sexta-feira, 18 de março de 2016

GOLPE DE ESTADO EM CURSO NO BRASIL




ENTRETANTO, OS RATOS VÃO SALTANDO DO NAVIO
Mauro Pimentel/Folhapress

Não se trata de fechar os olhos à corrupção, endémica desde sempre em terras de Vera Cruz, mas de perceber que está em curso no Brasil um golpe de Estado atípico desde o dia em que foi anunciada a reeleição de Dilma Rousseff como Presidente da República Federativa do Brasil.

Elevada a democracia representativa à categoria de “dogma intangível” do sistema capitalista depois da Queda do Muro de Berlim, não é mais possível pensar nos dias de hoje em golpes de estado do velho tipo. Ou seja, de assalto ao poder preferentemente pelas forças armadas com vista ao derrube e silenciamento das forças populares, instaurando regimes autoritários ou mesmo autocráticos pelo tempo necessário e suficiente para “normalizar” a situação, entregando-a depois, devidamente expurgada dos elementos “atípicos”, aos seus “verdadeiros donos” – a classe possidente e seus acólitos e sequazes.

Hoje os métodos são muito mais sofisticados, mais eficazes, pautam-se pela “legitimidade democrática”, são unanimemente apoiados pela comunicação social e reúnem todas as condições para gozarem de um relativo consenso social, inclusive das camadas da população contra as quais preferentemente se dirigem.

Para compreendermos esta nova modalidade de “golpe de estado”, comecemos pelo que se passa no espaço da União Europeia onde o que está acontecendo, sendo embora muito diferente do que está ocorrendo no Brasil, é suficientemente elucidativo para a partir da sua análise se compreender como na realidade a democracia não passa hoje de uma vaga figura de retórica na medida em que não há vontade popular, por mais expressiva que seja, com capacidade para alterar o rumo predeterminado de condução da vida política. Foi o que se passou na Grécia, é o que se está a passar entre nós, onde também está em curso um golpe de estado de baixa intensidade destinado a inviabilizar qualquer alteração da situação política juridicamente plasmada em tratados impostos pelas potências dominantes. Golpe de estado que visa boicotar qualquer alternativa, quer mediante a substituição de quem governa, quer, pior ainda, obrigando quem está no governo a fazer o que realmente não quer.

De facto, não é mais necessário recorrer às polícias políticas, à tortura e às violações grosseiras dos direitos fundamentais para que os objectivos dos que não aceitam a divergência sejam alcançados. Basta que se “assolem” os mercados contra os dissidentes, que se mobilizem as agências de rating, se anunciem perigos e dramas iminentes que a comunicação social se encarregará de fazer o resto, amplificando o que possa não estar a correr bem e criando, mediante uma gigantesca manipulação da realidade, as condições ideais para que o resultado pretendido se alcance por si, naturalmente, sem a aparente interferência de qualquer elemento anómalo, repondo, assim, muito mais rapidamente do que se poderia supor, a situação anterior.

No Brasil, a situação é diferente, o contexto não é semelhante ao europeu, mas os objectivos, embora recorrendo a instrumentos em parte diferentes, são exactamente os mesmos e visam os mesmos fins.

O que no Brasil está em jogo é a tentativa de regresso ao poder de uma classe, lato sensu entendida, que dele foi política e eleitoralmente desapossada há quase década e meia e que agora, tirando partido de várias dificuldades conjunturais, não aceita permanecer afastada por mais tempo do poder, principalmente numa época em que essas dificuldades e fragilidades têm vindo a ser dramaticamente expostas sem que tenha havido no plano estritamente político, da parte da esquerda, uma resposta suficientemente capaz de refazer a grande base consensual que tem servido de apoio ao poder agora contestado.

Neste processo sinuoso a corrupção e a politização do poder judicial têm desempenhando um papel fundamental no golpe de estado em curso. A corrupção que tem servido de base sólida ao golpe de estado não passa de um mero pretexto, habilmente esgrimido pela comunicação social e pelo poder judicial politicamente empenhado na consumação do golpe.

Realmente num país em que, além das investigações que têm Dilma e Lula como alvos -  a primeira com base em suspeita de financiamento ilegal da campanha e, ao que parece, de passividade perante o que se passava na Petrobras enquanto presidente da empresa, e o segundo por suspeita de aproveitamento directo de vantagens concedidas por empresas -, estão implicados em graves actos de corrupção o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o Presidente do Senado, Renan Calheiros, o Vice-Presidente da República, Michel Temer e o Senador Aécio Neves, candidato à Presidência da República na última eleição, além de muitos outros que ocupam ou já ocuparam cargos de grande relevância política, a incidência exclusiva das acusações de corrupção, baseadas em simples suspeitas, em dois maiores nomes da política brasileira da actualidade, não pode deixar de entender-se como um pretexto – um excelente e quase incontestável pretexto – para atingir os fins que pela via puramente eleitoral se não conseguem alcançar ou se tornam cada vez mais problemáticos.

Daí que o golpe de estado passe pela destituição de Dilma e pela prisão de Lula. Embora não seja despiciendo o papel das instituições políticas propriamente ditas, nomeadamente os partidos políticos, o golpe para ter êxito necessita de uma intervenção muito activa do poder judicial como instrumento de acção política. É isso o que se está a passar. Apesar de todas as regalias e mordomias de que goza, o poder judicial constituído maioritariamente por elementos provenientes da classe média e da classe média alta, eles próprios integrantes da camada superior de rendimentos, embora não tenha sido directamente afectado pela política dos governos Lula e Dilma, assiste em pânico à crise brasileira na qual a desvalorização acentuada do real se traduz para essa camada numa diminuição do seu nível de vida, nomeadamente ou mesmo exclusivamente em tudo o que diga respeito a produtos importados e a viagens ao estrangeiro.

Esta classe média alta é bem representativa do pânico que se apossou da classe média brasileira que vê no actual governo a causa directa e próxima da perda indirecta de parte das suas regalias e vantagens. Esta percepção, aliada à imputação de todos os males à corrupção, da qual, à sua medida e no exercício das suas funções, ela própria tira vantagens, e a extrema judicialização da vida política brasileira, a ponto de ofender ostensivamente em muitos casos o princípio da separação de poderes, constitui o caldo de cultura que explica a acção dos Moros e dos Itagibas Catta Pretas.

O impeachment de Dilma que antes das férias de Janeiro parecia condenado ao insucesso ganhou nova força com as investigações a Lula. Sendo o objectivo fundamental da direita a tomada do poder, o anúncio posto a correr de que o ex-Presidente poderia recandidatar-se em 2018, facto posteriormente confirmado pelo próprio Lula, fez disparar todos os alarmes nas hostes da direita. Embora o Lula de 2018 já não seja, eleitoralmente falando, o Lula de 2002, ele continua a representar um sério obstáculo à tomada do poder pela direita, o que, agravado pela suspeita de uma possível radicalização das políticas de redistribuição, levou a que por todos os meios ao seu alcance a direita tente impedir a sua reeleição.

Colocada perante este quadro, a direita só vê um caminho para atingir os seus objectivos: destituir Dilma e desacreditar Lula, prendendo-o.

A destituição de Dilma, impensável no quadro político europeu, onde o novo tipo de “golpes” passa por manobras muito mais subtis, é perfeitamente possível num sistema partidário como o brasileiro, no qual a “base aliada governista” é sempre frágil, instável, volátil, traiçoeira e muito permeável a todo o tipo de promessas de quem quer chegar ao poder. E assim, não é de estranhar que os aliados do PT, com excepção do PC do B, já estejam a marcar reuniões plenárias para decidir se mantém ou não o apoio ao governo (caso do PMDB e do PP).

Com Dilma destituída ou em vias de o poder ser, passa a haver todas as condições para consumar o golpe, tanto mais que, contrariamente ao que se passa na generalidade dos países, no Brasil os ex-Presidentes não gozam de foro especial por crimes praticados no exercício de funções. O que faz com que Lula, com base em vagas suspeitas e em factos não provados nem devidamente investigados, fique completamente à mercê de um qualquer magistrado judicial brasileiro, de um qualquer estado da União, desde que politizado e instrumentalizado pelos objectivos da oposição, da qual aliás faz parte, podendo sofrer todo o tipo de humilhações e vexames, como a prisão preventiva, decretada com o exclusivo propósito político de inviabilizar a sua candidatura à presidência da República.

Tudo o que está em curso aponta inequivocamente no sentido de um golpe que há pressa, muita pressa, em consumar. Como pode admitir-se que um magistrado publique as escutas telefónicas de Lula e da própria Presidente? Escutas que, além de ilegais, são selectivamente publicadas com o objectivo de minar a base aliada do Governo, já muito instabilizada pela própria conjuntura, e de criar fricções com o Supremo Tribunal. Claro que se trata de um comportamento inadmissível e ilegal. Mas não é isso o que entende a direita brasileira, para qual o que interessa é o conteúdo das escutas e o resultado que por via delas se pretende alcançar. Essa a democracia dos Aécio Neves e dos Fernando Henrique Cardozo.

Foi exactamente para evitar esta instrumentalização da Justiça, a funcionar como braço armado da política de direita, que Lula procurou esquivar-se à acção política de magistrados judiciais, mediante a tomada de posse de um lugar que lhe garantisse um foro com um mínimo de imparcialidade.

Não é certamente a solução politicamente mais defensável em termos absolutos. O problema, porém, é saber a que outra solução poderia recorrer quando se está perante uma inequívoca instrumentalização da Justiça. É uma actuação em verdadeiro estado de necessidade, ditada por um contexto contra o qual é muitíssimo difícil lutar por completa ausência de armas iguais. Realmente, não havia alternativa. Com a comunicação social completamente hostil, nomeadamente a rede Globo, de pouco valeria a Lula continuar a proferir declarações de inocência rapidamente contrariadas por uma gigantesca campanha de desinformação insusceptível de ser contrariada por falta de recursos adequados.

O caminho escolhido acabou por ser a ocupação política de um lugar que lhe permitisse esperar o tal mínimo de imparcialidade do poder judicial. Ora, isso só poderia ser conseguido desde que o lugar a ocupar lhe garantisse um foro especial. É neste quadro que tem de ser vista a sua tomada de posse. É um acto que não o favorece politicamente, que inclusive lhe retira alguma credibilidade política, mas que era no actual contexto da política brasileira a única via que lhe poderia assegurar alguma objectividade e imparcialidade de julgamento.

Se dúvidas houvesse bastaria atentar tanto no posicionamento político do autor do despacho que suspende a posse de Lula, como no seu teor. De facto, é inacreditável, por um lado, como pode o judiciário interferir num acto da exclusiva competência do Executivo e, por outro, como pode um magistrado, com base numa simples opinião, sem qualquer sustentação no plano jurídico, proferir um despacho minutos depois da tomada de posse e esse acto ser acatado pelos media e pelos políticos que enchem a boca em democracia e anticorrupção como se do acto mais natural se tratasse.

O que se passa no Brasil, tendo a corrupção como simples pretexto ou utilizando-a como pano de fundo para a consumação de um golpe e o que se passa na Europa quando algum Governo periférico da União Europeia ousa desafiar o “ortodoxia económica” dominante, levanta mais uma vez a questão dos limites da democracia representativa. E este é um problema para o qual a esquerda não pode fechar os olhos nem tão-pouco acreditar que uma forma de governo institucionalizada pela burguesia e transformada em dogma político depois da consumação da sua hegemonia, possa por ela, pela esquerda, ser adoptada como valor universal irrecusável com as características e no contexto em que actualmente actua.   

Em tempo: já depois de escrito este post, o STJ suspendou a suspensão da tomada de posse, passando Lula a ser um ministro de pleno direito. Mas que ninguém se iluda: o golpe continua.


sexta-feira, 11 de março de 2016

MARCELO E OS SEUS DISCURSOS




ESBOÇO DE ANÁLISE DE UM PENSAMENTO POLITICO-CULTURAL



Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, tem pelo seu passado de comentador político televisivo, pelo seu estilo de comunicador, pela sua própria personalidade e pelo Presidente que o antecedeu todas as condições para ser amado pelo povo português.

E isso está a verificar-se e vai certamente intensificar-se com o tempo. Para além daquilo que nele já apontava nesse sentido, a informalidade da comunicação, o modo simples como se exprime, a simpatia que irradia nos contactos pessoais, o curriculum universitário que sempre encerra aos olhos dos portugueses um saber que outros não têm, Marcelo teve a enorme vantagem de ter sido antecedido por Aníbal Cavaco Silva.

Cavaco Silva, outro caso de estudo, porque tendo sido o político que em Portugal mais tempo esteve no poder por via eleitoral, ostenta a inacreditável particularidade de ter ganho cinco eleições, quatro delas por maioria absoluta, sem que ninguém tenha votado nele. Dir-se-ia que os portugueses se revêem nele, mas que simultaneamente se envergonham dele. É um pouco como aqueles casamentos em que a noiva era escolhida por conveniência, mas que depois de casada nunca mais era mostrada pelo marido. Não porque a pudessem cobiçar, mas porque era feia.

Marcelo teve essa vantagem. A vantagem de suceder a um presidente sectário, rancoroso, mesquinho, ultra-convencido das suas capacidades, culturalmente menor e incapaz de perceber a diferença.

Enquanto Cavaco é a expressão dura de um fascismo cultural, que informa todo o seu pensamento político, Marcelo é a expressão doce de um “fascismo” cultural pretensamente consensual ainda muito impregnado na sociedade portuguesa.

Nem sabemos se Marcelo tem verdadeira consciência dos pressupostos culturais em que assenta a sua acção politica. Certamente que Marcelo se revê nos valores por que pauta politicamente a sua conduta, mas é muito duvidoso que alguma vez tenha empreendido uma verdadeira análise crítica desses valores. Mais do que valores são “sentimentos que o ligam à terra” e que o fazem ser como é: “ saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, o milagre de Ourique”. Imagine-se, “O milagre de Ourique!”.

É essa “doçura no falar e essa generosidade na inclusão” que o leva a citar Mouzinho de Albuquerque (cujo nome omite), como grande herói nacional, sem sequer se dar conta que ligada às campanhas de África está uma das páginas mais dramáticas dos povos coloniais, mais dramática do que a própria escravatura. É esse “fascismo cultural doce” que o leva a citar esses feitos gloriosos dos portugueses perante os descendentes directos das vítimas como se da coisa mais natural se tratasse. Tudo isto, porque no pensamento de Marcelo nem sequer aflora o papel da vítima, tal é a pretensa consensualidade da acção em que assenta o seu discurso. O que nele escondidamente está presente é a  capacidade de os portugueses terem sabido marcar pontos – e que pontos – perante a pérfida Albion.

E é tudo assim. Ambos os discursos que até hoje fez, o de ontem, no Parlamento, e o de hoje, ao corpo diplomático, assentam nos mesmos pressupostos, nesta grandeza pátria acriticamente assumida e outras vezes propositadamente omitida por conveniência política, como é o caso do nosso relacionamento histórico com Espanha.

Dirão alguns dos que lêem estas linhas: não é função do Presidente da República criar atritos com terceiros onde eles podem ser evitados; e é função do Presidente da República estimular o sentimento pátrio e o amor-próprio dos portugueses. Certamente. Esses são objectivos que ninguém com um mínimo de senso contestará. O que se contesta, ou pode contestar, é o modo de chegar a eles; é o pressuposto ideológico em que se fundamentam.

Politicamente, não há nada a acrescentar ao que aqui foi escrito, em 25 de Janeiro, no comentário à vitória eleitoral. O que então se disse, e que a seguir se transcreve, parece constituir, por o que agora voltou a ser dito, o verdadeiro objectivo político de Marcelo.

“(…) Interpretando correctamente o discurso da vitória, um discurso que Marcelo teve a preocupação de escrever e de ler para se não deixar levar pela emoção do momento, o que dele ressalta é a vontade política de contribuir, através da sua presidência, para a “existência” de um país que seja governado ao centro, seja pelo PS seja pelo PSD. Por outras palavras, por um país assente no compromisso das grandes forças do centro político relativamente a todas as questões fundamentais da governação. Um país que precisa, para que este desiderato se materialize, da substituição das lideranças do PS e do PSD por lideranças capazes de interpretar e pôr politicamente em prática aquilo que Marcelo entende ser a vontade do país real.

Quando Marcelo apela ao compromisso e ao entendimento, como frequentemente ontem fez no discurso da vitória, não se está a referir, como é óbvio, ao compromisso entre as forças de esquerda, nem à vontade de trazer para a área da governação forças que desde o primeiro governo constitucional dela têm estado arredadas. Pelo contrário, o que Marcelo pretende é reforçar o entendimento entre dois grandes partidos do centro, um do centro esquerda, outro do centro direita. Para isso vai ter de apoiar todas as “conspirações” que num e noutro lado visem derrubar as actuais lideranças”.

Também sob este aspecto, Marcelo se demarca ostensivamente de Cavaco. Cavaco, à bruta, contra a Constituição e contra a democracia, não teve pejo em afirmar raivosa e rancorosamente que esses tipos de esquerda, esses subversivos inúteis e perigosos não têm lugar na nossa “democracia”, embora se tenha depois visto obrigado a deglutir o enorme sapo que levou atravessado na garganta na sua reforma política para a Travessa do Possolo.

Marcelo jamais diria ou dirá o que Cavaco afirmou. Marcelo também acha que a solução encontrada não é boa, mas como tem outra noção do tempo político, entende inteligentemente que não tem de se expor, tanto mais que há quem esteja preparado para fazer esse trabalho por ele. Trabalho que aliás já começou e somente não está concluído porque a “questão espanhola” ainda não está fechada.

Como também aqui já dissemos, o nosso próximo futuro está intimamente ligado à solução que vier a ser encontrada para a crise espanhola.

Para concluir a apreciação dos discursos de Marcelo, lembrar apenas que depois de toda a “doçura patriótica” derramada nos dois discursos, nem uma palavra de crítica à ignominiosa chantagem da Comissão Europeia, da “Europa”, sobre Portugal exercida por razões retintamente ideológicas, apesar de as divergências ideológicas não respeitarem a um verdadeiro confronto de sistemas, mas apenas e só a duas formas diferentes de encarar a gestão do capitalismo! Mas aqui fala mais alto a voz dos fundamentalistas, que só vêem uma forma eficaz de calar a dissidência: eliminando os cismáticos!

Das reacções aos discursos de Marcelo, nomeadamente das reacções ao discurso de posse, nem uma palavra para já, por razões óbvias, sem deixar de reconhecer que no actual contexto não seria fácil, nem popular, manter distâncias.




sexta-feira, 4 de março de 2016

A SITUAÇÃO POLÍTICA EM ESPANHA




REFLEXOS DA SITUAÇÃO ESPANHOLA EM PORTUGAL
El secretario general de Podemos, Pablo Iglesias, aplaude en el...

Como se previa, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), não obstante as suas origens (longínquas, é certo), não teve a coragem política necessária para se afastar do pastoso centro político espanhol e lograr a formação de um governo que pudesse marcar uma nova era política para a Espanha, quiçá, para a própria Europa.

Não é à toa que se frequentemente se diz que, às vezes, as aparências iludem. À partida, de todos os partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas da Europa, aquele que, não apenas pelas suas origens mas também pelo seu passado político, aparentemente estava mais longe de procurar alcançar um entendimento com as forças de esquerda era sem dúvida o Partido Socialista Português. E, todavia, para espanto da Europa e raiva incontida da direita portuguesa, acabou por ser ele a viabilizar esse acordo e a pôr em prática uma política que, embora não constitua uma ruptura declarada com as políticas impostas por “Bruxelas”, nem por isso deixa de constituir, num quadro político marcado pela permanente ameaça e por chantagens de toda a ordem, um sinal inequívoco de desalinhamento e discordância da ortodoxia dominante.

Obviamente, que o êxito desta política fica seriamente comprometido com o impasse político espanhol. Ninguém pense que será pelo agudizar da crise europeia resultante do agravamento dos fluxos migratórios e de refugiados e da incerteza sobre a continuidade do Reino Unido na União Europeia, eventualmente de mais dois ou três países se o referendo britânico decidir pela separação, que as coisas ficarão politicamente mais fáceis para os que ousam discordar e divergir. Pelo contrário, será exactamente nos momentos mais críticos que a ortodoxia dominante no plano económico e financeiro tenderá a impor-se com mais rigidez e sem contemplações pelos mais frágeis.

Essa a razão por que para Portugal era fundamental uma solução política em Espanha que, no mínimo, acompanhasse o “desalinhamento” português.

Isso, porém, não vai acontecer. As esperanças que em certos sectores chegaram a despontar, quando Pedro Sanchez fez votar o princípio de as negociações para a formação do Governo serem aprovadas por referendo dos militantes socialistas, cedo se desvaneceram mal se tornou claro que a manobra política de Sanchez, ao aceitar a investidura real, tinha fundamentalmente em vista pô-lo a coberto de uma mais que provável substituição decidida por congresso antes da realização de novas eleições gerais.

Este objectivo já Pedro Sanchez o conseguiu. Quando a 2 de Maio próximo o Rei dissolver a Câmara e marcar novas eleições para Julho será com Pedro Sanchez, como Secretário-Geral, que o PSOE concorrerá a estas eleições.

Só que tudo o resto fica por decidir, se o novo cenário pós eleitoral não for, como se supõe que não será, muito diferente do actual.

Muito provavelmente, Rajoy continuará à frente do PP, apesar ele constituir hoje o mais evidente sinal de impasse de qualquer solução política ao centro. Rajoy, durante cuja chefia o partido se atulhou em corrupção, entende, tal como Passos cá, que ganhou as eleições, prevalecendo-se desse facto para não deixar pôr termo a uma carreira política que dificilmente terá futuro.

Não sendo crível o regresso a curto prazo do bipartidismo em Espanha, os Ciudadanos continuarão a insistir na saída de Rajoy da cena política como condição indispensável a uma solução política ao centro, seja ela com o PSOE e abstenção do PP, seja tripartida, seja com o PP e abstenção do PSOE, embora as preferências deste emergente partido político de centro direita vão claramente no sentido de um governo tripartido.

Sem grandes possibilidades de continuar a “jogar” ficará certamente Pedro Sanchez. Alcançado o seu objectivo número um – manter-se no cargo -, vai ter de apresentar ao eleitorado, uma, de duas propostas: ou a insistência numa solução tripartida (com Ciudadanos e Podemos) e voto contra qualquer solução que entregue a chefia do Governo ao PP – solução que dificilmente terá viabilidade pelas mesmas razões que hoje também não teve; ou busca de uma solução à esquerda com Podemos e outros partidos, hipótese em que ninguém acredita não apenas por força da posição marcadamente à direita de uma parte muito significativa dos socialistas, mas também pelo clima de crispação propositadamente mantido por Iglesias como resposta aos sectores mais conservadores do PSOE.

É deste previsível impasse que Pablo Iglesias procurará retirar os melhores dividendos. De pouco valerá a Sanchez esgrimir o argumento de que foi o Podemos que impediu, juntamente com a direita, um Governo do PSOE. Ou que terá sido a arrogância de Iglesias a inviabilizar esse acordo. Será muito mais fácil a Iglesias demonstrar que Sanchez não tinha “autorização” do partido para se entender com a esquerda para daí concluir o óbvio: que sem o Podemos não há solução alternativa em Espanha nem qualquer hipótese de governo de esquerda.

A Espanha tem dois problemas de difícil solução que não deixarão de existir por não serem directamente encarados na situação em que agora se encontram. Um, é o problema territorial. Esse problema não se agudiza com a democracia como alguns tendem a fazer crer. Esse problema agudiza-se com as crises (com a crise actual, como noutras eras se agudizou com outras crises) e só pode ser resolvido democraticamente. Resolvê-lo democraticamente é devolver aos directamente interessados o direito a decidir. O PSOE está tão longe de aceitar esta solução quanto o PP, daí a grande dificuldade de um entendimento à esquerda. O outro, é a busca de uma solução política verdadeiramente alternativa; uma solução que inicie um processo de rompimento com as políticas impostas por Bruxelas e simultaneamente, no plano puramente interno, crie condições para um verdadeiro combate à corrupção – autêntico flagelo da sociedade espanhola – e promova a coesão social tão profundamente abalada nestes últimos seis anos.

Para a resolução deste problema o PSOE poderia, sob a actual direcção, dar um valioso contributo se não estivesse, como está, verdadeiramente atado de pés e mãos pelo problema territorial.

Em conclusão: as coisas não estão nada fáceis para a Espanha nem seguramente irão ficar nos tempos mais próximos. E Portugal sofrerá com isso...