quarta-feira, 20 de abril de 2011

ARGENTINA - UMA SOLUÇÃO DIFERENTE - II



VALE A PENA CONHECER O CASO ARGENTINO

Como estávamos dizendo no último post, a Argentina, depois de um processo muito complexo de negociações com o FMI, que originou uma profunda crise social e política, rompeu as negociações, nas condições que adiante se descreverão, cessou os pagamentos e comunicou aos credores a sua disponibilidade para negociar directamente com eles o pagamento de uma parte da dívida
Os credores, desfalcados do apoio do FMI, colocados perante a opção de receberem alguma coisa ou não receberem nada, optaram por negociar. Decorridos cerca de três anos de negociações, 76% dos credores deram quitação à Argentina na base de 34 cêntimos por cada dólar emprestado. Ou seja, a Argentina libertou-se da dívida pagando cerca de um terço do seu valor nominal.
Como é que isto aconteceu? Aconteceu antes de mais porque os governantes argentinos que tiveram a coragem de romper as negociações com o FMI e aceitar, como consequência, a cessação de pagamentos estavam imbuídos de um profundo patriotismo e recusavam, sem hesitações, sacrificar por largos anos o bem-estar do seu povo às exigências do capital financeiro internacional. Depois, porque nas negociações directas com os credores deram igualmente provas de uma grande tenacidade e de uma extraordinária habilidade que levaram os credores a claudicar perante a sua determinação.
Mas vale a pena contar como tudo se passou.
Nos anos 70 do século passado, a Argentina, como outros países latino-americanos, foi fortemente pressionada pelo capital financeiro a contrair empréstimos para os mais diversos fins, que não apenas de investimento propriamente dito. O dinheiro era então muito barato, com taxas de juro baixas, por vezes até com uma taxa real negativa (a taxa real corresponde à diferença entre a taxa nominal e a taxa de inflação), e sabe-se como é muito difícil, para não dizer quase impossível, resistir ao dinheiro barato.
Mas aconteceu que, nos inícios dos anos 80, os Estados Unidos, para controlar a inflação que não cessava de crescer, adoptaram algumas medidas radicais, entre as quais a subida da taxa de juro para cerca de 20%.
Perante esta situação e impossibilitada de fazer face a um serviço da dívida que subira exponencialmente para níveis incomportáveis, a Argentina, como outros países latino-americanos, entre os quais o Brasil, viu-se na necessidade de acordar com os credores o reescalonamento da sua dívida por um período mais dilatado, sem, obviamente, qualquer tipo de perdão.
Durante dez anos, o dinheiro que aparentemente afluíra de norte para sul a preços de saldo regressava agora ao norte com compensações brutais. Foi uma década de estagnação para os países em desenvolvimento e de rendimento intermédio da África e da América Latina, uma década a que os países desenvolvidos do norte chamaram cinicamente a “década perdida”.
Durante dez anos a Argentina pagou a dívida. No começo dos anos noventa, a Argentina liberta do fardo da dívida recomeçou a crescer e muito. Simultaneamente, as doutrinas neoliberais, impulsionadas pelo “Consenso de Washington”, de Novembro de 1989, iam fazendo o seu curso.
Como a Argentina estava “próspera” o dinheiro voltou a afluir em grande quantidade ao país das pampas, inclusive – em montantes não despiciendos – para financiar o consumo. Ao mesmo tempo, em execução de um “corajoso” (como então lhe chamavam) programa de privatizações, a Argentina ia vendendo os seus activos, principalmente a estrangeiros, enquanto simultaneamente se endividava cada vez mais para consumir.
Entretanto, o Plano Cavallo, no começo dos anos 90, ligou o peso ao dólar americano, dando início ao que por uma década se chamou a dolarização da economia argentina.
O FMI rejubilava, elogiando a política seguida por Buenos Aires, e encorajava os estrangeiros a emprestar à Argentina.
A Argentina era o "bom aluno" da América Latina, com baixas taxas de inflação e com um programa de privatizações que enchia de orgulho o Tesouro americano e as Instituições de Bretton Woods. Menen, que mais tarde foi condenado por corrupção, chegou mesmo a ser, em 1999, o convidado de honra da Assembleia Geral do FMI, em Washington.
Só que em 1999 as coisas já estavam a mudar. A crise asiática de 1997 transformou-se em crise financeira no ano seguinte e foi atingindo a maior parte dos países da Ásia, a Rússia e depois os da América Latina. A taxa de juro para os países emergentes subiu em flecha e esta subida voltou a ter consequências dramáticas para a Argentina, que viu o serviço da dívida, entre 1996 e 2000, mais que duplicar.
Com uma moeda muito forte, pela sua ligação ao dólar, a Argentina aumentou consideravelmente as suas importações, diminuiu as exportações, facto agravado por o Brasil, entretanto - depois de várias hesitações de FHC - ter também desvalorizado o real, e começou a entrar numa situação insustentável, muito parecida com a que hoje se vive nalguns países da zona euro.
Com as taxas de juro a subir, com a balança de pagamentos altamente deficitária, com as importações em alta e as exportações a descer, a Argentina viu aumentar dramaticamente a sua dívida e o seu défice orçamental.
É aqui que reentra o FMI, agora já não como “professor embevecido”, mas como “médico”. E as suas receitas, ontem como hoje são conhecidas: aumento de impostos, diminuição das despesas, baixa de salários, subida da taxa de juro interna. Enfim, recessão…
Aos factores referidos acresciam as diversas medidas que o FMI tinha encorajado a Argentina a adoptar e que agora se revelavam altamente prejudiciais: privatização da caixa de pensões, privatização de quase todos os serviços públicos, como a água, a electricidade, com as tarifas indexadas às dos Estados Unidos! Ou seja, se as tarifas aumentassem nos EUA – e estavam a aumentar – aumentariam também na Argentina.
A Argentina entrou em recessão e aquilo que já era praticamente insuportável tornou-se absolutamente insustentável.
O país estava falido, incapaz de cumprir os compromissos assumidos e de manter a dolarização do peso. Sucederam-se os governos e os presidentes num curto espaço de tempo, até que chega Kirchner para ficar e alterar o parecia ser uma fatalidade para a Argentina: sucumbir às exigências do FMI. Mas antes disso já o peso tinha abandonado a sua ligação ao dólar, a taxa de câmbio tinha passado a flutuar, o peso perdera cerca de um terço do seu valor, o PIB caira 12% e o desemprego subira para mais de 20%.
Acontece que o FMI era por esta data um grande credor da Argentina. Simultaneamente, os credores privados da Argentina exigiam ser reembolsados. A Argentina tentou que o FMI retardasse a cobrança dos seus créditos, mas sem êxito. O FMI não só continuou a reclamar o reembolso integral do seu crédito, como, para conceder uma moratória, passou a exigir a adopção de medidas ainda mais drásticas do que aquelas que tinham levado à crise.
Nas negociações secretas (como sempre) que se seguiram, a Argentina não cedeu e ainda passou defender os seus pontos de vista com mais convicção depois de ter percebido que o dinheiro que estava a tentar obter emprestado do FMI não passaria por Buenos Aires. Ficaria em Washington para ser entregue ao próprio FMI e a outros credores. Aliás, à época, o FMI gabava-se de ter aplicado essa mesma “receita” a Yeltsin, que a aceitou (por isso ele era tão amado….).
A Argentina sabia, portanto, que se cedesse às exigências do FMI só iria agravar a sua recessão. E percebeu também que o FMI e demais credores tinham mais a perder com a ruptura das negociações do que ela com a renegociação dos empréstimos.
Portanto, a decisão foi não pagar aos credores privados. Quanto aos institucionais deixou habilmente a questão nas mãos do FMI. Se o Fundo não aceitasse a renegociação do empréstimo nas condições por ela propostas pela e a declarasse falida, quem ficaria doravante em situação difícil seria o próprio FMI, já que o vultoso empréstimo que tinha concedido ficaria incobrável e as suas contas a negativo.
Nesta guerra de vontades a Argentina acabou por levar a melhor. Não aceitou as condições impostas pelo FMI e foi este, tal como os outros credores, que acabou por aceitar, como bom, apenas o pagamento de uma parte da dívida.
A lição que se retira, aliás confessada mais tarde por alguns responsáveis do FMI, entretanto na reserva ou reformados, é que o Fundo e os credores jogam com o pânico dos Estados quanto à cessação de pagamentos. Eles sabem que um Estado soberano não pode hoje ser “penhorado”, os seus bens não podem ser executados, nem as suas receitas consignadas ao pagamento das dívidas, portanto, tudo o que lhes resta é o medo. Infundir um medo irracional generalizado. E, em regra, os Estados não resistem. Entre um futuro que sabem terrível e outro que admitem ser ainda pior, acabam por optar pelo primeiro, hipotecando o seu futuro durante mais de uma década ao interesse dos credores. E assim ficam completamente presos, sujeitos (o tal nexis do direito romano) aos interesses dos credores.
Liberta do FMI e dos credores, a Argentina começou a crescer. A crescer mais que o dobro do Brasil. Controlou o défice orçamental e chegou mesmo a suprimi-lo. Se tivesse continuado a mandar dinheiro para Washington como fez durante dez anos na década de 80 a sua situação seria incomparavelmente pior.
Politicamente a Argentina actuou com muita sabedoria: nunca disse abertamente que não queria pagar, nem disse que não aceitaria os planos do FMI. O que fez foi contestar a natureza inaceitável dos planos que o FMI lhe queria impor. O país não podia sacrificar o seu futuro às exigências do FMI (entenda-se dos Bancos ocidentais). Portanto, não era a Argentina, mas a irredutibilidade das posições do FMI, que a impediam de cumprir.
A Argentina pôde resistir antes de mais porque era governada por patriotas, para quem o bem-estar do seu povo era o objectivo supremo; depois, era ajudada por um forte mercado interno e, finalmente, por ser detentora de matérias-primas, principalmente agrícolas, de grande importância estratégica
Mas quantos países terão a coragem da Argentina? Isso fica para outro post.
Antes de terminar: a imprensa portuguesa, dominada ideologicamente pelo inimigo, ou identificada com os seus interesses, ou por pura ignorância, está dando muita relevância às supostas ou verdadeiras divergências entre o FMI e o FEEF. Só que essa questão, no contexto do que está em jogo, não passa da velha diferença entre o “pide bom” e o “pide mau”.

3 comentários:

  1. Dr. Correia Pinto, forcas-me a reconhecer que eu nao sei nada! Grande explicacao. Obrigado! Um grande A+
    Um abraco.

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  2. O nosso Pais nao e a Argentina nem tao pouco os nossos politicos.

    Andaram ate a bem pouco tempo a tapar o sol com a peneira, mas... so nao viu quem era cego!

    Agora para eles so lhes resta, os senhores de carro preto e fato preto. (Na minha opinion falta-lhes o chapeu tambem!)
    Desculpe nao poder comentar sobre os seus dois artigos o que sao muito bons, mas a minha ignorancia nao me leva a tanto.

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  3. Anónimo 20 de Abril de 2011 21:31, não é tarde para mudar os nossos políticos, e obrigá-los a fazer como fizeram os argentinos. Aliás, próximo 5 de Junho é uma boa ocasião para isso ...

    Para além disso, os argentinos andaram com uma situação podre durante quase 30 anos ... Acordaram ao fim de 30 anos. Espero que os portugueses não levem tanto tempo a acordar.

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