sexta-feira, 13 de abril de 2018

A ESPANHA NÃO DESARMA (I Parte)




O ESPANHOLISMO E O GOLPE BRASILEIRO
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A única grande diferença entre o sistema judiciário brasileiro e o espanhol é que o brasileiro perpetrou um golpe de Estado, iniciado com a destituição inconstitucional de Dilma e continuado com a prisão ilegal, e também inconstitucional, de Lula, com a manifesta intenção de afastar a esquerda do poder e reentregá-lo, indiviso e arbitrário, à oligarquia que tem governado o Brasil praticamente desde a sua existência como unidade política relativamente autónoma, enquanto o sistema judiciário espanhol actua em nome do “espanholismo”, que é um conceito bem mais abrangente que o anterior, representando nas suas actuações um sentimento comum às forças políticas dominantes, integradas por vários estratos sociais, com interesses porventura divergentes em múltiplas facetas da vida social, mas estranhamente unificadas por um sentimento de grandeza perdida, a todo o momento exaltado por representações fantasiosas que a realidade se encarrega de negar, daí resultando uma frustração que se abate ferozmente sobre os que o não compartem, ou, pior que isso, o combatem, desprezando-o.

Se o que se passa no Brasil com a destituição de Dilma e a prisão de Lula falam por si no que respeita a princípios fundamentais de uma sociedade democrática, como a presunção de inocência, a separação de poderes, o princípio da legalidade, enfim, o respeito pelos direitos fundamentais, nomeadamente a coarctação da liberdade física, já o que se passa Espanha com os independentistas catalães é porventura pior, porque é o exemplo acabado do desprezo que um Estado pode ter pelo ser humano que se não integra na sua mundividência, a ponto de relativamente a ele considerar normal e aceitável uma actuação vingativamente desproporcionada, que é sempre o suporte e o fundamento de todas as arbitrariedades. E a arbitrariedade é indiscutivelmente a matriz e o meio por via do qual as organizações políticas exibem o seu sectarismo e materializam o fundamentalismo que as norteia na sua acção política.    

Vem tudo isto a propósito do que se está a passar “aqui ao lado” com os presos políticos da Catalunha. A Espanha tem, como se sabe, desde a sua fundação como Estado unificado, um problema por resolver entre as partes que a compõem. Umas vezes adormecido, outras severamente punido, este problema mantém-se vivo e actuante na Espanha dos nossos dias, principalmente por o “espanholismo” ser incapaz de reconhecer que a génese do seu Estado encerra um problema político que só politicamente pode ser resolvido. A ideia de que a força bruta resolve os problemas políticos é uma ideia tipicamente antidemocrática que a consciência social do nosso tempo rejeita e repudia, não obstante a existência de algumas vozes minoritárias que fora de Espanha a apoiam ou até a aplaudem. Mas não nos iludamos, não é esse o sentimento dominante na opinião pública da Europa que conta.

A Espanha alicerçou toda a sua estratégia relativamente ao problema catalão na imposição da ideia de que é um problema que compete aos tribunais resolver, ou seja, um problema do foro judicial, tendo envolvido nesta estratégia tipicamente “espanholista”, além do PP, seu mentor e executor, os Ciudadanos, o PSOE e também, com nuances, o próprio Podemos. Os independentistas catalães, pelo contrário, basearam a sua estratégia na ideia oposta, na ideia de que o procés é um problema político, que importa internacionalizar o mais possível já que somente neste foro poderá ser resolvido.

Neste confronto de estratégias, pareceu a muita gente que a Espanha tinha a guerra ganha com a prisão arbitrária de vários dirigentes independentistas e de alguns conhecidos propagandistas do catalanismo, mais a instauração de um sem número de processos a dirigentes que lograram manter a liberdade mediante o pagamento de avultadas fianças, bem como com o apoio institucional que a União Europeia e alguns dos seus dirigentes lhe prodigalizaram com a “langue de bois” do costume em tais circunstâncias, como o respeito pelo primado da Constituição, do Estado de direito, das decisões dos tribunais, etc e tal. O que nem a Espanha nem os seus defensores e apoiantes no estrangeiro contavam é que um razoável número de dirigentes catalães, ameaçados de severas, desproporcionadas e injustificadas penas de prisão, tivessem tido a brilhante ideia de se exilar em países europeus, a partir dos quais pudessem tentar a internacionalização do conflito por pressão da opinião pública democrática.

A Espanha colocada perante um facto com que não contava não hesitou nem um segundo na estratégia a seguir. Sempre com o “Carlos V metido na cabeça até à raiz dos neurónios”, o Supremo Tribunal de Espanha, convencido de que estava a transmitir uma ordem a um vulgar guardia civil, que obedientemente perfilado de tricórnio a cumpriria para honra da Benemerita, emitiu uma “euro ordem” solicitando à Bélgica extradição dos “fugados”, Puigdemonte e outros ex- membros do Governo da Catalunha. Dentro da tal lógica de que acima falámos, os crimes por que os “extraditáveis” estavam sendo acusados – rebelião, sedição, “malversacion” -, fariam incorrer os seus autores em penas de prisão superiores a meio século!

É evidente, para qualquer democrata que se preze, que um pedido com estas consequências – um pedido que muito provavelmente nem Erdogan teria coragem de fazer – fez acender de imediato as luzes vermelhas anunciadoras dos mais graves e arbitrários desvios aos princípios democráticos. Quando os espanhóis perceberam que iam ser derrotados na barra, retiraram o pedido de extradição com a sobranceria típica de quem considera a Bélgica um parceiro menor, porventura recordados daqueles patriotas da Flandres que as cervejarias de Bruxelas exibem pendurados pelo pescoço por obra e ordem do caridoso e mui pio Filipe II de Espanha (e I de Portugal).

Deixou-se cair a prisão de Puigdemont, fizeram-se outras prisões, instruíram-se outros processos e impediram-se, prendendo-os, os eleitos de exercer os seus cargos. Ou seja, a estratégia manteve-se intocável, mas circunscrita ao território espanhol. Até que Puigdemont foi convidado para debater o problema catalão em Helsínquia. E logo o Supremo Tribunal de Espanha (e seguramente o governo de Rajoy) entendeu que estava agora criado o circunstancialismo que permitiria, finalmente, trazer de volta a Espanha o “fugado” catalão. E sem hesitação emitiram nova euro ordem, desta vez para a Finlândia, que se desincumbiu do encargo com a manha típica que os do norte costumam atribuir aos do sul, dizendo que não sabiam onde ele se encontrava e que muito provavelmente já teria transposto as suas fronteiras. Como o homem vinha de carro, os serviços secretos espanhóis conseguiram detectar o seu percurso, de modo que mal ele deixou a Dinamarca (país igualmente não confiável) e entrou na fronteira norte da Alemanha, foi de imediato expedida nova euro ordem desta vez para a fidelíssima Alemanha, solicitando a sua extradição para Espanha pela prática dos crimes de rebelião e “malversacion” de fundos públicos (o dinheiro gasto na realização do referendo foi em Espanha qualificado como dinheiro público gasto indevidamente em proveito próprio).

Com esta acção a Espanha julgava acabar de vez com o caso Puigdemont no estrangeiro, já que nem por sombras terá passado pelas iluminadas mentes do STE que os juízes alemães fossem questionar o bem fundado das qualificações jurídicas espanholas, nomeadamente a integração dos factos nos tipos legais de crimes pela prática dos quais era solicitada a extradição.

Pois bem, onde a Espanha considerou estarem finalmente criadas as condições para resolver um problema de acordo com a sua estratégia de sempre, pode muito bem ter começado uma outra forma de o encarar, primeiro pela justiça alemã, depois pela opinião pública europeia.

(Para não sobrecarregar mais este texto, amanhã será publicada a segunda parte, que versará sobre a decisão do tribunal alemão, as reacções em Espanha e as prováveis consequências daquela decisão na Europa).

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