SOBRE UMA ANÁLISE DE TONY JUDT
Tendo em conta a comemoração dos 50 anos do Maio 68, acho que terá interesse
ler esta análise de Tony Judt da geração de 60, que faz parte do livro
publicado entre nós pelas Edições 70 com o título: “Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos”, 2010, com o
título original em inglês,” Ill fares the
Land”, do mesmo ano.
Embora a geração de 60 se não tenha deparado com os mesmos problemas em
todo o mundo ocidental e o contexto em que viveu tivesse assinaláveis diferenças
de país para pais, como é, por exemplo, o caso português, nem por isso este
retrato deixa de corresponder, no essencial, ao que dela ficou para o futuro.
No caso português, por um lado, o facto de essa geração ter sido contemporânea
de uma guerra colonial que condicionava o seu futuro, e, por outro, o facto de
em Portugal existir um uma ditadura fascizante, fez com que valores e princípios
das gerações do pós guerra continuassem a ter muita influência na sua formação.
Daí a matriz do 25 de Abril e do movimento revolucionário que se lhe seguiu,
que nada tem a ver com o Maio de 68, nem com os princípios individualistas que acima
de tudo o marcaram.
O que não significa, não obstante o muito que entre nós ficou do 25 de
Abril, principalmente por o movimento revolucionário ter operado um verdadeiro
desmantelamento do Estado fascista, que a herança daquele movimento e os princípios
sob cuja égide a geração de 60 se formou nos países capitalistas do Ocidente
não tenham projectado a sua influência na construção das sociedades em que hoje
vivemos.
A análise que a seguir se transcreve é apenas uma pequena parte – O legado dos anos 60 - do livro acima
citado e apesar de estarmos substancialmente de acordo com o que nela se diz,
isso não significa que a análise específica do Maio 68 não exija outros
desenvolvimentos. Todavia, o que interessa é sublinhar o carácter
individualista do movimento e ter consciência de que foi essa herança aliada
(objectivamente) à Escola de Viena dos anos trinta, renascida em Chicago vários
decénios depois, e o movimento neoconservador, inspirado no trotskismo
americano dos anos trinta, que “construíram” a matriz das sociedades
capitalista em que hoje vivemos.
Tony Judt:
“ (…) Acima de tudo, a nova
esquerda – e o seu eleitorado, na sua maioria jovem – rejeitava o colectivismo herdado
dos seus antecessores. Para uma geração anterior de reformadores, de Washington
a Estocolmo, fora evidente que a “justiça”, a “igualdade de oportunidades” ou a
“segurança económica” eram objectivos comuns que só podiam ser alcançados pela acção
conjunta. Quaisquer limites da regulamentação e controlo excessivamente
intrusivos e vindos de cima eram o preço da justiça social – e um preço que
valia a pena.
Um grupo mais jovem via as coisas
de modo muito diferente. A justiça social já não preocupava os radicais. O que
unia a geração dos anos 60 não era o interesse geral, mas as necessidades e direitos
de cada um. O “individualismo” – a afirmação da exigência de cada pessoa da
máxima liberdade privada e da liberdade irrestrita para a expressão de direitos
autónomos, e de vê-los respeitados e institucionalizados pela sociedade em
geral – tornou-se a divisa da esquerda. Fazer “o que se entender”, “não se
reprimir”, “fazer amor, não a guerra”: não são metas desprovidas de atracção
intrínseca mas na sua essência são objectivos privados, e não bens públicos.
Não admira que conduzissem à afirmação muito difundida de que o “pessoal é
político”.
A política dos anos sessenta
evoluiu assim para um conjunto de reivindicações individuais perante a
sociedade e o Estado. A “identidade” começou a apoderar-se do discurso
político: identidade privada, identidade sexual, identidade cultural. Daqui foi
um pequeno passo para a fragmentação da política radical, a sua metamorfose no
multiculturalismo. Curiosamente a nova esquerda manteve-se extremamente
sensível aos atributos colectivos das pessoas de terras distantes, onde
pudessem ser reunidas em categorias sociais anónimas como “camponês”, “pós-colonial”,
“subalterno” e afins. Mas internamente reinava, incontestado, o indivíduo.
Por muito legítimas que sejam as
reivindicações dos indivíduos e a importância dos seus direitos, sublinhá-los
acarreta um preço inevitável: o declínio de um propósito de vida partilhado.
Outrora procurava-se na sociedade – ou classe ou comunidade – o vocabulário
normativo individual: o que era bom para todos era por definição bom para
qualquer um. O inverso, porém, não é válido. O que é bom para uma pessoa pode
ter ou não ter valor ou interesse para outra. Os filósofos conservadores de uma
época anterior compreendiam isso bem, razão pela qual recorriam à linguagem e imagética
religiosas para justificar a autoridade tradicional e as suas exigências sobre
cada indivíduo.
Mas o individualismo da nova
esquerda não respeitava nem o propósito colectivo nem a autoridade tradicional:
ele era, no fim de contas, novo e de esquerda.
O que lhe restava era o
subjectivismo do interesse e desejo privados – e medidos em privado. Isso, por
sua vez, favorecia o recurso ao relativismo estético e moral: se algo é bom
para mim não me cabe averiguar se é bom para mais alguém – e muito menos
impô-lo (“faz o que entenderes”).
É verdade que muitos radicais dos
anos 60 eram apoiantes bastante entusiásticos de escolhas impostas, mas só
quando essas afectavam povos distantes, dos quais pouco sabiam. Em
retrospectiva, é surpreendente reparar na quantidade dos que na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos exprimiram entusiasmo pela “revolução cultural”
ditatorialmente uniforme de Mao Tse-tung, enquanto internamente definiam a
reforma cultural como a maximização da iniciativa e autonomia privada.
Tantos anos depois, pode parecer
esquisito que tantos jovens dos anos 60 se identificassem com o “marxismo” e
com projectos radicais de todo o género, ao mesmo tempo que se dissociavam de
normas conformistas e propósitos autoritários. Mas o marxismo era um tecto
retórico sob o qual estilos de dissensão muito diferentes podiam agrupar-se – sobretudo
porque oferecia uma continuidade ilusória com uma geração radical anterior. Mas
sob esse tacto, e servida por essa ilusão, a esquerda fragmentou-se e perdeu
todo o sentido de objectivos partilhados.
Pelo contrário, a “esquerda”
ganhou uma aparência bastante egoísta. Nesses anos, ser de esquerda, ser
radical, era ser egocêntrico, arrivista, e curiosamente provinciano nas
preocupações pessoais. Os movimentos estudantis de esquerda estavam mais
preocupados com as horas de fecho dos portões das universidades do que com as práticas
laborais fabris; os filhos universitários da classe média alta italiana espancavam
polícias mal pagos em nome da justiça revolucionária; palavras de ordem
irónicas, alegres, exigir a liberdade sexual, substituíam contestações proletárias
coléricas aos exploradores capitalistas. Isso não significa que a nova geração
de radicais fosse insensível à injustiça ou à malfeitoria política: os
protestos do Vietname e os tumultos raciais dos anos sessenta não foram
insignificantes. Mas estavam divorciados de qualquer sentido de propósito
colectivo, sendo ao invés entendidos como prolongamentos da expressão pessoal e
cólera individuais.
Estes paradoxos da meritocracia –
a geração dos anos sessenta foi acima de tudo uma consequência secundária bem
sucedida dos mesmos Estados-providência sobre os quais despejava todo o
escárnio juvenil - reflectiam uma falta de firmeza. As antigas classes
patrícias tinham dado lugar a uma geração de engenheiros sociais bem
intencionados, mas nenhuma delas estava preparada para o descontentamento radical
dos seus filhos. O consenso implícito dos decénios do pós guerra fora agora
rompido, e um consenso novo, decididamente artificial, começava a surgir à
volta da primazia do interesse privado. Os jovens radicais nunca teriam
descrito assim os seus propósitos, mas era a distinção entre liberdades
privadas louváveis e constrangimentos públicos penosos que mais lhes inflamava
as emoções. E essa mesma distinção, ironicamente, também definia a nova direita
que despontava.
Muito curioso e interessante.
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