A COVARDIA E A
PERVERSIDADE DA “EUROPA”
Segundo relatam os meios de informação, a Troika mostrou-se
muita surpreendida pelo número de declarações de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral que o Tribunal Constitucional português já julgou
relativamente a medidas tomadas pelo Governo de Passos Coelho no quadro da
“importante reforma do Estado” em curso em Portugal.
A Troika mostra-se surpreendida com este “poder executivo” do
Tribunal português e Portas, pesaroso pelas eventuais consequências desta
atitude da Troika, não deixou de manifestar aos deputados, na Comissão
Parlamentar de acompanhamento do Programa de Ajustamento, as “interrogações e
preocupações” causadas externamente pelos acórdãos negativos daquele Tribunal.
Como no post
anterior se referia, este é o capitalismo dos nossos dias. Esta é a verdadeira
matriz do neoliberalismo. O que interessa são os interesses do capital, a sua
perpetuação e reprodução. O Estado de Direito não passa de uma simples figura
de retórica para usar quando convém e como convém.
Por outro lado, é por demais evidente que as instituições que
compõem a Troika estão ao serviço dos grandes interesses financeiros cuja
política desavergonhadamente defendem e impõem.
Alguma destas instituições, ou algum dos mangas-de-alpaca que
as integram teria a coragem de vir publicamente pôr em causa uma decisão, por
exemplo, do Tribunal Constitucional Alemão? Ou algum deles teria a coragem de
publicamente, ou mesmo em privado, pressionar aquele Tribunal ou os políticos
alemães com vista à criação de um clima que levasse à inversão do sentido da
jurisprudência para protecção e defesa de interesses inconfessáveis mas cujos
titulares toda a gente conhece?
Para quem não se lembra: o Tribunal Constitucional Alemão (TCA)
no acórdão em que apreciou o Tratado de Maastricht deixou bem claro que em
matéria de soberania monetária os poderes de que a Alemanha se despojava em benefício
da União Europeia não poderiam em caso algum ser ultrapassados. Dito juridicamente,
não poderiam ser objecto de uma interpretação extensiva ou aplicados
analogicamente a uma situação diversa, embora semelhante, à neles contemplada.
Qualquer norma comunitária que viesse a ser aprovada fora dos estritos termos
dos poderes alienados ou qualquer acto praticado pelos órgãos comunitários
(neste caso, a Comissão) decorrente de uma interpretação que não respeite os
estritos limites da transferência de soberania acordada não seriam reconhecidos pelo
ordenamento jurídico alemão. No que concretamente se refere ao papel do Banco
Central Europeu, o Tribunal foi muito claro: a função primordial do BCE, à qual
todas as demais estão subordinadas, é assegurar a estabilidade dos preços.
E porquê? Porque segundo a Lei Fundamental da Alemanha, na
interpretação que dela faz o TCA, a inflação corresponde a uma expropriação sem
indemnização. Situação que aquela Lei inequivocamente proíbe. Portanto, segundo aquele Tribunal, a
prossecução pelo BCE de uma política monetária inflacionista, para, por
exemplo, fomentar o crescimento económico, acarretaria uma expropriação das
poupanças e das pensões de reformados alemães.
Se o Tribunal Constitucional Alemão ameaça declarar
inconstitucional ou, dito de outro modo, inaplicável na Alemanha, ou, ainda de
outra maneira, contrária aos tratados, uma eventual actuação do BCE que promova a inflação,
como pode a Troika “surpreender-se” se o Tribunal Constitucional Português
declarar inconstitucional a norma legislativa que pura e simplesmente confisque
uma percentagem das pensões de reforma dos reformados da função pública?
E ficamos por aqui, porque se continuássemos a descrever a
jurisprudência do TCA relativamente aos tratados posteriores a Maastricht,
nomeadamente o de Lisboa, muito mais haveria a dizer quanto ao papel – até hoje
inatacável – do Tribunal Constitucional Alemão.
Aqueles que no estrangeiro, segundo Portas, estão preocupados
com o papel do nosso Tribunal Constitucional e se interrogam sobre a sua
actuação são seguramente os mesmos que nunca tiveram a coragem de publicamente
se interrogar sobre a latitude com que o TCA interpreta os seus poderes
relativamente ao direito comunitário. Ou seja, são a Europa na sua verdadeira e
autêntica expressão: covarde e perversa sempre pronta a atacar o mais fraco
para cair nas boas graças do mais forte.
Mas ninguém pode esquecer os que internamente tudo fazem para
ir ao encontro dos anseios da Troika ou que se antecipam a esses mesmos anseios
com propostas e medidas tendentes a cair nas suas boas graças. As medidas que
eles estão tomando são de uma gravidade extrema. Temos que lutar contra elas.
Temos de impedir que elas se consumem. Temos de nos defender delas por todos os
meios. Pelos mesmos meios com que a lei nos autoriza a defender dos ladrões
que nos assaltam a casa. Podemos impedi-los de consumar o roubo por via da
acção directa. É óbvio que eles terão de ser julgados, mas tal como acontece
com os ladrões vulgares só irão a julgamento aqueles que no legítimo exercício
dos nossos direitos não consigamos neutralizar em flagrante delito…para nos
defendermos!
É muito interessante a análise que fazes da lógica jurídica do TCA, que eu desconhecia. Tendia a considerar a filosofia do TCA apenas como reflexo do ordoliberalismo. Certamente que o é, mas essa da defesa da estabilidade dos preços como defesa dos direitos à estabilidade do rendimento é interessante.
ResponderEliminarDe como uma mentalidade conservadora pode às vezes basear-se em valores que nos permitem algum diálogo.
Poderá dizer-se que o argumento do TCA, de base economico-financeira, nas actuais circcunstâncias,defende vantagens para a Alemanha e prejuízos para outros. Bem, terá que se perguntar se o "ajustamento" nomeadamente pelo corte nominal nas pensões, é muito diferente do que se obtem por via da inflacção. E se o TC de Portugal pode opôr-se ao corte nominal porque é que o TCA não pode opôr-se ao mesmo objectivo por outra via, via esta expressamente vedada por tratados internacionais?
ResponderEliminarA esquerda e todos os que vêm na inflacção a varinha mágica esquecem, ou fingem que não conhecem, o cortejo de consequências da mesma na redistribuição de rendimento.É só, para quem não seja muito novo, fazer um pequeno esforço de memória....
A.M.