terça-feira, 17 de abril de 2018

A ESPANHA E A CATALUNHA - PARTE II


A DECISÃO DO TRIBUNAL ALEMÃO 
El tribunal de Schleswig-Holstein admite un “error” en el auto de Puigdemont... que no cambia nada
Parte II

A estratégia espanhola - a não internacionalização o conflito catalão, a recusa de o encarar como problema político, vendo-o  antes como simples questão do foro judicial a dirimir pelos tribunais, isto é, a reprimi-lo mediante a aplicação de pesadíssimas sanções penais - corre o risco de derrapar exactamente a partir da actuação do país que para Espanha era mais importante – a Alemanha – e do qual menos esperava uma resposta negativa. E foi o que aconteceu.

A ordemde detenção europeia emitida pelo Supremo Tribunal para o tribunal alemão competente – no caso, o Tribunal Superior de Schleswig-Holstein – não foi atendida no que respeita ao crime de rebelião e ficou suspensa da apresentação de novas e mais concludentes provas quanto ao crime de “malversacion”, tendo consequentemente Puigdemont sido libertado sob fiança.

Independentemente da interpretação a adoptar sobre a execução de uma euro ordem – e já lá iremos -, não há dúvida de que este expediente judiciário, decorrente do acordo de Schengen, vigente no seio dos Estados que ratificaram este tratado, implicando a obrigação de cooperação judiciária assente na confiança recíproca, é diferente do procedimento de extradição, que, envolvendo igualmente uma intenção de cooperação, não deixa de ser, pela forma como, em regra, está regulada nos acordos bilaterais que a consagram, uma manifestação da soberania dos Estados. Embora a confiança recíproca seja a pedra angular da cooperação judiciária “europeia”, é bom não esquecer a imensa polémica que este procedimento levantou quando foi discutido e aprovado no Conselho Europeu, principalmente entre a Espanha (sempre a Espanha…) e a Bélgica, seguramente motivada não apenas por ressentimentos históricos, mas já por força da desproporcionalidade manifestada pelo sistema penal espanhol relativamente a certo tipo de crimes.

E daí a polémica que tem rodeado a execução das ordens de detenção europeia, polémica que, como é óbvio, se não manifesta relativamente à generalidade dos crimes de direito comum, mas a crimes ou a procedimentos penais em que possam estar a ser subvertidos princípios fundamentais do Estado de Direito e, inclusive, os direitos fundamentais, como acontece, ou pode acontecer, nas áreas penais de maior incidência política. Por outras palavras, um Estado democrático, seguro dos seus princípios, sensível à opinião pública democrática, por maior que seja - ou diga que é - a confiança que deposita nos seus parceiros de Schengen, não deixará de avaliar aquelas questões no cumprimento das ditas euro ordens.

E tanto assim que somente esta legítima preocupação pode justificar as duas interpretações em confronto sobre a execução das euro ordens. De um lado, o sistema judiciário espanhol - fiscalia (ministério público), juízes, advogados, alguns professores de direito -, segundo o qual o Estado que recebe a euro ordem não tem que julgar as qualificações jurídicas feitas perlo Estado solicitante, mas apenas verificar se os factos imputados integram ou não um tipo legal de crime no Estado solicitado; se integram, qualquer que ele seja, a euro ordem deve ser executada; se não integram, não haverá entrega da pessoa detida. Outra, porém, foi a interpretação do tribunal alemão mais próxima do entendimento que aponta no sentido de que cabe ao Estado solicitado analisar se o tipo legal de crime pela prática do qual a pessoa detida está acusada existe no seu ordenamento ou outro substancialmente equivalente; se não existir, não entrega; se existir, poderá julgar se os elementos constitutivos do dito tipo legal estão ou não integrados pelos factos descritos.

Na Alemanha não existe o crime de rebelião, mas um outro substancialmente idêntico – o de alta traição -, tendo o tribunal considerado que não se verificava um dos requisitos fundamentais para integração desse tipo legal de crime – a violência, razão pela qual denegou a entrega de Puigdemont.

Evidentemente, que o tribunal alemão, para considerar que os factos descritos na euro ordem emitida pelo tribunal espanhol não configuravam uma situação de violência, teve de os julgar. E isto é que tirou os espanhóis do sério. Mas não somente isto, que apesar de tudo era algo que mantinha a questão no foro judicial. Pior foram as declarações da Ministra da Justiça da Alemanha, a social-democrata Katarina Barley, de apoio à decisão do tribunal, considerando-a “absolutamente correcta”, esperando que os juízes deixassem Puigdemont em liberdade sob fiança, (que foi, como se sabe, o que veio a acontecer), tendo ainda acrescentado que se o Supremo espanhol não justificasse a prática de outros delitos, Puigdemont passaria a ser “um homem livre num país livre, quer dizer, na Alemanha".

Por outro lado, um dos vice-presidentes do grupo parlamentar social-democrata, Rolf Mütznich, disse que “ o Governo espanhol tem de aceitar que os tribunais alemães decidam independentemente dos requisitos políticos”, insistindo que deve ser encontrada uma solução política para a questão da Catalunha, “podendo (a Espanha) contar, se precisar de ajuda, ou com países europeus ou com a própria União Europeia como interlocutores adequados”, terminando por comparar o sistema judicial espanhol com o da Polónia e o da Turquia, razão pela qual as euro ordens devem ser analisadas de modo a ficar garantido o respeito pelos princípios legais e democráticos. A entrada em cena da Alemanha, como país solicitado pela euro ordem, fez com que, além destas, outras vozes críticas relativamente ao que se passa em Espanha se tivessem manifestado, não apenas nas hostes social-democratas, e, obviamente na Esquerda (Die Linke), mas também nos Verdes e na própria CDU (democracia cristã).

Como seria de esperar os espanhóis lançaram uma forte ofensiva tendente a neutralizar os efeitos devastadores da sentença do tribunal alemão. O governo de Rajoy fez saber que se sentiu incomodado por a Ministra da Justiça ter apoiado politicamente a decisão, tendo esta ficada encarregada, por Merkel, de pôr termo ao assunto, dizendo que se tratou de um “mal-entendido”. Por seu turno, a “Fiscalia” espanhola sentindo-se ligeiramente apoiada pelo ministério público alemão promoveu um encontro em Haia, na sede do departamento para a cooperação judiciária europeia, para convencer os seus congéneres alemães a pedir ao tribunal uma reapreciação do caso.

Este procedimento é juridicamente viável, se a decisão do tribunal alemão não tiver sido uma decisão definitiva, mas uma simples decisão preliminar, que aguarda a presentação dos elementos solicitados. Fora deste caso, a decisão do tribunal alemão só poderá ser alterada pela via do recurso. A frenética actividade da "Fiscalia" espanhola reunindo "provas às pazadas” (404 actos de violência!), para tentar convencer o tribunal alemão de que houve violência no dia da realização do referendo, faz supor que se trata de uma decisão preliminar.

Todavia, pela leitura dos passos da decisão do tribunal alemão a que tivemos acesso, percebe-se que o que está em causa é a desproporção da pena relativamente aos actos praticados. As analogias que o tribunal faz para considerar que os factos constantes da acusação não podem ser considerados violentos e consequentemente integrar um tipo legal de crime com a gravidade do crime de rebelião deixa supor que não será pelo facto de os espanhóis apresentaram mais uma dúzia ou quatrocentas provas mais ou menos da mesma natureza das anteriores que a decisão se vai alterar. Aliás, esta estratégia espanhola de apresentação de mais provas dá o flanco, por estar a validar a interpretação seguida pelos alemães e não aquela que os espanhóis defendiam. Portanto, não é nada provável que o tribunal alemão venha a mudar a decisão. Na Alemanha sabe-se muito bem o que se passou no dia 1 de Outubro de 2017 e sabe-se também que os espanhóis buscam desesperadamente um pretexto para aplicar uma pesadíssima e desproporcionada pena aos independentistas catalães.

Em teoria, restaria ainda aos espanhóis, ao Juiz Llarena, recorrer para o Tribunal de Justiça da UE para que se pronuncie sobre a Interpretação que o tribunal alemão fez da regulamentação das euro ordens, o que de momento não ponderam fazer.

Não vale a pena ter ilusões, esta decisão do tribunal alemão constitui uma forte censura ao sistema judiciário espanhol e ao modo como o governo de Rajoy está lidando com a questão catalã. E sendo feita, como é, por um órgão de Estado independente, deixa o Governo alemão teoricamente à margem da polémica, mas provavelmente satisfeito, pelo menos uma parte dele, por ter havido na Alemanha quem tenha levantado o problema, que é uma forma eficaz de o trazer para debate na opinião pública europeia.

Para quem por cá ainda tenha (honestamente) dúvidas sobre o sistema judiciário espanhol, bastará dar o seguinte exemplo recente que, além de ter em si um valor absoluto, também ilustra bem a estupidez com que os espanhóis actuam. A “fiscalia” da Audiência Nacional (essa espécie de tribunal plenário da Espanha “democrática”), no dia seguinte à ocorrência dos eventos acima relatados, acusou por terrorismo dois membros dos Comités de Defesa da Republica – CDR – e ordenou a sua detenção por terem promovido (tentado) cortes nas estradas (difusão de mensagens em que se apelava ao corte pacífico, sem violência, de algumas vias públicas), bloqueios das portagens e formação de piquetes! Esta acusação, se tivesse sido aceite pelo juiz, faria incorrer os acusados em penas de prisão superiores a 50 anos, tal a moldura penal daquele tipo legal de crime no ordenamento jurídico espanhol. O juiz teve, porém, o bom senso de reconverter a acusação em delito de perturbação da ordem pública, ordenando a libertação os acusados, embora com medidas cautelares.

Apesar de a reforma penal de 2015 permitir, sem grande esforço, integrar nos crimes de terrorismo certos comportamentos que em Estados democráticos jamais poderiam merecer essa qualificação, também não é de pôr de parte, relativamente ao episódio acima relatado, a hipótese de se tratar de uma encenação destinada a demonstrar que em Espanha existe um estado de direito e que os juízes actuam com independência relativamente ao poder político. De facto, a situação é tão absurda, mormente numa altura em que se debatia a decisão do tribunal alemão e as suas consequências políticas e jurídicas, que não é de pôr de parte aquela Interpretação, além do mais por tudo se ter passado num tribunal como a Audiência Nacional. Enfim, é uma hipótese, não é uma certeza.

Entretanto, a imprensa espanhola vai-se desdobrando em editoriais, artigos de opinião e opiniões de juristas tendentes a demonstrar que tanto os Estados membros da UE, em especial, como os demais devem aceitar os tipos legais de crime previstos no direito criminal espanhol e respeitar os tempos e as garantias do Estado de Direito espanhol.

Relativamente a Puigdemont, pedra angular de ambas as estratégias – a de Espanha, esperando que lho entreguem para ser julgado e a da Catalunha como elemento fundamental para a internacionalização do conflito –, a Espanha parece admitir rebaixar a acusação para o crime de sedição (punível com prisão até 15 anos) se tiver indícios de que o tribunal alemão aceitará essa acusação com base nos factos que lhe foram remetidos. O que a verificar-se – e não é crível que se verifique - teria consequências terríveis para a justiça espanhola, que mantém relativamente aos membros da Generalitat presos e outros a acusação de rebelião, uma vez que todo o processo tem sido instruído nesse sentido. Esta divergência, mesmo num país como a Espanha, seria política e juridicamente insustentável!

Por outro lado, o crime de “Malversacion” dificilmente será reconhecido pelos tribunais estrangeiros, não apenas por se tratar de um acto da responsabilidade de um colectivo, mas principalmente por falta de provas, nomeadamente depois de Junqueras ter voltado a garantir que não se gastou um único euro do orçamento no “procés”.

Sem Puigdemont a Espanha limitar-se-á a fazer valer a sua estratégia apenas dentro das suas fronteiras e a vê-la fracassar no estrangeiro, assim se deslegitimando as acusações que estão em curso. Entretanto, a cada dia que passa, a Catalunha vai ficando mais longe de Espanha…

5 comentários:

  1. O Dr Pinto Correia, nasceu bem lá no Norte (penso) mas tem, obviamente, antepassados para os lados de Ajubarrota. Com os séculos, a sanha anti-castelhana decaiu para anti-espanholismo. De vez em quando, passava por aqui, aliás aprecio muito do que escreve e, sobretudo, como escreve. Ainda me lembro da sua patriótica cruzada contra o negócio, não concretizado, da venda participação da PT na Vivo à Telefónica. Ganhou! O resultado... nem vale a pena recordar....! Dividendos obscenos para o Salgado, lei do Sócrates à medida etc. etc. Não sei, se calhar nem o Dr sabe, mas o seu apoio às teses dos advogados do Sócrates terá ver com isso? Nestas coisas não somos muito diferentes uns do outros e de pouco vale a instrução ou cultura; um tipo (lLeon Festinger) tem uma explicação para a nossa reacção aquilo a que ele chama "dissonâncias cognitivas". É claro que a questão catalã é uma questão política, aliás, no lugar do governo espanhol, era assim que a encararia (mas eu sou um inocente/ignorante). Muitas questões se colocam: Porque é que a vontade de 2-3 milhões se há-de sobrepor à vontade de 30 ou 35 milhões? -São eles que devem decidir o seu destino que não compete aos tipos da Galiza ou da Andaluzia- dizem. E se os minhotos ou 51% dos seus eleitos enveredassem pelo mesmo caminho? E se algumas zonas da Catalunha, incluindo a área metropolitana de Barcelona se autonomizasse da Catalunha tipo matrioska geográfica? Há uma "massa crítica" nestas coisas, qual? O Putin suspendeu a autonomia a regiões onde cabe várias vezes a Espanha....( onde é que eu já vi isto Geórgia/abcásia/ossétia, Arménia/Nagorno e o que mais se seguirá (Ucrânia/Donbass isto sim..vai ser a doer). O Sr. sabe, melhor que eu, que nisto o que conta é a relação de forças, vejam-se os argumentos "jirídicos" da Otan sobre o sucessivo desmembramento da ex-Jugoslávia; Claro que foi a coação militar sobre a Sérvia e a Rússia do presidente alcooólico. Se em Portugal, presumo que noutros países também, para legislar sobre certas matérias se exige uma maioria qualificada porque é que no parlamento regional da Catalunha 50,00001% dos deputados podem decidir uma questão da maior transcendência para um Estado? E como vão reagir os outros 49,999999% que até podem ser mais de 50%? Isso é irrelevante? Não sei se a Catalunha está mais longe da Espanha (vai depender da determinação dos espanhóis) agora que há um agravamento de tensões é evidente, mas de ambos os lados...Um espanhol terá escrito que quem resiste vence...ver-se-á. Para acabr, eu não sou nem espanholista nem catalanista, mas prefiro viver em "espaços" o mais amplos possíveis...por isso serei sempre contra a "regionalização" derrotada em votação nacional e que agora, vergonhosamente, querem sorrateira e traiçoeiramente querem estabelecer, os objectivos são evidentes... LG

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  2. Meu Caro LG, campanha, se de campanha se pode falar, que tenho dado o meu apoio é contra a repressão espanhola, repressão a que chamo espanholismo, para não ter de falar em "Castela". Em primeiro lugar, somente as ditaduras e os regimes autoritários, qualquer que seja a sua matriz, resolvem (ou tentam resolver) os problemas políticos judicialmente. A Espanha tem o seu tribunal plenário para estas matérias que é a Audiência Nacional. Mas, se necessário, pode usar o Supremo ou o Constitucional, tanto um como outro dependentes do poder político. Na própria Espanha as mentes mais arejadas, mesmo que "espanholistas" na essência já perceberam que esta tentativa de resolver o problema catalão pela via judicial, com pesadas penas de prisão, é erro que a Espanha, se não arrepiar caminho, vai pagar caro. O próprio Felipe Gonzalez já não concorda com essa via e as duas mais importantes centrais sindicais deram o passado fim de semana um sinal claro do que pretendem. Portanto, quanto a esta questão estamos conversados, a mentalidade repressiva espanhola é uma realidade que não se pode negar. Já nem vou falar do que se passou e continua a passar no País Basco, onde os espanhóis prevalecendo-se da violência da ETA têm cometido autênticas barbaridades jurídicas que têm passado em claro na opinião pública internacional por desconhecimento e também pela tal matriz da ETA. Fazendo uma comparação: quantos presos da Irlanda há na Inglaterra depois dos acordos de "Sexta feira santa"?
    Em segundo lugar, se bem leu um post que escrevi, quando esta questão da Catalunha se agudizou, sobre a independência dos Estados terá de reconhecer que a minha posição sobre este assunto é o mais realista possível. Não entrei em consideração nem com valorações éticas nem com de nenhuma outra espécie. Apenas com os factos, recordando que a independência não é "um chá dançante". A luta pela independência é sempre uma luta dura e quem nela entra tem de ter isto em conta e procurar sempre a maior eficácia possível, variável consoante as épocas e os lugares.
    Em terceiro lugar, teoricamente sou um internacionalista, mas não preciso sequer de ter os olhos bem abertos para perceber que há opor todo o lado um recrudescimento do nacionalismo, perigoso e belicista.
    Quanto à Vivo, muito brevemente, era e continuaria a ser contra a venda da Vivo, uma das empresas mais modernas e inventivas do Brasil, apesar de relativamente boicotada pelas autoridades brasileiras, fosse aos espanhóis ou a quaisquer outros. Tenho também de reconhecer que na OPA do Belmiro à PT, também fui contra pelas mesmas razões que ou contra o "espanholismo" - a arrogância.
    Obrigado pelo seu comentário

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  3. O texto anterior tem umas pequenas gralhas, uma ou outra falta de uma letra ou de uma vírgula, pelas quais peço desculpa, mas que nõ sei como corrigir.

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  4. Caro professor:
    As críticas ao sistema judicial espanhol são provavelmente justas. Porém, a avaliar pelo vergonhoso julgamento na praça pública que a SIC transmite impunemente, o sistema judicial português também não é exemplo que se aconselhe...

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  5. Sim, Ferreira Marques, mas esse já não é um problema do judiciário, mas do executivo
    Voltando aos espanhóis, há razões históricas que fazem creditar os espanhóis que a repressão resulta e que a brandura é negativa. Os exemplos que historicamente suportam essa tese são a conquista da América e o franquismo. Eles acham que tanto num caso como noutro se tornaram fortes, enquanto 1898 é o símbolo da decadência. Mas é contra isto que tem de se lutar. Estamos no século XXI...
    Prazer em vê-lo por cá. Abraço

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