quarta-feira, 24 de abril de 2019

AS COMEMORAÇÕES “OFICIAIS” DO 17 DE ABRIL DE 1969


O SEU A SEU DONO
Resultado de imagem para 17 DE ABRIL DE 1969

Pelo que se lê nos jornais e se vê nas televisões parece haver uma tentativa de filiar a Crise Académica de 69 (Coimbra) no Partido Socialista ou, pior ainda, uma tentativa de apropriação por elementos do Partido Socialista do movimento estudantil simbolizado no “17 de Abril”.

Sem meias palavras, nada mais falso. Essa tentativa, mais ou menos velada mais ou menos ostensiva de reescrever a história, pode, na actual conjuntura política, com o apoio acrítico ou a pura ignorância dos meios de comunicação, ter algum êxito, mas jamais terá a força suficiente para historicamente se impor.

Antes de mais, nem Partido Socialista havia em 1969. O que havia era a ASP, Acção Socialista Portuguesa, fundada em Novembro de 1964, em Genebra, por Mário Soares, Tito de Morais e Ramos da Costa.

Assim sendo, a filiação de qualquer movimento estudantil ou político da época no actual Partido Socialista só seria legítima se aqueles ou parte daqueles que então actuaram se identificassem com a acção política de Mário Soares ou das organizações políticas por ele dirigidas, visto ele ser, indiscutivelmente, mais até do que depois do 25 de Abril, a figura mais visível desse sector da oposição democrática.

Mário Soares, desterrado para S. Tomé por deliberação do Conselho de Ministros presidido por Salazar, tinha regressado em Novembro de 1968 cerca de um mês e meio depois da tomada de posse de Marcello Caetano. Logo a seguir a este regresso, um núcleo da ASP (Associação Socialista Portuguesa) de Coimbra, constituído por um ou dois estudantes (Luís Filipe Madeira e um outro) e apoiantes históricos de Mário Soares na região, como António Arnaut, António Campos e Fernando Valle, organizou em Coimbra, no ambiente restrito de uma República – “Os Kágados” –, uma sessão com Mário Soares para falar sobre o desterro em S. Tomé, o seu regresso e a situação política do país. No ambiente agitado do meio estudantil que então já se vivia em Coimbra, a presença de Soares e as suas intervenções n’ “Os Kágados” não tiveram praticamente nenhum impacto político entre os estudantes, tal era o distanciamento da juventude oposicionista ao “socialismo” de Soares e seus amigos. Aliás, esse encontro não terá corrido nada bem a Soares, apesar de apadrinhado por alguns notáveis vultos da intelectualidade coimbrã, como o professor Paulo Quintela e outros. Não apenas por Mário Soares não captar nenhuma simpatia entre a juventude de então, mas também por o seu regresso do desterro, tão próximo da tomada de posse de Marcello, ter levantado uma onda de boatos sobre a sua futura acção futura política que, por mais injustos que fossem, o prejudicavam seriamente. O mesmo distanciamento se notou, aliás, meses mais tarde, no II Congresso Republicano de Aveiro (Maio de 69) no qual a intervenção de Soares, centrada na exigência de cumprimento do art.º 8.º da Constituição (1933), foi acolhida com muita frieza. Posteriormente, em Outubro de 1969, na campanha eleitoral para as legislativas – as primeiras da era marcelista -, Soares quebrou a unidade oposicionista, apresentando em quatro distritos (Lisboa, Porto, Braga e Castelo Branco) listas da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática) apoiadas pela ASP, que recolheram uma ínfima parcela dos votos da oposição democrática. Isto apesar de durante a campanha eleitoral Soares se ter esforçado por marcar inequivocamente todas as diferenças (Comício de Entrecampos, no - posteriormente chamado - Teatro Vasco Santana) que o distinguiam (a ele e aos apoiantes do seu movimento) da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), movimento unitário da oposição democrática, por ele considerado de inspiração comunista, não obstante nele participarem activamente e em lugares de grande destaque alguns daqueles que mais tarde ocuparam lugares de grande relevo no Partido Socialista, como, por exemplo, Jorge Sampaio. Soares, porém, mantinha-se fiel, como aliás sempre se manteve, mesmo depois do 25 de Abril, a uma transição do fascismo para a democracia segundo os princípios e os valores inscritos no “Programa para a Democratização da República”, apresentado em 1961 pela velha guarda republicana.

Isto apenas para lembrar que aquele que, cerca de quatro anos mais tarde (1973), viria a ser o “primeiro” fundador do Partido Socialista e dois anos depois (1975) o líder do partido mais votado em eleições livres, não gozava na década de 60 da simpatia da maior parte dos portugueses e era mesmo olhado com relativa hostilidade pela juventude estudantil antifascista. Aliás, é nossa profunda convicção que a popularidade e as vitórias eleitorais que Soares veio a obter na liderança do Partido Socialista não se deveram maioritariamente a uma frente antifascista com passado de luta contra a ditadura ou de simples distanciamento político face a esta, mas a uma forte corrente anticomunista que Soares soube habilmente aproveitar e até instrumentalizar a partir de tudo o que à esquerda do Partido Socialista se estava passando durante a Revolução. E muito do que se passava, ou melhor, muitos dos que foram responsáveis pelo que se passou acabaram, anos mais tarde, depois da “normalização” e já "regenerados", por integrar as fileiras do Partido Socialista

Voltemos de novo à questão da filiação, depois desta resumida digressão pela história mais recente do sector da oposição democrática protagonizada por Mário Soares. As direcções da Associação Académica de Coimbra na década de 60, dominadas pela esquerda estudantil (e foram cinco – 1960/61; 1961/62; 1963/64; 1964/65; e 1968/69 -, tantas quantas as eleições que o fascismo permitiu), resultaram todas elas de uma frente antifascista patrocinada pelo Conselho das Repúblicas, apoiada pela maioria dos estudantes, e eram integradas por estudantes oposicionistas com várias sensibilidades políticas, entre os quais se contavam dirigentes que mais tarde - uma, duas ou até três décadas - se notabilizaram como importantes personalidades do Partido Socialista. Porém, nenhum deles ou quase nenhum deles (para prevenir uma pequena falha de memória) então se assumiu como ligado à ASP ou especificamente a Soares. Essa não era uma ligação recomendável, digam agora o que disserem. Nem a linha de Soares, completamente desfasada do tempo e da época que então se viviam, granjeava qualquer simpatia entre as jovens gerações antifascistas.

Entre os dirigentes acima referidos, com ligações posteriores ao Partido Socialista, podem contar-se em 1960/61, data em que nem a ASP existia, o presidente da AAC, Carlos Candal, mais tarde membro fundador do PS e destacado dirigente; em 1963/64, António Correia de Campos, presidente eleito não homologado pelas autoridades académicas, tendo em sua substituição assumido a presidência Joaquim Antero Romero Magalhães, ambos, mais tarde (década de 70), membros do Partido Socialista, tendo o primeiro assumido cargos políticos de relevo; em1968/69, já no marcelismo, a lista eleita com uma vitória retumbante sobre a direita, proveniente de uma coligação patrocinada pelo Conselho das Repúblicas, como aliás todas as anteriores da década de 60, era composta por elementos do PCP (Osvaldo de Castro e Fernanda Bernarda) e elementos da esquerda independente com significativas nuances entre si – Celso Cruzeiro, ligado a um pensamento da nova esquerda, porventura próximo do que mais tarde veio a ser o MES da via mais radical; Alberto Martins, marxista, e Matos Pereira, não marxista, de uma linha mais moderada, também eles mais tarde membros do Partido Socialista, mas sem nenhuma ligação conhecida à época à ASP ou ao "socialismo soarista” e José Gil, antifascista, como os demais, da esquerda independente.

Escusado será dizer que dezenas de outros estudantes, dirigentes associativos ou com grande intervenção no movimento estudantil não tinham nem nunca tiveram qualquer ligação ao Partido Socialista ou aos seus antecedentes mais próximos, como a ASP. E outros houve que então pertenciam ao Partido Comunista e que muito mais tarde vieram a aderir ao Partido Socialista, o que igualmente coloca sua acção política como dirigentes estudantis fora de qualquer filiação no actual Partido Socialista.

Relativamente a 1969, que é a questão que aqui nos interessa analisar mais em pormenor, é preciso que se diga que, fora da estrutura dirigente institucional, com influência directa na enorme movimentação estudantil então em curso, difícil era saber qual o mais moderado, o mesmo é dizer sem qualquer ligação, por remota que fosse, ao pensamento socialista da ASP ou ao “socialismo” de Soares. Aliás, é a estas estruturas inorgânicas que se deve a “recepção” e as “despedidas” a Thomaz e à sua comitiva na inauguração do Edifício das Matemáticas em 17 de Abril; é à Junta dos Delegados de Ciências que se deve a exigência de usar da palavra no acto de inauguração daquele edifício, sob ameaça de o fazerem eles próprios se as estruturas institucionais se recusassem, como ainda em 17 de Abril deste ano José Cavalheiro recordou numa comemoração realizada em Coimbra; são essas mesmas estruturas inorgânicas, apoiadas por milhares de estudantes, que exigem a greve a exames, que protagonizam, enfim, tudo aquilo que num movimento desta dimensão não obedece, nem pode obedecer, a esquemas previamente delineados.

Quer isto dizer que as estruturas institucionais não desempenharam qualquer papel de relevo na crise de 69? Não, não quer. Elas tiveram antes de mais o mérito de saber (podemos dizê-lo sem medo das palavras) acompanhar e enquadrar, sem a trair, a vontade contestatária dos estudantes nas suas múltiplas exigências e protestos. E souberam também tomar as iniciativas que o curso dos acontecimentos ia exigindo no dia-a-dia para manter viva, actuante e interventiva a chama da contestação.

Mais difícil será dizer o mesmo quanto ao modo como tudo terminou alguns meses mais tarde. Aí já desligados da presença e da força contestária das massas estudantis, cometeram-se erros irremediáveis, como Celso Cruzeiro, numa manifestação de grande honestidade intelectual, hoje reconhece sem reservas - “Um grave erro que o movimento cometeu”, diz Celso.

De facto a ida a Belém, para cumprimentar Thomaz e ratificar com a sua presença “tudo o que os seus professores houverem por bem declarar sobre o seu caso”, não podia deixar de ser interpretada como uma vexatória capitulação, como a imprensa da época, obviamente dominada pela censura, não deixou de sublinhar. Só com extrema benevolência e idêntico grau de ingenuidade se pode considerar que a ida a Belém constituiu “uma derrota do Governo, das autoridades e até de Marcello Caetano”, como diz Alberto Martins. 

Estes escritos, é bom frisá-lo, não têm em vista pôr em causa o mérito dos que tiveram a honra e a coragem de dirigir o movimento associativo estudantil. Bem pelo contrário, a todos eles devemos, tanto os que foram seus contemporâneos como os vindouros, o contributo indispensável à formação de uma escola democrática, inclusiva, que muito contribuiu para que hoje tenhamos um país completamente diferente, para muito melhor, daquele que a nossa juventude estudantil conheceu. 

O nosso propósito é outro. E é bom que o clarifiquemos para evitar equívocos. O nosso propósito é lembrar que o que se passou não pode ser individual ou associativamente apropriado, seja por partidos políticos ou outras associações, menosprezando o genuíno entusiasmo e a inventividade com que milhares de estudantes participaram numa luta que têm como sua e da qual, a justo título, se orgulham como um marco inesquecível da sua passagem pela universidade. E é igualmente o de lembrar que, para além das estruturas dirigentes institucionais clássicas, outras havia, mais inorgânicas mas não menos interventivas, com dirigentes consensualizados pelos estudantes pelo papel que foram desempenhando no decorrer da crise.

Há 20 anos, nas comemorações que então tiveram lugar em Coimbra, tivemos oportunidade, por carta, de sublinhar ao Presidente Jorge Sampaio, que nelas igualmente participou, a multiplicidade de actores deste importante movimento bem como o papel insubstituível dos milhares de estudantes anónimos que nele participaram e que foram a razão da sua força e perenidade. Esses sim, aqueles que, acima de todos os outros, convém homenagear e não esquecer!




1 comentário:

  1. A propósito das tentativas de justificar o injustificável, não posso deixar de citar aqui o comentário um comentário que li no Facebook, de Clara Maria, a propósito do pedido de desculpas a Thomaz. Diz ela :"(…) mesmo com o xadrez político da altura, custou -me horrores ver, na televisão, os meus colegas de capa e batina a participar nessa farsa oportunista.
    Sempre me lembro de um jovem colega que me dizia a chorar que, se fizesse greve aos exames, perdia a bolsa de estudo e deixaria de estudar.
    Um jovem humilde, obviamente.
    E fez greve.
    E perdeu a bolsa.
    E deixou de estudar.

    É essa memória que não consigo esquecer, por muito esforço que faça.
    Eu tinha acabado de perder o meu pai. Não tinha dinheiro. Tive que trabalhar para estudar.
    Não esqueço, nem aceito.

    ResponderEliminar