quarta-feira, 19 de março de 2014

MEDEIROS FERREIRA


 

UMA RARA INTELIGÊNCIA POLÍTICA
 

 

Medeiros Ferreira não conseguiu concretizar um dos seus maiores sonhos: traduzir em acção política corrente o seu pensamento político. Dono de uma invejável auto-estima, mas não tendo manifestamente vocação para liderar um partido político que o pudesse guindar aos mais altos lugares da política nacional, apaixonado pela política, muito independente e convencido dos seus méritos pela capacidade de antecipação que sempre manifestou dos fenómenos políticos e a subsequente constatação de que o devir lhe dava razão, Medeiros Ferreira “gostava que lhe batessem à porta”, mas esqueceu-se talvez ingenuamente que os líderes partidários, os chefes políticos, não nutrem um especial apreço por quem pensa. Podem estimar o pensamento político alheio desde que seja para dele se apropriarem, em discursos, em proclamações solenes, enfim, o pensamento político de quem esteja fora e se proponha servi-los de fora, mas em regra recusam o acompanhamento de quem privilegie o pensamento político estratégico na acção política corrente. Essa a razão por que Medeiros Ferreira nunca ocupou na política portuguesa um grande cargo ou, se o chegou a ocupar, foi por pouquíssimo tempo.

O último livro de Medeiros Ferreira – Não há mapa cor-de-rosa A História (Mal)dita da Integração Europeia  - reflecte melhor, muito melhor, que qualquer outro texto sobre a actualidade política nacional a angústia de quem vê o futuro do país numa encruzilhada de difícil saída. Um país que durante séculos, embora de modo porventura mais intenso desde o último quartel do século XIX até ao terceiro quartel do século XX, viveu o mito do Império e se viu depois obrigado a construir à pressa um outro mito que pudesse dar sentido a uma nação centenária - o mito da Europa, construído nos últimos quarenta anos. O mito imperial de que a nação portuguesa durante tantos séculos se alimentou e que desesperadamente tentou estender para além do tempo que politicamente o poderia sustentar esgotou-se simbolicamente, na sua formulação originária, no 25 de Abril, tendo surgido pouco depois, embora de uma forma tantas vezes postiça e canhestra, o mito da Europa – que Medeiros Ferreira tanto criticou reclamando-se de uma visão tratadística, contratualista entre Estados e cidadãos - que “globalizou” o pensamento pátrio enquanto houve dinheiro a rodos e o clube europeu era pequeno – “passaram a ser europeístas com o mesmo fervor com que antes eram colonialistas”. Criticando a ausência de orientação estratégica na condução política externa de integração de Portugal na Europa desde logo reflectida na deficiente negociação dos grandes instrumentos comunitários, em que tão insensatamente Portugal se reviu, apoiando-os numa formulação contrária aos interesses nacionais, Medeiros Ferreira não chegou nunca a afastar-se da Europa, mas apenas – e isso já não era pouco – a tentar vê-la tal como ela realmente é, principalmente a partir do alargamento a Leste e da introdução do euro como expressão máxima da União Económica e Monetária, a propor as medidas indispensáveis à democratização do conjunto europeu e também a traçar as vias alternativas de uma política externa portuguesa. Essa incapacidade de a política portuguesa compreender as profundas mutações ocorridas na Europa desde há mais de vinte anos constituem sem dúvida uma das maiores angústias políticas de Medeiros Ferreira para quem o papel de “bom aluno de maus mestres” vem sendo desde há muito – e não apenas desde agora - um dos maiores problemas da nossa política externa.

Na política interna talvez seja de sublinhar entre tantas intervenções cujo mérito é diferentemente avaliado, a rara inteligência política com que antecipou, com vários anos de antecedência, as consequências nefastas para o PS e para a esquerda portuguesa em geral de dois dos maiores erros políticos de Sócrates: ter desprezado a importância política das presidenciais de 2006 e não ter tido a coragem de afrontar Cavaco nas presidenciais de 2011. Em ambas as situações o tempo deu-lhe razão. O fim de Sócrates, vaticinou Medeiros Ferreira em 2006, começaria em 2010 e o seu afastamento do poder, disse Medeiros Ferreira em finais de 2010, iria ter lugar bem antes do termo da segunda legislatura. E assim foi com as consequências que estão à vista…

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