ATENÇÃO A CERTAS
CRÍTICAS
Há um conjunto de críticas feitas a Passos Coelho que correm
o risco de ser aplaudidas por quem deseja exactamente o contrário do que elas (realmente) têm
em vista. Referimo-nos à crítica da excessiva onerosidade tributária quase
sempre acompanhada da inevitável necessidade de “corte na despesa”.
Quanto à onerosidade fiscal, a única crítica que a esquerda,
ou quem aspira a uma vida melhor e mais justa, deve fazer é que se refere à
desigualdade da carga tributária. À desigualdade entre o que paga o capital e o
trabalho; e, dentro do capital, à desigualdade entre a tributação do grande capital
e a das pequenas e médias empresas e também entre a carga tributária do
capital financeiro e especulativo e a do capital industrial; depois, ao excessivo
peso dos impostos indirectos relativamente aos directos para evitar
que os mais baixos rendimentos sejam excessivamente onerados relativamente aos
mais altos; e, finalmente, à desigualdade da tributação directa entre os
grandes rendimentos e os médios e baixos rendimentos.
Todavia, quem aspira a despesas sociais pagas pelo Estado não
pode, obviamente, reclamar do peso da carga fiscal mas tão-somente da sua distribuição.
É que na ausência de outros rendimentos, nomeadamente dos de natureza patrimonial,
em consequência da nefasta e funesta política de privatizações, terá de ser
pela via dos impostos e das taxas que aquelas despesas terão de ser pagas. Mais
pela via dos impostos do que pela das taxas.
Quando se fala em “corte” nas despesas normalmente têm-se em
vista três objectivos.
O primeiro é manifestamente demagógico e populista e tem em
vista esconder a verdadeira intenção de quem o faz – é o que se passa quando se
invocam as despesas com a manutenção do sistema político: o custo dos
deputados, do Governo, do Presidente da República, enfim, das instituições
políticas em geral, tentando induzir nas pessoas a ideia de que com o corte significativo dessas despesas seria possível atenuar a austeridade, quando na realidade essas despesas (inevitáveis) não passam de “migalhas” que nada ou quase nada representam
na despesa do Estado.
O segundo é claramente de natureza estrutural: é o que começa
por falar na “reforma do Estado” como forma de encobrir o essencial. E o
essencial é o corte nas despesas sociais do Estado – na educação, na saúde, na
segurança social amplamente entendida – de modo a alterar a sua natureza,
transformando-o num Estado assistencialista de baixa ou baixíssima intensidade
em detrimento dos princípios universalistas do Estado social. Os que acusam
Passos Coelho de pouco ter feito neste domínio (caso do CDS e de muitos
comentadores pretensamente críticos) o que realmente pretendem é acabar com o
Estado social.
O terceiro objectivo é o perseguido pelo Governo. Passos
Coelho não precisa que lhe ensinem a cartilha: a liquidação do Estado social
também é o seu objectivo. Só que ele tem de o aplicar de acordo com o tempo e
contexto político em que actua. Numa primeira fase (Gaspar), a sua preocupação
parece ter sido a drástica diminuição do défice externo estrutural. Como,
porém, essa política tinha efeitos perigosamente recessivos e acabou por
agravar a dívida e o défice, não foi possível ao Governo continuá-la tão
drasticamente como o fizera nos primeiros dezoito meses do seu mandato. E,
então, a partir daí (Maria Luís), a preocupação passou a centrar-se mais sobre
o controlo do défice orçamental mediante o aumento (desigual) da carga fiscal e
o corte da despesa, nomeadamente a incidente sobre salários e reformas, mas
também a relacionada com as funções sociais do Estado, através de cortes que diminuem
drasticamente os “estabilizadores sociais”, tarefa de que o CDS se tem
encarregado de levar ao extremo, e outros que
degradam e limitam a natureza dos serviços prestados no âmbito da saúde e da educação,
quer através de cortes directos quer mediante a redução drástica do
investimento público nesses domínios, uns e outros destinadas a abrirem caminho
à tal transformação estrutural da natureza do Estado, mediante a gradual
destruição dos princípios de acesso universal do Estado social.
É até caso para perguntar, sem com isto perfilhar qualquer da
teoria da conspiração, se aquelas críticas a Passos não são as que melhor
garantem o objectivo que o Governo tem em vista. É que é preciso não esquecer
que a contra-revolução neoliberal tem assentado numa transformação silenciosa
da sociedade mediante a adopção de uma panóplia de medidas cujos efeitos só se
manifestam já com carácter de irreversibilidade vários anos mais tarde. Essa transformação
empreendida pelos países desenvolvidos do Norte, na América e na Europa, até
mais por democratas e por socialistas e sociais-democratas do que pela direita
clássica, ainda não está concluída na generalidade dos países. Dada a natureza
profunda das alterações visadas há politicamente toda a conveniência que elas
se vão consolidando gradualmente mediante uma aplicação frequentemente assente
em critérios de aparente inevitabilidade destinados a atenuar politicamente,
pelo “consenso da necessidade”, os seus efeitos.
Quem aspira a uma sociedade diferente tem de actuar contra
isto de acordo com as condições concretas de cada país. No caso de Portugal e
de outros países europeus que se encontram em situação semelhante o grande
cavalo de batalha terá de ser o combate ao peso da dívida. Somente o combate ao
peso da dívida e a enunciação clara e objectiva dos seus inevitáveis efeitos poderá
mobilizar as pessoas para uma política diferente. E será pela posição relativamente
à dívida que as águas se irão definitivamente dividir. Pelas posições assumidas
pelas diferentes forças políticas se saberá quem realmente está “contra isto” e
quem está a favor, qualquer que seja a fraseologia usada para escamotear esta
crua realidade.
"Somente o combate ao peso da dívida e a enunciação clara e objectiva dos seus inevitáveis efeitos poderá mobilizar as pessoas para uma política diferente."
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