quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

NORONHA DO NASCIMENTO



PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Noronha do Nascimento é um magistrado acima de toda a suspeita. A sua honorabilidade nunca foi posta em causa por quem o conhece e muito menos o poderia ser com base em factos que a maioria das pessoas desconhece. De qualquer modo, o seu passado fala por si.
É óbvio também que Noronha do Nascimento nada tem a ver com as escutas da Face Oculta em que não intervenha o Primeiro Ministro, como interceptado fortuito. Tudo isto é claro, como desde o princípio aqui tem sido sublinhado.
Todavia, da sua intervenção como jurista pode haver discordâncias. Ele já as teve certamente noutras ocasiões e tê-las-á também neste caso.
A entrevista que hoje concedeu a Judite de Sousa contém um facto novo, que a entrevistadora, por não ter a preparação técnica adequada, não soube valorizar devidamente. Até hoje, a maioria das pessoas que, com rigor e responsabilidade, se pronunciou sobre a intervenção de Noronha do Nascimento supunha que ela tinha sido de natureza meramente formal: ou seja, que o Presidente do Supremo apenas se tinha pronunciado sobre a validade das escutas, em virtude de as mesmas não terem sido interceptadas sem a sua prévia autorização. Com efeito, o artigo 11.º, n.º 2, al. c) do Código Processo Penal estabelece que compete ao Presidente do STJ, em matéria penal, autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham (…) o Primeiro-Ministro e determinar a respectiva destruição, nos termos dos artigos 187.º a 190.º do mesmo Código.
A propósito desta questão levantou-se, como se sabe, uma enorme polémica jurídica: havia quem defendesse a invalidade das escutas sempre que não tivessem sido previamente autorizadas pelo Presidente do STJ; havia quem defendesse a validade das escutas obtidas fortuitamente, limitando aquela autorização prévia apenas às escutas que tivessem os visados como alvo; e havia quem defendesse que as escutas sendo, em princípio, nulas, poderiam ser válidas se tivessem relevância criminal específica.
Nos artigos que aqui escrevemos defendemos esta última posição. Pois bem, hoje ficou a saber-se que a intervenção do Presidente do STJ não foi apenas formal, mas também substancial, já que ele se pronunciou tendo também em conta o conteúdo das referidas escutas. De facto, o fundamento da não validação das escutas não é a falta de autorização prévia nem a circunstância de não lhe terem sido presentes nas setenta e duas horas subsequentes, o fundamento é a sua irrelevância criminal
Juridicamente, esta tomada de posição significa que as escutas em que o Primeiro Ministro foi fortuitamente interceptado poderiam ser válidas. Ou seja, a sua validade ou invalidade não decorria da prévia autorização, mas do seu conteúdo.
Ora, ao actuar nestes termos Noronha do Nascimento assumiu a posição de juiz de instrução, por ter entendido que a competência que a lei lhe atribuiu nos termos do artigo acima citado o coloca na mesma posição em que está um qualquer juiz de instrução que, de acordo com o condicionalismo legal em vigor, tem competência para autorizar escutas.
Embora do ponto de vista jurídico esta interpretação constitua um inegável progresso na medida em que deita por terra a tese de que as escutas fortuitas a qualquer das personalidades enumeradas no artigo 11.º, n.º 2, al. c) acima citado são sempre nulas, ela deixa por resolver uma questão bem mais complexa que é a da sua compatibilidade com o disposto no n.º 7 desse mesmo artigo 11.º, que atribui competência ao juiz da secção criminal do STJ para, em matéria penal, praticar os actos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir o despacho de pronúncia ou não pronúncia nos processos relativos ao PR, PAR e PM por crimes praticados no exercício das funções.
Na interpretação que aqui fizemos sempre tínhamos considerado que a competência do Presidente do STJ estava limitada às escutas que tivessem aquelas personalidades como alvo, não abrangendo as obtidas fortuitamente. Estas, segundo o ponto de vista que defendemos, seriam válidas ou não de acordo com a sua relevância criminal, competindo ao juiz de instrução (neste caso um juiz da secção criminal do Supremo) validá-las ou não.
Nada a opor à interpretação de Noronha do Nascimento desde que ela possa ser compatível com a disposição legal que atribui nestes casos ao juiz do Supremo a competência para dirigir a instrução.

7 comentários:

VM disse...

Não vi a entrevista.
Não abro o CPP há anos (nem sequer quando aqui dei uns palpites).
Fui agora ver o artº 11º na net e -com as devidas reservas, pois nem o imprimi - parece-me que o Nº 7, que desconhecia e pensava até que a questão estava ainda regulada na L.O.F.T.J., veda ao Presidente do STJ que se assuma como JIC, sem prejuizo do disposto no Nº 2.
É uma interpretação meramente literal, mas não vejo necessidade de se ir mais além.
VM

VM disse...

2ª Dose:

Continuo a pensar que as escutas fortuitas são válidas apesar de não terem sido (nem podiam ser) autorizadas pelo Presidente do STJ.
VM

JMCPinto disse...

Também me parece. Acho que não há forma de compatibilizar a interpretação que o Presidente do STJ fez do n.º2 al.c) com o n.o 7 do artigo 11 do CPP. Mas o que a interpretação tem de novo é o facto de ele considerar que as escutas poderiam ser válidas. E isso é importante.
JMCPinto

VM disse...

Pois é, mas não vi a entrevista e fico confuso pq pensava que ele as tinha considerado nulas por não terem sido auorizadas por si, o que seria um erro.

Se ele entende que poderiam ser válidas é porque a razão da decidida nulidade não foi, afinal,essa.

Mas então com que fundamento mandou destruir as escutas?
Como invocas o Nº 7 do artº 11º, será que ele invadiu as competências do JIC?

Desculpa, e os teus leitores também, a minha curiosidade.

Ana Paula Fitas disse...

Fiz link :)
Abraço.

Anónimo disse...

Notável, a peça da mais refinada filigrana diplomática, digna de um Talleyrand, que constitui o primeiro parágrafo do post.
Por mim, digo sem exagero que é uma obra-prima.
Isto posto, convém ter presente que as decisões, virtualmente todas as decisões jurisdicionais, são passíveis de recurso.
Uma decisão sobre a relevância indiciária de certos elementos de prova, regular ou irregularmente produzida, uma vez transitada, esgota-se no seu âmbito material. O Presidente do STJ pode ter exorbitado a sua competência, mas a investigação prossegue e nada obsta a que em fase ulterior venha a encontrar material que justifique o inquérito a cargo de um dos juízes da secção criminal sem que seja lícito ao Presidente avocá-lo ou, a quem quer que seja, opor à sua instauracão qualquer pretenso caso julgado.
O acto do Presidente do STJ teve aqueles contornos e ponto, parágrafo: ao acatar, o PGR emprestou-lhe estabilidade.
Por outro lado, aos juizes, todos os juízes, é vedado comentar casos que estejam sob a sua alçada. O acto decisório é auto-suficiente, porque toda a sua fundamentação tem que ser nele encontrada. Não é pois lícito ao julgador explicar-se publicamente, designadamente dando verbalmente a conhecer material que possa nele não estar contido: tal como acontece com a mãe da lei, também a "mãe" da sentença morre de parto. Por muito "pedagogicas" que fossem as suas intenções, o Presidente do STJ - por inerência Presidente do CSM, órgão superior de gestão e disciplina da magistratura e júri de selecção dos que acederão ao STJ para aí constituirem o colégio eleitoral do Presidente - abre um precedente grave para a pratica judicial.
O rigor kantiano, tão do apreço do autor, cede o passo ao super-realismo kafkiano.

jlsc

Jorge Almeida disse...

1º) Para quem não viu a entrevista, e queira ver, só tem que copiar e colar o seguinte link na barra de endereços do seu browser:

http://tv1.rtp.pt/multimedia/index.php?tvprog=1436&formato=flv

2º) Quanto à entrevista em si, acho que a sua análise deixou escapar um facto ainda mais importante que essa discussão jurídica.

É que Noronha do Nascimento veio a dizer que não se lembra de ter visto referências a Cavaco Silva nas escutas que lhe foram remetidas.

O que se deduz daqui (caso a memória de Noronha do Nascimento não lhe esteja a falhar), é que houve uma de 2 coisas:

a) O Ministério Público não enviou ao STJ todas as escutas que realizou e que envolviam Sócrates; ou

b) As escutas que escutaram (passe o pleonasmo) Sócrates, que apareceram na comunicação social, e que mencionavam Cavaco Silva, são falsas.

Ambas as situações são graves.

Daí a minha intervenção no outro dia.

Para se fazer análise substantiva como tem sido feita a este caso das escutas, não questionando a veracidade delas duma maneira sistemática, é preciso ter confiança no veiculo que as divulga, neste caso a comunicação social. Ora, este veículo já demonstrou não ser de confiança para fazer essas análises. Já não era a 1ª vez que a comunicação social divulgava mentiras, de propósito ou involuntariamente.
Não é por acaso que os velhos jornalistas têm denunciado que já não há tempo para verificarem da veracidade das estórias.