sua execução se verificassem para começar a ser aplicado em toda a linha. É
também certo que o capitalismo nunca precisou de grande elaboração teórica para
prosseguir o lucro máximo, apenas de condições políticas que o permitam.
Durante décadas, mais concretamente desde a
Grande Depressão de 1929 e, principalmente, depois da vitória das forças
democráticas e proletárias na II Guerra Mundial, o capitalismo não teve
condições objectivas para pôr em prática aquilo que é a sua verdadeira matriz:
o lucro máximo e a ausência de qualquer intervenção estadual que o impeça.
As doutrinas keynesianas em prática desde a crise de 29 nas
grandes potências capitalistas do Ocidente e o seu êxito democrático e popular
na economia social de mercado inviabilizavam durante muito tempo qualquer
tentativa de retorno às teses da economia clássica. Somente muitos anos mais
tarde, na sequência da primeira crise petrolífera, em 1973, quando a inflação,
o desemprego e a estagnação (como fenómenos simultâneos) puseram em causa os
“dogmas” keynesianos, passou a haver campo aberto para um regresso às teses
clássicas, agora vestidas com novas roupagens, com o objectivo fundamental de pôr
o Estado, o mesmo é dizer, a democracia, fora da economia. Para o capital o
Estado só interessa como garante do património e da liberdade económica.
As teorizações de Hayek, que à época em que foram escritas (antes
e durante a guerra) não tiveram qualquer repercussão fora dos meios académicos
e mesmo nestes, apesar do relativo entusiasmo com que foram recebidas pelos
anti-keynesianos da London School of Economics e de um círculo restrito de
Cambridge, não lograram pôr em causa a estrela ascendente de Keynes que então
já dominava o mundo académico com as suas teses inovadoras, começaram a ser
muito mais tarde adoptadas em fins da década de setenta e início da de oitenta
pelos governos reaccionários de Thatcher e Reagan com o êxito político que se
conhece.
O primeiro ataque à democracia tanto na América como na
Inglaterra incidiu sobre a desarticulação do movimento sindical, depois na
progressiva expulsão do Estado da economia e na gradual desregulamentação dos
diversos sectores económicos e, finalmente, na privatização das principais
empresas públicas.
Todavia, estávamos apenas no começo. A justificação para as
novas políticas assentava, filosoficamente, na ideia de que o Estado oprime e de
que a sua intervenção na economia é sempre o primeiro passo para o caminho da servidão e, economicamente,
na ideia, sempre muito presente e acriticamente aceite, de que o Estado não tem
“vocação” para intervir nas actividades económicas e empresariais,
acrescentando alguns que a natureza colectiva dos bens leva à sua degradação –
a chamada tragédia dos bens comuns –
pela manifesta ausência de racionalidade da sua exploração.
Curiosamente, o grande defensor e teorizador destes
princípios – Friedrich Hayek - havia sido brindado em 1974 com o prémio Nobel
da Economia. Mais de trinta anos depois dos seus escritos na Inglaterra, este
ilustre nome da Escola de Viena, à época na Universidade de Chicago, foi
galardoado com um prémio que passou despercebido à maior parte das pessoas
muito mais preocupadas com a situação em Portugal, na Espanha e na Grécia, com
a garantia de que se manteriam integrados no “mundo ocidental”, do que com o
hipotético e imprevisível retorno às teses da economia clássica. Obviamente,
não há nas decisões de Oslo coincidências…
E é exactamente deste autor um texto menos conhecido que
analisado à distância de 75 anos se pode hoje dizer que tem servido de “bíblia”
à integração europeia e à caminhada aparentemente imparável da União Europeia
rumo a uma sociedade neoliberal “quimicamente pura” dominada pelas forças do
mercado sem intervenção do Estado na economia e sem qualquer controlo democrático
do mercado.
Esse artigo de 1939, publicado na revista New Commonwealth
Quarterly, “The Economic Conditions of Interstate Federalism”, tem vindo
depois da década de 80 do século passado a constituir o roteiro da integração
europeia. Hayek, partindo da ideia kantiana de que somente a federação de
Estados pode assegurar a paz, faz todavia depender o êxito da federação da liberalização
das ordens económicas dos Estados federados bem como, evidentemente, da concepção
da federação como uma ordem económica liberal já que somente por esta via se poderiam
superar os dois perigos que ameaçam a paz: o nacionalismo e o socialismo. Desta
liberalização da ordem económica federal resultaria um estado de direito
assente numa democracia rigorosamente liberal, isto é, uma democracia que
respeite a liberdade dos mercados e não interfira na actividade económica.
O socialismo e as suas intervenções arbitrárias na economia
bem como o nacionalismo e a sua defesa de interesses económicos nacionais são,
para Hayek, incompatíveis com a federação. A defesa de pontos de vista
particulares, sejam eles nacionais ou de classe, são incompatíveis com a ideia
federal. Somente a liberdade incondicionada dos mercados, colocando todos, sem
distinções, no mesmo plano, asseguraria a paz e a viabilidade da federação.
A União Europeia, melhor dizendo, a integração europeia,
quando nasceu, depois da II Guerra Mundial, assentava em ideias bem diferentes
daquelas acima enunciadas. Ou dito de um modo mais correcto: quando a ideia de
uma Europa integrada começou a germinar no pensamento político ocidental do pós
Guerra como meio de assegurar a paz, mantendo e garantindo um relativo equilíbrio
económico entre os Estados, eram as ideias keynesianas que então hegemonizavam
a política económica, embora o Mercado Comum tivesse na sua génese, quase
se poderia dizer, no seu ADN, ínsito um princípio de ordem económica liberal. A
verdade, porém, é que durante os primeiros anos da integração europeia a ideia
de paz estava não somente associada ao princípio (político) federativo como
também ao princípio (económico) da coesão social, tentando-se por esta via assegurar
uma “justiça social” que contrariasse ou corrigisse a “justiça do mercado”.
Contudo, à medida que a integração foi avançando, foi-se
assistindo a partir de fins dos anos 70 e muito mais decididamente com
Maastricht à progressiva neutralização económica das instituições democráticas.
Os Estados membros foram sendo arredados da possibilidade de corrigir os
mercados – distorcer o mercado, dizem os puristas liberais – tendo sido pura e
simplesmente proibidos de perturbar o livre jogo da concorrência, ficando, de
início, as consequências daí resultantes, no plano dos Estados, pretensamente
atenuadas pela via dos fundos de coesão e no plano individual pela via das
políticas sociais que os vários Estados iam implementando na sua ordem interna.
Com o tempo, esta ordem económica levou a um brutal endividamento
privado e também público já que os Estados para acudir às necessidades sociais e
outras careciam de receitas que não cobravam, tendo, para colmatar essa falta,
de recorrer aos mercados, tanto mais que, entretanto, por imposição do “princípio
da independência” dos bancos centrais, ficaram privados da faculdade de cunhar
moeda e de por essa via poderem financiar-se. Mas não só: os Estados para
acudirem ao endividamento privado e ao consequente colapso dos bancos tiveram
também que assumir eles próprios as dívidas destes ou de refinanciá-los,
expondo-se à lógica infernal de terem de se endividar junto do capital
financeiro …para salvar o capital financeiro.
Assim, os Estados impedidos de corrigir a economia e deixando
o processo de acumulação capitalista a salvo de qualquer tipo de intervenção
politica não têm mais condições para assegurar a justiça social, o mesmo é
dizer, para garantir a democracia. A União Europeia é hoje uma verdadeira
fábrica de produção neoliberal e de desdemocratização da economia. Cada vez mais
a decisão democrática fica limitada a um reduto sem importância, incapaz de
contrariar ou corrigir o que verdadeiramente interessa e o quadro tenderá a ficar completo quando o ataque ao estado social estiver consumado, o que está em vias de acontecer em virtude da asfixia financeira imposta pelo endividamento.
Não é apenas a concepção institucional do funcionamento da
União Europeia ou do euro que são profundamente antidemocráticos. É muito mais
do que isso: é a impossibilidade de intervenção política, seja a nível federal
(comunitário) ou nacional, em áreas vastíssimas do domínio económico e as
óbvias consequências que essa impossibilidade gera no plano da distribuição
directa e indirecta do rendimento que elimina completamente o conceito
democrático e a sua vivência em áreas essenciais à vida em sociedade as quais ficando
a coberto da intervenção politica amputam a democracia da sua mais importante
componente.
A impossibilidade de a “justiça social” se sobrepor à eufemisticamente
chamada “justiça dos mercados” leva necessariamente ao despotismo por a ordem
assim criada assentar numa pretensa legitimidade que torna as próprias vítimas
cúmplices do sistema assegurando-lhe uma legitimidade formal que lhe
garante uma continuidade relativamente tranquila (até ver…).
Como a União Europeia é hoje o principal obstáculo à
democratização da vida política na sua plenitude e é absolutamente irreformável
enquanto tal, tudo o que possa contrariar o processo de integração, o mesmo é
dizer a instauração de uma ordem liberal sem fissuras, deve ser apoiado,
qualquer que seja o lado donde isso venha. A União Europeia e o capital
financeiro que ela acima de tudo representa no quadro da instauração da ordem neoliberal
são hoje o grande inimigo da democracia. Por isso, as propostas internas que assentam
numa ilusória reforma do sistema – uma reforma que institucionalmente ninguém
defende e que além do mais é impossível por pressupor a destruição do próprio
conceito em que ele assenta – devem ser repudiadas sem qualquer hesitação como
fazendo parte do próprio jogo de criação de uma realidade ilusória cujo
objectivo não poderá deixar de ser, como desde há muito vem sendo, o reforço do
próprio sistema antidemocrático.
Por outro lado, e ao contrário do que frequentemente se
pretende fazer crer, as brechas que no plano nacional forem sendo abertas no
sistema são feridas insanáveis para o próprio sistema comunitário que ficará
tanto mais debilitado quantas mais brechas sofrer. Essa aliás a razão por que a
União Europeia e aqueles cujos interesses ela representa se opõem tenazmente à
saída do euro de qualquer Estado (embora por vezes façam crer o contrário) e
mais ainda à saída da União já que tanto uma como outra seriam
provas inequívocas de falência de um sistema que aspira à completa globalização
e integração para se tornar mais forte e inatacável.
Por coincidência, 1973, da crise petrolífera, é também o ano da primeira grande experiência do neoliberalismo e da sua política económica, a dos rapazes de Chicago no Chile.
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