segunda-feira, 14 de maio de 2012

GRÉCIA: A ESPERANÇA DA EUROPA



ENFRENTAR A ALEMANHA, A DÍVIDA DE TODOS NÓS PARA COM A GRÉCIA



A Grécia tem enfrentado praticamente sozinha a prepotência germânica nestes últimos quatro anos. E essa é uma dívida que a Espanha, a Itália, Portugal e a própria França só poderão saldar no dia em que por força da coragem da Grécia a ela se juntarem para vergarem a Alemanha ou, hipótese muito mais provável, acabarem por pôr termo a uma aventura inconsequente que poucas hipóteses têm de ser remendada tal o estado de degradação a que já chegou.

Nos primeiros dois anos desta nova Odisseia, a Grécia foi insultada, humilhada, vilipendiada não apenas pelos novos Cavaleiros Teutónicos, mas também por aqueles que a eles covardemente se juntaram na esperança de colherem os favores com que os senhores desprezivelmente recompensam os lacaios. Foi o tempo do : “Nós não somos a Grécia”!

Pior que a vozearia dos lacaios, foi porém a situação dos que se prestaram a desempenhar o papel de “aliados de ocasião” numa rendição sem combate que lembra, nesta nova guerra, a de Vichy.

A França, que vivia com tranquilidade a sua hegemonia teórica no seio desta Europa inventada para “domesticar” a Alemanha, viu-se subitamente confrontada com um facto que estava longe de suspeitar pudesse acontecer no tempo previsível de acção política daqueles que sucessivamente a governavam: a implosão da União Soviética (cuja existência era para ela uma espécie de seguro de vida, além de lhe permitir uns arrobos de independência política face ao então gigante americano) e a subsequente reunificação da Alemanha, como consequência inevitável daquela implosão.

Colhida de surpresa pelos acontecimentos e tendo a partir de então de voltar a defrontar-se com um problema que enterrara durante quase cinquenta anos, a França reagiu primeiramente sem jeito e depois com perfídia, tentando inviabilizar o inevitável (a visita à RDA de Mitterrand, etc.). Convencida pela força dos factos de que nada havia a fazer para impedir a reunificação e ciente de que a nova força do seu temível vizinho residia na sua pujança económica e, em última instância, na solidez da sua moeda – o marco -, idealizou, como se de um verdadeiro golpe de mágica se tratasse, algo que, segundo as suas conjecturas, pudesse pôr termo ao poderio alemão e simultaneamente lhe assegurasse um papel de destaque na política monetária da Europa  – a criação de uma moeda única como desenvolvimento natural da construção europeia.

Avisados, como sempre, os ingleses ficaram de fora e com eles os seus tradicionais aliados nórdicos, mas todos os outros acorreram pressurosos a saborear o novo maná convencidos de que tinham finalmente encontrado por acção daquelas brilhantes mentes francesas a solução para os problemas com que ancestralmente se debatiam.

O resto da história é conhecido: enquanto os efeitos económicos da reunificação alemã se mantiveram presentes na cena europeia, a França lucrou com isso e chegou mesmo a acreditar que a nova moeda lhe conferia afinal a hegemonia com que sempre sonhara. Mas foi sol de pouca dura. A Alemanha rapidamente se restabeleceu e a nova moeda, apesar das reticências com que foi aceite do lado de lá do Reno, acabou por ser moldada segundo as regras do extinto deutsch mark, do mesmo modo que o BCE copiava o modelo do Bundesbank, servindo, assim, os interesses da Alemanha ainda com mais eficácia do que o antigo marco. A generalidade das economias da zona euro perdeu competitividade relativamente à economia alemã, como as respectivas balanças comerciais o comprovam, passando, todas elas, a ser deficitárias nas suas relações com a Alemanha. Ou seja, a Alemanha melhorou significativamente no interior da zona euro a sua posição relativa enquanto os demais países se foram endividando quer para colmatar os diversos défices originados pelas diferenças competitivas quer para investir em áreas onde tais diferenças não se faziam sentir ou menos se faziam sentir – os chamados bens “não transaccionáveis”.

A França, depois de ter inventado o euro, na tal esperança de quebrar a hegemonia alemã, tentou, com Chirac, mas sem êxito, numa espécie de acção premonitória, salvaguardar certos aspectos simbólicos relativos à criação da nova moeda, como a localização do BCE (Kehl em vez de Frankfurt) e logrou obter certas vantagens bem mais concretas (como assegurar para um francês, ao fim dos primeiros dois anos, o lugar de governador do Banco) e depois, já com Sarkozy, combater erraticamente a natureza do BCE, que entretanto  se tinha  consolidado pela prática como instituição moldada sobre o Bundesbank , tentando fazer dele algo mais do que uma instituição destinada a garantir a solidez da moeda, o mesmo é dizer, a controlar a inflação.

Esta luta surda que durante anos a França travou sem sucesso sobre a natureza do Banco Central está agora em vias de poder ter novos desenvolvimentos por força da acção corajosa da Grécia.

Se nos primeiros dois anos desta sua moderna Odisseia a Grécia se limitou, tal como Ulisses, com múltiplos ardis, a enganar os seus opositores evitando tanto quanto possível navegar por mares que inevitavelmente a levavam ao naufrágio, sem contudo deixar de rumar no sentido imposto de fora, nesta parte final da viagem resolveu rebelar-se contra os timoneiros estrangeiros, colocando-os perante um dilema de difícil solução, mas que, seja qual for a resposta que lhe vier a ser dada,  acabará por beneficiar todos aqueles que se encontram numa situação semelhante à sua.  

Ou a austeridade é pura e simplesmente abandonada – de facto, austeridade e crescimento são realidades antagónicas – ou a austeridade se mantém e a Grécia colapsa dentro do euro decorrendo daí um rol de consequências não completamente imagináveis, mas dentre as quais seguramente se encontra o colapso do próprio euro.

A austeridade, como o povo grego já percebeu, certamente pela desenvoltura intelectual herdada dos seus longínquos antepassados, não é um conceito económico, mas um conceito ideológico. Por via dela se pretende impor um novo modelo de sociedade, baseado numa profunda alteração dos direitos decorrentes do capital e do trabalho, com vista a uma radical alteração da distribuição dos rendimentos. Tudo o que antes era certo do lado do trabalho, a começar pelo emprego, passou agora a ser aleatório, incerto e sem protecção, com base no argumento da inevitabilidade resultante da escassez de meios provocada pela crise, enquanto do lado do capital se passa exactamente o contrário: tudo o que antes tinha regras passou agora a ficar apenas subordinado à ganância suprema da maximização do lucro que não cessa de aumentar na exacta medida em que se apregoa a “inevitável” redução dos direitos e dos rendimentos de quem trabalha por força da tal escassez de meios.

Este combate ideológico que na Grécia tem dado passos muito seguros na direcção da mudança radical da situação que a todos nos oprime, apesar do terrorismo ideológico diariamente debitado pelas forças do status quo, só pode verdadeiramente ser travado por quem encare como consequência perfeitamente normal o regresso às respectivas moedas nacionais. Não se trata, insiste-se, de advogar o abandono do euro. Trata-se antes de advogar o abandono da política de austeridade sem medo que esse combate leve, como muito provavelmente levará, à extinção do euro e do muito mais que a ele está ligado.

Quem em Portugal se disporá a participar neste combate? Quem aceitará, em defesa de uma política contra a austeridade, travar uma luta sem receio que desse combate resulte a extinção do euro?

O mais grave que poderia acontecer é que a situação viesse a ser aproveitada pela direita impondo ela própria a mudança segundo os seus critérios e os seus “valores”. Hipótese não negligenciável, tendo em conta os amores acrisolados que, entre nós, em mais de uma esquerda, existem pelo euro…

4 comentários:

  1. Passo por aqui com frequência e já tinha reparado na qualidade dos textos afixados, este em especial. Com tão elevada qualidade e elegância quer da forma quer dos dos raciocínios, é pena decair tanto para o sectarismo e demagogia, desculpe, mas é assim. Alguém dizia que quando se faz muita luz sobre qualquer coisa cria-se, inevitavelmente, uma sombra tão forte que esconde totalmente as zonas em que o foco não incide (+- isto). Aquela de também não ser contra o euro desde que ..... Quem haveria de ser? A filosofia é muito interessante para o intelecto, mas muito do que se esta a passar é explicado, a quem a explicação interesse, pelas estatísticas, Balanças comerciais sua composição, evolução etc. Não é tudo mas ignorando-os onde se chega? Onde se quiser, claro!

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  2. Caro JM Correia Pinto,

    aceito, por assim dizer, os considerandos históricos, bem como a sua destreza argumentativa. No entanto, as conclusões, uma vez mais, parecem-me deixar a desejar.
    Digamos que se a resistência grega ao neo-absolutismo encabeçado formalmente pelo governo alemão, que ameaça as liberdades e direitos fundamentais em toda a Europa (Alemanha incluída), está a ter as repercussões e o alcance europeus e globais que V. será o primeiro a reconhecer, isso se deve TAMBÉM ao facto de a Grécia fazer parte da UE e da zona euro, e de, em vez de pura e simplesmente se retirar dessa arena, reconhecendo ao inimigo os seus direitos sobre ela, reivindicar nesse mesmo teatro um lugar diferente, bem como uma redefinição das regras do jogo. Sendo assim, é evidente - e há declarações oficiais e oficiosas que copiosa e directamente o confirmam - que, para os actuais interesses e forças neo-absolutistas da UE, é preferível que a Grécia decida reafirmar a "independência nacional" e a "soberania" plenas a que continue a reclamar o seu direito - que é também o dos restantes povos europeus - a participar em pé de igualdade e de parte inteira numa UE com novas regras, monetária, orçamental e constitucionalmente inregrada, derrotando a ofensiva absolutista da oligarquia. Uma saída imediata que comprometeria a hegemonia alemã e a redução das periferias (cada vez mais inclusivas) a Estados-vassalo passaria pela integração constitucional, política, orçamental, etc. da zona euro: um governo, um orçamento e uma carta de direitos e liberdades comuns. A outra, mais difícil e arriscada, seria o avanço nesse mesmo sentido federal, e nas mesmas bases, sem a Alemanha (e os que quisessem ser seus satélites) - no caso de esta recusar a plena integração federal da zona euro. Quanto às saídas "nacionalistas", o que podemos dizer é que, além dos riscos de guerra, soluções autoritárias, golpes militares, etc. que comportam, não alterariam no essencial as relações de força, nem permitiriam aos Estados-nação romper com as condições que os reduzem à subordinação e vassalagem perante as forças que efectivamente governam a região.

    Cordiais saudações democráticas

    msp

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  3. Li com muio interesse o seu texto.
    Tenho muita pena que o connhecimento, sobretudo de história, de filosofia, dos clássicos, esteja completamente ausente da classe política em geral.As análises políticas económica e sociais que hoje se ouvem e se leêm são tão imediatistas, tão ocas, que é um prazer ler um texto que contextualiza os acontecimentos em várias vertentes.No entanto,na minha modesta opinião, faltou na sua análise uma componente que analise objetivamente as causas desta péssima governança que nos trouxe até este estado de coisas.Não se podem desprezar, após a contextualização das políticas e a evolução dos povos, os pontos fracos,medíocres, para não utilizar outros adjectivos,dos políticos da nossa geração, seja qual for a sua ideologia. A má qualidade das decisões nestes últimos trinta anos,a falta de visão e de previsão.A democracia, que ainda é,sem dúvida, o melhor regime, está muito doente.

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  4. Obrigado a todos pelos simpáticos comentários.
    Quanto às causas da situação a que se chegou, elas já foram aqui analisadas múltiplas vezes desde que a situação na Grécia desencadeou a crise visível do euro. Independentemente dos erros (ou mesmo "malandragens" ocorrridas neste ou naquele país), há em todas as situações graves - Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha, Itália - uma causa comum da crise: a perda acentuada de competitividade das respectivas economias (que já eram bem desiguais entre si) potenciada pela concepção político-monetária do euro. E dai ao endividamento foi um pequeno passo, igualmente favorecido por taxas de juro anormalmente baixas para a "perfomance" das respecttivas economias.
    Só mesmo a legendária ignorância dos economistas em matéria de história do capitalismo e da política monetária poderia supor viável a existência de uma moeda única num contexto plural,relativamente soberano, sem direcção política centralizada e economicamente profundamente desigual.
    Quanto às observações de Serras Pereira, sempre estimulantes e persistentes,elas inserem-se num velho contencioso. Mais velho que qualquer um de nós...Vamos deixar que o tempo o resolva.

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