O SEU A SEU DONO
Pelo que se lê nos jornais e se vê nas televisões parece haver
uma tentativa de filiar a Crise Académica de 69 (Coimbra) no Partido Socialista
ou, pior ainda, uma tentativa de apropriação por elementos do Partido Socialista
do movimento estudantil simbolizado no “17 de Abril”.
Sem meias palavras, nada mais falso. Essa tentativa, mais ou
menos velada mais ou menos ostensiva de reescrever a história, pode, na actual
conjuntura política, com o apoio acrítico ou a pura ignorância dos meios de
comunicação, ter algum êxito, mas jamais terá a força suficiente para
historicamente se impor.
Antes de mais, nem Partido Socialista havia em 1969. O que
havia era a ASP, Acção Socialista Portuguesa, fundada em Novembro de 1964, em
Genebra, por Mário Soares, Tito de Morais e Ramos da Costa.
Assim sendo, a filiação de qualquer movimento estudantil ou
político da época no actual Partido Socialista só seria legítima se aqueles ou
parte daqueles que então actuaram se identificassem com a acção política de Mário
Soares ou das organizações políticas por ele dirigidas, visto ele ser,
indiscutivelmente, mais até do que depois do 25 de Abril, a figura mais visível
desse sector da oposição democrática.
Mário Soares, desterrado para S. Tomé por deliberação do
Conselho de Ministros presidido por Salazar, tinha regressado em Novembro de
1968 cerca de um mês e meio depois da tomada de posse de Marcello Caetano. Logo
a seguir a este regresso, um núcleo da ASP (Associação Socialista Portuguesa)
de Coimbra, constituído por um ou dois estudantes (Luís Filipe Madeira e um
outro) e apoiantes históricos de Mário Soares na região, como António Arnaut, António
Campos e Fernando Valle, organizou em Coimbra, no ambiente restrito de uma
República – “Os Kágados” –, uma sessão com Mário Soares para falar sobre o
desterro em S. Tomé, o seu regresso e a situação política do país. No ambiente
agitado do meio estudantil que então já se vivia em Coimbra, a presença de
Soares e as suas intervenções n’ “Os Kágados” não tiveram praticamente nenhum
impacto político entre os estudantes, tal era o distanciamento da juventude
oposicionista ao “socialismo” de Soares e seus amigos. Aliás, esse encontro não
terá corrido nada bem a Soares, apesar de apadrinhado por alguns notáveis
vultos da intelectualidade coimbrã, como o professor Paulo Quintela e outros. Não
apenas por Mário Soares não captar nenhuma simpatia entre a juventude de então,
mas também por o seu regresso do desterro, tão próximo da tomada de posse de
Marcello, ter levantado uma onda de boatos sobre a sua futura acção futura política
que, por mais injustos que fossem, o prejudicavam seriamente. O mesmo
distanciamento se notou, aliás, meses mais tarde, no II Congresso Republicano de
Aveiro (Maio de 69) no qual a intervenção de Soares, centrada na exigência de
cumprimento do art.º 8.º da Constituição (1933), foi acolhida com muita frieza.
Posteriormente, em Outubro de 1969, na campanha eleitoral para as legislativas –
as primeiras da era marcelista -, Soares quebrou a unidade oposicionista, apresentando
em quatro distritos (Lisboa, Porto, Braga e Castelo Branco) listas da CEUD (Comissão
Eleitoral de Unidade Democrática) apoiadas pela ASP, que recolheram uma ínfima parcela
dos votos da oposição democrática. Isto apesar de durante a campanha eleitoral Soares
se ter esforçado por marcar inequivocamente todas as diferenças (Comício de Entrecampos, no - posteriormente
chamado - Teatro Vasco Santana) que o
distinguiam (a ele e aos apoiantes do seu movimento) da CDE (Comissão
Democrática Eleitoral), movimento unitário da oposição democrática, por ele
considerado de inspiração comunista, não obstante nele participarem activamente
e em lugares de grande destaque alguns daqueles que mais tarde ocuparam lugares
de grande relevo no Partido Socialista, como, por exemplo, Jorge Sampaio. Soares,
porém, mantinha-se fiel, como aliás sempre se manteve, mesmo depois do 25 de
Abril, a uma transição do fascismo para a democracia segundo os princípios e os
valores inscritos no “Programa para a Democratização da República”, apresentado
em 1961 pela velha guarda republicana.
Isto apenas para lembrar que aquele que, cerca de quatro anos
mais tarde (1973), viria a ser o “primeiro” fundador do Partido Socialista e dois
anos depois (1975) o líder do partido mais votado em eleições livres, não gozava
na década de 60 da simpatia da maior parte dos portugueses e era mesmo olhado
com relativa hostilidade pela juventude estudantil antifascista. Aliás, é nossa
profunda convicção que a popularidade e as vitórias eleitorais que Soares veio
a obter na liderança do Partido Socialista não se deveram maioritariamente a
uma frente antifascista com passado de luta contra a ditadura ou de simples
distanciamento político face a esta, mas a uma forte corrente anticomunista que
Soares soube habilmente aproveitar e até instrumentalizar a partir de tudo o
que à esquerda do Partido Socialista se estava passando durante a Revolução. E
muito do que se passava, ou melhor, muitos dos que foram responsáveis pelo que
se passou acabaram, anos mais tarde, depois da “normalização” e já "regenerados",
por integrar as fileiras do Partido Socialista
Voltemos de novo à questão da filiação, depois desta resumida
digressão pela história mais recente do sector da oposição democrática protagonizada
por Mário Soares. As direcções da Associação Académica de Coimbra na década de 60,
dominadas pela esquerda estudantil (e foram cinco – 1960/61; 1961/62; 1963/64;
1964/65; e 1968/69 -, tantas quantas as eleições que o fascismo permitiu), resultaram
todas elas de uma frente antifascista patrocinada pelo Conselho das Repúblicas,
apoiada pela maioria dos estudantes, e eram integradas por estudantes
oposicionistas com várias sensibilidades políticas, entre os quais se contavam
dirigentes que mais tarde - uma, duas ou até três décadas - se notabilizaram
como importantes personalidades do Partido Socialista. Porém, nenhum deles ou
quase nenhum deles (para prevenir uma pequena falha de memória) então se
assumiu como ligado à ASP ou especificamente a Soares. Essa não era uma ligação
recomendável, digam agora o que disserem. Nem a linha de Soares, completamente
desfasada do tempo e da época que então se viviam, granjeava qualquer simpatia
entre as jovens gerações antifascistas.
Entre os dirigentes acima referidos, com ligações posteriores
ao Partido Socialista, podem contar-se em 1960/61, data em que nem a ASP
existia, o presidente da AAC, Carlos Candal, mais tarde membro fundador do PS e
destacado dirigente; em 1963/64, António Correia de Campos, presidente eleito não
homologado pelas autoridades académicas, tendo em sua substituição assumido a
presidência Joaquim Antero Romero Magalhães, ambos, mais tarde (década de 70),
membros do Partido Socialista, tendo o primeiro assumido cargos políticos de
relevo; em1968/69, já no marcelismo, a lista eleita com uma vitória retumbante sobre
a direita, proveniente de uma coligação patrocinada pelo Conselho das
Repúblicas, como aliás todas as anteriores da década de 60, era composta por
elementos do PCP (Osvaldo de Castro e Fernanda Bernarda) e elementos da
esquerda independente com significativas nuances entre si – Celso Cruzeiro,
ligado a um pensamento da nova esquerda, porventura próximo do que mais tarde
veio a ser o MES da via mais radical; Alberto Martins, marxista, e Matos Pereira, não
marxista, de uma linha mais moderada, também eles mais tarde membros do
Partido Socialista, mas sem nenhuma ligação conhecida à época à ASP ou ao "socialismo
soarista” e José Gil, antifascista, como os demais, da esquerda independente.
Escusado será dizer que dezenas de outros estudantes, dirigentes
associativos ou com grande intervenção no movimento estudantil não tinham nem
nunca tiveram qualquer ligação ao Partido Socialista ou aos seus antecedentes
mais próximos, como a ASP. E outros houve que então pertenciam ao Partido
Comunista e que muito mais tarde vieram a aderir ao Partido Socialista, o que
igualmente coloca sua acção política como dirigentes estudantis fora de
qualquer filiação no actual Partido Socialista.
Relativamente a 1969, que é a questão que aqui nos interessa
analisar mais em pormenor, é preciso que se diga que, fora da estrutura
dirigente institucional, com influência directa na enorme movimentação
estudantil então em curso, difícil era saber qual o mais moderado, o mesmo é
dizer sem qualquer ligação, por remota que fosse, ao pensamento socialista da ASP
ou ao “socialismo” de Soares. Aliás, é a estas estruturas inorgânicas que se
deve a “recepção” e as “despedidas” a Thomaz e à sua comitiva na inauguração do
Edifício das Matemáticas em 17 de Abril; é à Junta dos Delegados de Ciências
que se deve a exigência de usar da palavra no acto de inauguração daquele
edifício, sob ameaça de o fazerem eles próprios se as estruturas institucionais
se recusassem, como ainda em 17 de Abril deste ano José Cavalheiro recordou
numa comemoração realizada em Coimbra; são essas mesmas estruturas inorgânicas,
apoiadas por milhares de estudantes, que exigem a greve a exames, que
protagonizam, enfim, tudo aquilo que num movimento desta dimensão não obedece,
nem pode obedecer, a esquemas previamente delineados.
Quer isto dizer que as estruturas institucionais não
desempenharam qualquer papel de relevo na crise de 69? Não, não quer. Elas
tiveram antes de mais o mérito de saber (podemos dizê-lo sem medo das palavras)
acompanhar e enquadrar, sem a trair, a vontade contestatária dos estudantes nas
suas múltiplas exigências e protestos. E souberam também tomar as iniciativas
que o curso dos acontecimentos ia exigindo no dia-a-dia para manter viva,
actuante e interventiva a chama da contestação.
Mais difícil será dizer o mesmo quanto ao modo como tudo
terminou alguns meses mais tarde. Aí já desligados da presença e da força
contestária das massas estudantis, cometeram-se erros irremediáveis, como Celso
Cruzeiro, numa manifestação de grande honestidade intelectual, hoje reconhece
sem reservas - “Um grave erro que o movimento cometeu”, diz Celso.
De facto a ida a Belém, para cumprimentar Thomaz e ratificar
com a sua presença “tudo o que os seus professores houverem por bem declarar sobre o seu
caso”, não podia deixar de ser interpretada como uma vexatória
capitulação, como a imprensa da época, obviamente dominada pela censura, não
deixou de sublinhar. Só com extrema benevolência e idêntico grau de ingenuidade
se pode considerar que a ida a Belém constituiu “uma derrota do Governo, das
autoridades e até de Marcello Caetano”, como diz Alberto Martins.
Estes escritos, é bom frisá-lo, não têm em vista pôr em causa
o mérito dos que tiveram a honra e a coragem de dirigir o movimento associativo
estudantil. Bem pelo contrário, a todos eles devemos, tanto os que foram seus
contemporâneos como os vindouros, o contributo indispensável à formação de uma
escola democrática, inclusiva, que muito contribuiu para que hoje tenhamos um
país completamente diferente, para muito melhor, daquele que a nossa juventude
estudantil conheceu.
O nosso propósito é outro. E é bom que o clarifiquemos para
evitar equívocos. O nosso propósito é lembrar que o que se passou não pode ser
individual ou associativamente apropriado, seja por partidos políticos ou
outras associações, menosprezando o genuíno entusiasmo e a inventividade com
que milhares de estudantes participaram numa luta que têm como sua e da qual, a
justo título, se orgulham como um marco inesquecível da sua passagem pela universidade.
E é igualmente o de lembrar que, para além das estruturas dirigentes
institucionais clássicas, outras havia, mais inorgânicas mas não menos
interventivas, com dirigentes consensualizados pelos estudantes pelo papel que
foram desempenhando no decorrer da crise.
Há 20 anos, nas comemorações que então tiveram lugar em
Coimbra, tivemos oportunidade, por carta, de sublinhar ao Presidente Jorge
Sampaio, que nelas igualmente participou, a multiplicidade de actores deste
importante movimento bem como o papel insubstituível dos milhares de estudantes
anónimos que nele participaram e que foram a razão da sua força e perenidade. Esses sim, aqueles que, acima de todos os outros, convém homenagear e não esquecer!
A propósito das tentativas de justificar o injustificável, não posso deixar de citar aqui o comentário um comentário que li no Facebook, de Clara Maria, a propósito do pedido de desculpas a Thomaz. Diz ela :"(…) mesmo com o xadrez político da altura, custou -me horrores ver, na televisão, os meus colegas de capa e batina a participar nessa farsa oportunista.
ResponderEliminarSempre me lembro de um jovem colega que me dizia a chorar que, se fizesse greve aos exames, perdia a bolsa de estudo e deixaria de estudar.
Um jovem humilde, obviamente.
E fez greve.
E perdeu a bolsa.
E deixou de estudar.
É essa memória que não consigo esquecer, por muito esforço que faça.
Eu tinha acabado de perder o meu pai. Não tinha dinheiro. Tive que trabalhar para estudar.
Não esqueço, nem aceito.