HÁ ALTERNATIVAS?
Desde há dez anos, desde a adesão à moeda única, que vivemos sob o espectro ameaçador do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que, como se sabe, não assegura qualquer espécie de crescimento, nem garante o emprego, mas apenas impõe, sob pena de sanções drásticas tanto da UE como dos endeusados “mercados”, a paridade das contas públicas, com um desvio no máximo de 3%.
Verdadeiramente ninguém sabe – ou quem sabe não o diz – se nos dez anos já decorridos alguma vez o pacto foi cumprido. Logo que o governo Guterres fugiu em debandada, iniciou-se explicitamente o ciclo da crise que até hoje não deixou de nos fustigar.
Primeiro, era o despesismo guterrista, as obras públicas, as despesas sem limites com Timor, as parcerias público-privadas, que esmifravam o erário público a troco de quase nada, as despesas militares em operações de paz ao estilo de pequena grande potência, o aumento exagerado da administração pública com multiplicação de tarefas e contratações desnecessárias, enfim, um sem número de acusações que o governo Durão Barroso não deixou de fazer para justificar a crise, imputando-a à herança. E, todavia, nunca se privatizou tanto como nos governos Guterres. Nunca como nessa época fontes incalculáveis de riqueza foram transferidas para a iniciativa privada, muitas vezes a preços de saldo. Monopólios, oligopólios tudo se criou a partir da riqueza de todos.
As contas públicas foram maquilhadas, Ferreira Leite inventou receitas extraordinárias onde elas não existiam (à custa de sacrifícios futuros), chegou a vender com garantia de reembolso “activos tóxicos fiscais”, eliminou serviços, ameaçou despedir funcionários ou remeteu para os excedentes os que supunha estarem em excesso e, todavia, o défice manteve-se.
Santana Lopes, acossado por dentro e por fora, decretou o fim da crise na esperança de encontrar algum alívio, mas o efeito boomerang dessa ousada decisão foi demolidor. Bagão Félix ainda “inventou” um orçamento para enganar (à grega) Bruxelas, mas, despedido logo a seguir, por dissolução da AR, tudo se descobriu a partir da inesperada perícia de Constâncio que, solicitado para auditar o défice das contas públicas, deu provas de uma diligência e de uma meticulosidade que, poucos meses depois, lhe começaram a falecer em assuntos bem mais graves da sua estrita competência.
E já com Sócrates ao leme recomeçou a via-sacra dos sacrifícios, das restrições, da eliminação de pequenas vantagens, enfim, de tudo o que, sendo rendimentos da arraia-miúda ou da arraia um pouquinho acima da miúda, permitiria, pelo seu número, obter grandes poupanças sem tocar ao de leve que fosse nos interesses dos bens instalados, política sempre apoiada pelo douto argumento de que o resultado insignificante desta opção não compensava os desgastes que a sua aplicação necessariamente acarretaria. E nesta senda "socialista" continuou durante quase toda a legislatura até que se aproximou a época eleitoral e com ela a crise originada pela ganância sem limites do capital financeiro e especulativo que de tudo fez dinheiro, tudo vendeu e transaccionou sem que entre a realidade e o papel que aparentemente a consubstanciava houvesse alguma coincidência.
Em época eleitoral convinha subir um pouquinho os salários, sem que tal aumento sequer correspondesse a um terço do rendimento real perdido nos últimos nove anos e decretar algumas medidas sociais mais abrangentes para acudir à enorme onda de desempregados que dia após dia foi alastrando em todo o país. E sem que se percebesse bem como nem porquê, o famoso défice que se dizia “controlado”, embora sem quaisquer efeitos positivos no bolso de quem mais contribuiu para o reduzir, dispara de novo e atinge números insuspeitados no tempo de Santana Lopes. Ou seja, não se regressou ao ponto de partida, recuou-se para um estádio anterior ao ponto de partida. E a via-sacra recomeçará de novo com os mesmos crucificados e seguramente com os mesmos resultados.
Assim sendo, algumas questões se impõem: a quem aproveita o equilíbrio das contas públicas? Que resultado é razoável esperar desse equilíbrio? A resposta está à vista, embora os defensores do recomeço do ciclo garantam que os efeitos esperados apenas se não verificaram…por causa da crise.
Este caminho sem saída fundado na enganosa ilusão de que lá mais para a frente tudo será compensado começa a não querer ser trilhado por muita gente. Na Grécia mais de metade da população opõe-se a ele e em Portugal só a estulta ilusão da alternância política poderá adiar uma conclusão semelhante.
A quem este caminho convém é fácil identificar. Convém antes de mais ao capital financeiro e especulativo que, além de ter sido escandalosamente poupado a qualquer tipo de contributo, ainda gozou da vantagem de receber de graça ou quase dinheiro do Estado ou angariado com a garantia do Estado para aplicar em operações altamente lucrativas, a maior parte delas estranhas à economia real. Convém também aos detentores do capital da economia real que buscam na baixa de salários e na exploração do trabalho o remédio para a sua falta de competitividade e convêm também aos altos rendimentos que tanto pela via dos impostos directos, como dos indirectos, estão sujeitos às mesmas taxas de quem ganha muitíssimo menos.
A verdade é que hoje quem acompanha os economistas que se dedicam ao estudo sério destas matérias, e não ao panfletário, como acontece entre nós, sabe que o euro, como moeda única, padece de alguns “pecados capitais” sem cuja eliminação não há penitência que os absolva. A saber:
A inexistente ou muito fraca mobilidade laboral entre os Estados-Membros; a ausência de política comum no domínio da fiscalidade, das relações de trabalho e de segurança social e a inexistência de um orçamento centralizado que permita transferência generosas para vencer assimetrias estruturais ou conjunturais susceptíveis de afectar o conjunto, algo impensável de acontecer actualmente com o exíguo orçamento de 1% do PIB, muitíssimo abaixo dos 25% do orçamento federal americano.
Porque os sacrifícios recaem sempre sobre os mesmos, porque resultam infrutíferos, porque há quem retire vantagens dos sacrifícios alheios, porque o euro padece de vícios estruturais sem cuja correcção não haverá crescimento nem emprego, este PEC, como qualquer outro concebido neste enquadramento político, terá consequências negativas para a grande maioria dos portugueses e deveria mesmo ser rejeitado como está acontecer na Grécia.
6 comentários:
Notavel e desassombrada analise que quero apludir. Quousque abutere patientia nostra?
jlsc
Uma vez mais, o autor expõe, da forma que já habituou quem por "aqui" passa, uma série de questões que, normalmente, toda a gente faz por nem pensar de tão incómodas que são. Agora há um ponto que eu não entendo: então as contas do Estado, assim como a do país e as nossas, não têm que estar equilibradas? Aliás, verdadeiramente as contas, sendo contas de Tesouraria, estão equilibradas, se as despesas forem superiores à receitas a diferença entre os recebimentos e pagamentos daí resultantes têm que ser "fisicamente" compensados com recebimentos de credores, dívida. Tem que ser assim, como acontece com a Balança de Pagamentos, como acontece com a nossa tesouraria pessoal. Penso, (não sou economista) que a diferença está em que antes podia essa falta de equilíbrio ser compensada com recurso à inflação. Haverá outras diferentes consequências ( emprego ...) mas, no contexto actual, não me parece que se possa banalizar a questão do endividamento, se não, voltamos aos anos 80 em que a maior fatia do Orçamento ia para juros, agora, pagos em euros que é quase como se o fossem em ouros
Tudo bem , uma boa síntese da governação das duas últimas décadas. Porque assisti por perto, não me esqueço da autêntica vertigem orçamentária de que foi acometido o PS durante Guterres, durante e após. Foi a continuação do clientelismo do PSD levado ao despudor. Lembro-me da moralização pregada por Guterres com a defesa dos concursos para dirigentes (D.Serv e D. de Divisão)e que se segui efectivamente: aprova-se legislação nesse sentido e, ao mesmo tempo, altera-se o estatuto jurídico dos Serviços pondo-os fora do alcance daquela legislação.O paroxismo atingiu-se na governação Sócrates com a extinção em massa de Direcções Gerais substituindo-as por enxames de "Institutos, I.Ps" e "Altas Autoridades". É chato nomear um boyzito Director Geral (3-4000€). Mas não fica mal ser presidente, ou um dos inúmeros vogais, de um I.P. ainda que abiche n vezes mais. Isto a propósito da austeridade nos gastos do Estado. Desculpem o pequeno aparte.
Notável análise político-literária.
J.
Totalmente de acordo,meu amigo.Muitas vezes tenho dito mais ou menos o mesmo,mas sem a tua elegância e poder de síntese.
Estive a ler o opúsculo de Antero de Quental "Causas da decadência dos povos Peninsulares nos últimos três séculos" e está lá tudo.Se não conheces aconselho.
Um abraço M.M.
Obrigado Margarida pelo comentário.
Conheço, claro.
Abraço
CP
Enviar um comentário