sexta-feira, 2 de outubro de 2020

TEXTOS PUBLICADOS NO FACEBOOK EM JUNHO

PARA MEMÓRIA FUTURA 



RTP

A RTP escolhe a dedo os seus correspondentes no estrangeiro. Este que está na América é incapaz de contar o que se passa. Acantonou - se numa avenida de Minneapolis e está manifestamente ansioso por começar a atacar os manifestantes

Bolas, é demais!

20/06/02

CENTENO

Querem saber quem é o Centeno como Ministro das Finanças? Leiam o programa económico com que o PS se apresentou às eleições em 2015 e logo perceberão o que vale o Centeno politicamente.

Os grandes ministros das finanças da primeira legislatura de António Costa chamam-se Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, apesar de sistematicamente travados por Centeno nas cativações.

Por último, Centeno mostrou a faceta mais lamentável da sua personalidade política durante a pandemia - uma covardia política como raramente se vê.

20/06/09

A INDEPENDÊNCIA DO BANCO DE PORTUGAL

Já aqui (no fb), e no Politeia, dissertamos longamente sobre a “independência” das entidades reguladoras. Não vamos, por isso, voltar a desenvolver o tema. Vamos apenas recordar que a “independência” das autoridades reguladoras é uma invenção do neoliberalismo destinada a afastar o Estado da defesa do interesse geral, colocando-o ficticiamente numa posição de igualdade relativamente aos privados que dominam as empresas cujas actividades as entidades reguladoras supostamente regulam. Ficticiamente, já que na realidade o que acontece é a quase completa subalternização do Estado relativamente aos interesses do capital.

Por isso, nos não parece pedagogicamente aconselhável discutir a nomeação do próximo governador do Banco de Portugal em função da sua maior ou menor proximidade com o partido X ou Y. De facto, a questão não está em saber se Carlos Costa não servia porque estava muito ligado ao governo de Passos Coelho ou se Centeno também não pode ocupar essas funções por antes ter desempenhado as de Ministro das Finanças. A questão está na falsa independência do Banco de Portugal e na desresponsabilização do governo por tudo o que nele se passa com pesadas consequências para os cidadãos em geral.

Como o tema é demasiado importante na governação de qualquer país, ele deve ser inequivocamente apresentado pelos partidos políticos que rejeitam o neoliberalismo bem como a sua institucionalização pela via dos múltiplos expedientes de que este se serve para afastar o Estado do papel que lhe compete – a defesa do interesse geral tal como o governo o interpreta em programas eleitoralmente sufragados pela via eleitoral. Embora não seja possível alterar os estatutos do Banco de Portugal nem os do BCE por via de declarações políticas, é possível contudo defender politicamente uma actuação dos bancos centrais que aponte no sentido de promover o desenvolvimento e o emprego, como interesses de primordial importância para o Estado enquanto representante do interesse geral, em vez de se aceitar passivamente uma actuação que tenha exclusivamente em vista a “estabilidade dos preços” e a defesa do interesse dos banqueiros, como desde há cerca de trinta anos tem acontecido por toda a União Europeia.

O Banco Central não existe para servir os bancos nem o capital financeiro. O Banco Central existe para defender e pôr em prática a política do governo no sector financeiro e na economia em geral. Somente por esta via se poderá garantir, nos quadros do sistema, a democraticidade da sua actuação. Erigindo-o em poder independente, politicamente irresponsável, está aberta a porta por onde tudo pode entrar sem que ninguém seja responsável pelo que entra. E foi assim que no curto espaço de 20 anos já entrou uma grande crise financeira cujas consequências se tem feito pesadamente sentir até hoje no “bolso” dos cidadãos.

20/06/09

A RTP3

Ontem à noite ou talvez já hoje de madrugada liguei a televisão. Estava na RTP 3. Joaquim Fidalgo comentava os títulos da imprensa de hoje. Falava do arquivamento do processo “Olof Palme” que, segundo o Ministério Público da Suécia, terá sido assassinado por um desenhador gráfico que se suicidou há 20 anos. Falava sobre a hipótese de ter havido ou não conspiração, sobre a hipótese de poder estar implicado algum dos inimigos políticos de Palme, ao rol dos quais logo foram acrescentados, com toda a convicção, pela fulana que tem a seu cargo o noticiário da noite, “a União Soviética e os países de Leste”. Um pouco admirado com aquela imputação, Joaquim Fidalgo limitou-se a dizer: “Muito provavelmente a extrema-direita sueca”.

Chamo a atenção deste episódio a título de exemplo e não tanto pelas eventuais consequências do comentário da senhora locutora. Esta fulana, cujo nome desconheço, mas que de há muito identifico como uma das fascistoides que pululam na RTP, é a mesma que há dois meses ou três meses ainda o Governo não tinha acabado de enumerar as medidas que havia tomado para tentar evitar a propagação da pandemia, já estava a desmerecer de tudo o que acabava de ser enunciado e a predizer as piores consequências para os portugueses, com a saúde dos quais ele se estará positivamente nas tintas, apenas se servindo deles como arma política contra todos que não partilham a sua cartilha política.

É de facto inadmissível que na RTP haja entre os seus funcionários quem se julgue dono do programa ou dos programas que tem a seu cargo com completo alheamento do verdadeiro conteúdo da função que desempenha e dos interesses que importa servir e defender. E mais estranho é ainda que o Governo se mantenha completamente à margem do que lá se passa para já não falar na ERC cuja credibilidade é ZERO! Escudando-se na falsa liberdade de imprensa, como algo de que se podem apropriar para propagandear a sua agenda política, esta gente da RTP sabe explorar como ninguém o preconceito que infesta e tolhe a consciência dos que se sentem incapazes de intervir numa área onde qualquer intervenção será sempre qualificada de censura por quem viola os seus deveres de funcionário e desrespeita o seu código deontológico por mais legítima e justificada que essa intervenção seja.

20/06/11

SOBRE AS ESTÁTUAS

Apenas isto: lembro-me perfeitamente do entusiasmo com que as televisões e a imprensa ocidental, os jornalistas e comentadores acompanharam a destruição ou desmantelamento das estátuas na extinta URSS e nos países do leste europeu.

Apreciaram muito…

20/06/13

ALMIRANTE TENREIRO

Lembram-se de Tenreiro? Os mais velhos, certamente. O Almirante Tenreiro era um amigo de Salazar, apoiante da ditadura, que durante o "Estado Novo" era identificado com o "tachista" típico do regime, tantos e tão variados eram os lugares que ocupava, além da actividade empresarial que também desempenhava.

Nessa altura nós, nos verdes anos da nossa juventude, acreditávamos que um exemplo daqueles só poderia existir na ditadura fascista de Salazar ou de outra mais ou menos parecida, como a de Franco, por exemplo.

Hoje, 46 anos depois do derrube da ditadura, na madurez da nossa idade, certamente que muitos dirão:

"Olhe que não. Isso também pode acontecer em democracia...E não há comparação possível entre as prebendas de ontem e as de hoje."

A que propósito me teria lembrado disto?

20/06/13

O CONTINENTE AMERICANO

Nada no mundo se assemelha ao continente americano. É um continente diferente de todos os outros. Certamente, que por toda a parte houve migrações O homem de que hoje descendemos terá nascido em África e daí migrou para todo o planeta. Ou mesmo que tenha nascido em vários outros lugares não ficou nos lugares onde nasceu.

Só que tudo isto se perde na voragem e na memória dos tempos, a ponto de, quando hoje se pretende fazer a reconstituição dessas migrações, haver mais dúvidas do que certezas.

No continente americano, com a configuração que hoje tem, o que se passou aconteceu "ontem", na Idade Moderna, desde há 500 anos para cá.

E o que se passou, resume-se em três palavras: conquista, extermínio e escravatura. E isto não tem paralelo com o que passou a partir daquela mesma data em qualquer dos outros dois grandes continentes: a Ásia e a África.

Portanto, os que hoje lá vivem - e eles são, em larga medida, os descendentes dos "fizeram" aquele continente - vão ter muito que penar se quiserem reconstituir a "pureza original" e nunca o irão conseguir por mais voltas que dêem ou por mais estátuas que derrubem. Mais lhes vale aceitar a História e construir um futuro que vá, gradual ou aceleradamente, esbatendo, até a erradicar, a pesadíssima herança dessa História, concedendo ao que resta dos povos originários e às centenas de milhões de descendentes de escravos uma verdadeira cidadania que elimine de vez as raízes da sociedade dual em que a maior parte do continente, para não dizer a totalidade, continua hoje a viver.

Esses descendentes dos conquistadores, exterminadores e esclavagistas, que se sentem envergonhados com a História do continente em que vivem, que juntem as suas forças aos milhões de enjeitados da fortuna, e construam uma sociedade nova que elimine de vez as raízes e as consequências da sociedade esclavagista em que nasceram e em que foram criados e educados para a perpetuar. Esse trabalho continua por fazer, tal o peso e a força das oligarquias dominantes, não obstante os esforços regularmente repetidos dos oprimidos, que de tempos a tempos parecem emergir com a força suficiente para iniciar essa mudança, mas que, ou por erros próprios ou por perfídia alheia, regularmente soçobram, e tudo volta à estaca zero sem se consolidar a parte mais importante do que parecia conquistado.

Aprender com a História significa tornar irreversíveis as conquistas dessa luta e isso, já se percebeu, não vai ser possível enquanto não for desmantelado o poder das oligarquias dominantes.

Façam isso e deixem as estátuas para mais tarde, para quando saírem vitoriosos dessa luta, essa sim, verdadeiramente refundadora do continente americano.

20/06/13

OS TELEJORNAIS

Hoje, fui vendo os três jornais da noite, saltitando de um para outro.

A primeira conclusão que se retira, mais ou menos consensual, creio, é a de que toda a informação televisiva tem a marca de direita. Não será, nem nada que se pareça, um direita extrema, mas é a de uma direita mansa que contextualiza factos e os envolve em explicações que tendem a passar por naturais, óbvias, como se não houvesse outras. É uma espécie de um estilo salazarista modernizado. É essa base.

E a segunda conclusão é a de que a Esquerda não tem uma única voz sua nos telejornais. Pode episódicamente aparecer alguém de esquerda relacionado com a noticia, como não poderia deixar de ser, a emitir uma opinião ou a defender uma posição, mas voz, voz mesmo com direito a assento, não há. Quanto muito alguém de centro ou do chamado centro esquerda, mas de esquerda, não.

O que não deixa de ser espantoso tendo em conta o número de pessoas que se situa nesse quadrante.

A CORRUPÇÃO EM PORTUGAL

Quando em Portugal há suspeitas de corrupção de pessoas ou entidades importantes, alicerçadas nas investigações das autoridades policiais e judiciais, o assunto é amplamente discutido na imprensa e nas televisões, a ponto de em algumas destas se constituírem autênticos "tribunais mediáticos", quase sempre sem a presença dos suspeitos ou de quem os defenda, que rapidamente fulminam os visados com sentenças demolidoras sem direito a recurso.

Curiosamente, está neste momento em curso um processo da maior importância, não apenas pelas entidades envolvidas como pelas consequências que o mesmo pode ter tido (e continuar a ter) para o erário público português, a confirmarem-se os indícios do MP, sobre o qual quase nada se sabe.

Não estamos evidentemente a advogar que em relação a este processo se constituam os conhecidos "tribunais pseudo populares" nas televisões nem que a imprensa vá desde já ditando as suas sentenças inapeláveis sobre o que está sendo investigado. O que gostaríamos era de ser mais bem informados sobre o que se está a passar. Em vão percorremos os jornais, revistas e as estações de televisão, nenhum deles nos presta essa informação elementar.

Por que será que tal acontece? Por que será que não faltaram centenas de artigos e debates sobre a "operação Marquês" nem sobre os múltiplos processos que o Benfica tem pendentes e não haja mais que secas notícias sobre a investigação que recai sobre dois altos cargos da EDP, indiciados pelo crime corrupção activa para obtenção de rendas excessivas? Por que será? Por que será que um assunto tão importante para o contribuinte português, que paga anualmente milhões de euros à EDP, não merece o interesse nem o empenhamento dos nossos impolutos jornalistas? Por que será?

20/06/15

RACISMO

Enquanto o grande Luís de Camões no século XVI se apaixona pela jovem chinesa, que imortaliza como a sua Dinamene num soneto que todos nós aprendemos a recitar de cor, outro grande poeta português do século XX apouca a sua grandeza defendendo aos 20 anos, aos 32 e aos 40 o racismo, a escravatura e a inferioridade das mulheres.

20/06/16

TEXTOS PUBLICADOS NO FACEBOOK EM MAIO

 



PARA MEMÓRIA FUTURA   



A HERDADE

A Herdade, filme de Tiago Guedes, que tão badalado foi desde que iniciou a sua apresentação, seja em festivais, seja nos circuitos comerciais de distribuição, decepcionou-me, com muita pena minha. Creio que é a primeira vez que me atrevo a fazer publicamente um comentário sobre um filme. E para que não haja mal entendidos quero que desde já fique claro que isto não é nem poderia ser uma crítica cinematográfica. Falta-me a competência para tanto. Não obstante, é necessário começar por dizer que acho a fotografia excelente, acho a interpretação da maior parte dos actores muitíssimo boa como muitíssimo boa é a sua direcção. Não é nada disso nem outras questões de natureza técnica o que está em causa na minha apreciação.

O que está em causa é a frustração que não pode deixar de sentir-se durante a exibição do terceiro e quarto episódios (o filme foi apresentado em episódios na RTP) à medida que nos vamos apercebendo que entre a primeira parte do filme (primeiro e segundo episódios) e a segunda não há a continuidade que se esperava e que a primeira parte amplamente justificava, qualquer que ela fosse na visão do realizador. O que não faz, a meu ver, sentido é transformar a segunda parte do filme no desenvolvimento praticamente exclusivo de algo episodicamente aflorado no seu começo.

Se o realizador tinha em vista, como parece que teve, dar uma ideia da história recente de Portugal (entre 1946 e 1991 ou eventualmente até aos nossos dias), seguindo as vicissitudes de uma família, latifundiária alentejana, com as suas específicas características não necessariamente generalizáveis, deveria na segunda parte fazer idêntico enquadramento da realidade política e socioeconómica que contextualiza a vida das pessoas, sem deixar de ter em conta o facto que infelizmente, bastante a despropósito, acaba por dominar toda a segunda parte do filme com completo desprezo pelos tais factores contextualizantes fundamentais à compreensão da vida das pessoas e à sorte dos seus empreendimentos.

Na primeira parte, o realizador dá-nos uma imagem de um latifundiário muito peculiar, marialva mas não desprovido de outros valores, independente, altivo mas com capacidade para compreender outros interesses além dos seus, não obstante desde cedo se ter percebido que a sua herdade (herdada do pai) é uma espécie de território independente, uma “zona franca” como lhe chamam os caudatários do regime, que lhe permite exibir com orgulho a sua independência e altivez perante o próprio regime fascista.

Casado com a filha do director da PIDE, um “filho da puta” como ele lhe chama, vê-se na necessidade de a ele recorrer para conseguir a libertação de um seu trabalhador, mecânico de máquinas agrícolas, filiado no Partido Comunista, tendo para tanto que pagar o tributo que desde há muito lhe vinha sendo exigido pelos altos dignitários do regime – um apoio explícito à guerra colonial, travada, como ele também costumava sublinhar, contra os “independentistas africanos”. Contra os “turras”, corrigem os fascistas.

Não se pense contudo que o João Fernandes – assim se chamava o protagonista – era um militante antifascista ou um simples militante oposicionista. O seu mundo era a sua herdade e a sua política era a sua independência e com uma e outra a possibilidade de emitir as opiniões e levar a cabo as acções que julgava adequadas a cada situação.

Não obstante este enquadramento inicial e o que subsequentemente resulta do 25 de Abril, com tudo o que ele representou para as regiões do país abrangidas pela Reforma Agrária, cujos primeiros embates, tanto quanto se depreende, ele consegue aguentar, com independência mas também com compreensão pelas inevitáveis mudanças, recorrendo ao diálogo e não desprezando o apoio dos seus próprios trabalhadores, num contexto em que a família está sempre presente, como pano de fundo, numa visão mais institucional do que afectiva; porém, na segunda parte, o realizador passa a dedicar a sua quase exclusiva atenção ao incesto que resulta de o filho da mulher do “maioral” se ter apaixonado pela filha do latifundiário, que, afinal, é sua irmã. Embora se saiba praticamente desde o início do filme que é do patrão o filho da empregada da casa – quando a mulher do latifundiário corrige o ministro do interior, referindo-se à criança: “Esse não é meu, é da Rosa” – isso não assume nenhum especial relevo na primeira parte do filme – a mulher sabe, como também sabe que ele andou com a sua irmã, antes do casamento – sendo esse apenas um dos múltiplos factores que caracterizam a personalidade do protagonista, sem contudo o representarem por inteiro.

Na segunda parte, numa cena fugaz percebe-se que a herdade tem os bancos “à perna”, os negócios não correm bem (mas porquê?), o protagonista embora guarde algumas das suas características mais marcantes, vai perdendo o brilho de quem perde o poder e já não depende de si para continuar a ser o que no passado tinha sido, e a “história” do filme passa a ser dominada pelo tal namoro entre os irmãos, cuja parentesco desconhecem, caminhando a decadência da herdade a par e ao lado da dramatização da situação das famílias envolvidas.

Sem herdeiro em quem confie, um filho droga-se, o outro (o da Rosa) abandona a herdade, sem dinheiro para pagar as dívidas, com a mulher desinteressada na continuação do casamento, João Fernandes fica só e vai ter um triste fim.

Numa palavra: falta contexto ao filme ou, como outros dirão: falta-lhe enredo…

20/05/02

A IGREJA

A Igreja que se cale e não se proponha disseminar a peste que foi o que historicamente sempre fez em circunstâncias análogas.

20/05/03

GUINÉ

Faz hoje 46 anos que regressei da Guiné onde cumpri, na Marinha, uma comissão de serviço militar de 24 meses.

O ambiente que encontrei na Guiné foi muito bom. Quer com os guineenses com quem tive a oportunidade de me relacionar, quer com os camaradas militares, principalmente os milicianos, mas também com muitos oficiais do quadro permanente de que fiquei amigo para a vida.

Escusado será dizer que durante aqueles 24 meses a política esteve permanentemente presente. À medida que o tempo passava e a situação militar se agravava, percebia-se que o regime estava num beco sem saída, embora não fosse nada seguro o que poderia vir a seguir. A extrema-direita já tinha dado sinais suficientes de que estava activa. Faltava saber se teria força suficiente para concretizar a ameaça. Rivalizando com esta, projectava-se a sombra de Spínola, nomeadamente depois do seu regresso a Lisboa. E Spínola era para nós uma tentativa de continuar por outras vias o mesmo objectivo

Com o desfecho do 16 de Março reavivaram-se medos antigos e consolidava-se a convicção de que as tentativas de derrube do regime pela via militar estavam condenadas ao fracasso.

Até que, dias depois, chegou a Bissau, vinda do Alfeite, uma fragata (ou corveta...) que trazia a bordo o primeiro-tenente Judas (irmão do José Luis Judas) que nos contou "direitinho" o que tinha acontecido e o que, dentro de pouco tempo, iria acontecer. O que tinha acontecido foi bem explicado e bem compreendido, mas já quanto ao que iria acontecer, a forte convicção do narrador não foi suficiente para nos incutir idêntico optimismo.

Os factos encarregaram-se porém de falar por si...

20/05/04

AINDA SOBRE O 1.º DE MAIO

Tendo em conta as reacções que continuam a vir a público sobre as comemorações do 1.º de Maio, a primeira coisa que ocorre dizer a quem as ouve é a de que não pode deixar de estranhar-se que nem o Presidente da República conheça a lei que promulgou nem o presidente do maior partido da oposição conheça as leis que regem a República, nomeadamente aquelas a que ele e o seu partido deram o seu assentimento ou não manifestaram relativamente a elas qualquer oposição. Evidentemente, que a lei obriga e vincula independentemente do conhecimento que dela se tem, só que não é vulgar que a ignorância da lei seja manifestada por quem interveio directamente no processo legislativo.

Se a Igreja queria gozar de uma excepção semelhante à que foi estabelecida para o 1.º de Maio só teria que fazer chegar essa sua vontade ao Presidente da República ou ao Primeiro Ministro e ela seria certamente atendida. Sem a excepção expressamente consagrada na lei, já seria mais difícil poder beneficiar de um comportamento semelhante ao que foi reconhecido aos manifestantes do 1.º de Maio, porque as normas excepcionais não são susceptíveis de aplicação analógica, contrariamente ao que deu a entender a Ministra da Saúde.

Se a excepção tivesse sido consagrada seria muito interessante tanto para os crentes como até para muitos não crentes assistir pela televisão na imensa esplanada do Santuário de Fátima a uma coreografia semelhante à que a CGTP montou na Alameda, com os altos dignitários da Igreja, à distância social recomendada, nas suas vestes talares, com convidados ilustres também em traje de gala e outros membros menores do clero participarem com pompa e circunstância numa cerimónia religiosa de grande efeito cénico, além, claro, do imposto pela devoção dos participantes.

A Igreja sempre tão atenta à exposição pública da sua fé não terá deixado de comemorar Fátima na modalidade imposta pela pandemia por desleixo ou por outra causa da mesma natureza. Talvez não seja ousado afirmar que nem sequer terá sido pelo trabalho organizativo que semelhante comemoração acarretaria, já que a Igreja é uma das instituições que em Portugal sempre revelou essa capacidade. A verdadeira razão talvez tenha sido outra: uma comemoração nos moldes impostos pela pandemia acarretar-lhe-ia um enorme dispêndio de fundos. Ficava caro e sem retorno. Ora, Fátima não existe para dar prejuízo!

20/05/05

O DIA DA VITÓRIA

Comemorar o 9 de Maio, dia da vitória, com um elogio a Franco não é necessariamente uma aberração, é apenas uma opção política. Mas afirmar que Portugal se manteve neutral na II Guerra Mundial, que a Península ficou à margem da guerra e que Hitler não tomou Gibraltar por Franco, em Hendaye, se ter recusado a entrar na guerra é dar da história uma visão incompleta que corre o risco de a deturpar, por muito que o objectivo seja apoucar Salazar (agora que ele já morreu há 50 anos…).

Vamos aos factos: No outono de 1940 Hitler já sonhava com uma Alemanha vencedora e porventura com um plano de paz que pusesse termo ao conflito no Ocidente europeu susceptível de reflectir a correlação de forças existente no campo militar. Depois de derrotada a França, ocupada a Polónia e dominada a Europa do norte, só faltava a rendição da Inglaterra e a repartição dos seus despojos imperiais pelos vencedores.

Para abreviar o termo do conflito, à Alemanha interessava a entrada da Espanha na guerra e a Espanha também estava interessada em sentar-se à mesa dos vencedores, desde que não tivesse que fazer um grande esforço, dada a penúria em que se encontrava, e pudesse tirar dessa participação uma grande vantagem. Foi assim, neste contexto bélico e de interesses não necessariamente coincidentes, que decorreu o encontro de Hendaye entre Hitler e Franco em finais de Outubro de 1940.

A situação de Espanha era à época deplorável. Completamente exaurida por uma guerra civil de três anos, a Espanha estava faminta, atrasadíssima, com péssimas vias de comunicação e militarmente fraca, apesar da vitória interna alcançada um ano antes.

Franco, como qualquer outro espanhol megalómano (de que Aznar nos tempos modernos é também um bom exemplo, mas não o único), sonhava com uma Espanha imperial. Daí que nas negociações com os alemães, mesmo quando conduzidas do seu lado por confessos simpatizantes nazis, a Espanha pretendesse como contrapartida da sua entrada na guerra, além de comida, combustíveis e fornecimento de material bélico em quantidades absurdas, a transferência dos territórios franceses do norte de África e Gibraltar, claro.

Os alemães jamais cederam a esta pretensão, Hitler inclusive. A justificação era muito óbvia: Hitler não queria hostilizar a França de Vichy, com a qual ainda contava para fazer a guerra à Inglaterra, e, portanto, não se ia comprometer com a entrega de vastos territórios de um potencial aliado, que na estratégia alemã era muito mais importante para o futuro próximo da guerra do que a da depauperada e miserável Espanha. Assim, no Protocolo que reflecte o ponto das conversações de Hendaye, a Alemanha limitou-se a aceitar:

“Além da união de Gibraltar, as potências do Eixo declaram que, em princípio, estão preparadas para dispor, no decurso do acerto geral em África, que se levará a cabo nos tratados de paz após a derrota da Inglaterra, que sejam cedidas a Espanha certas áreas em outras secessões territoriais em África com o mesmo valor. As reclamações a fazer pela Alemanha e a Itália à França não deverão ser afectadas por isso”.

Este compromisso, negociado por Ribbentrop, que a Alemanha aceitou fazer por escrito, não satisfez Franco nem o seu cunhado Serrano Süner, tendo por isso sido apenas assinado pelos embaixadores dos dois países, Monteros e Stohrer. A Espanha sabia que não tinha condições para entrar na guerra, embora quisesse fazer parte dos vencedores. E como a história demonstrou com outros aliados de Hitler, a Alemanha só teria perder, mesmo quando estava a ganhar, com um aliado como a Espanha.

Não obstante, Hitler ficou decepcionadíssimo com Franco e logo percebeu que dali não resultaria nada de útil. Se decidisse tomar Gibraltar teria de fazê-lo pelos seus próprios meios. Talvez por isso Franco tenha encarregado o seu estado-maior de preparar um plano para a invasão de Portugal com vista ao domínio da costa marítima, caso Hitler desencadeasse um ataque destinado a tomar Gibraltar, para obviar a um desembarque inglês nas costas portuguesas.

Como se sabe, nada disso aconteceu. A Alemanha, em fins de 1940, deparou-se com problemas no sudeste da Europa por um dos seus aliados se ter revelado incapaz de alcançar o objectivo a que se tinha prioposto – conquista da Albânia e da Grécia pela Itália. Logo a seguir as coisas também deixaram de correr bem no norte de África e passaram a correr muito pior depois da entrada dos Estados Unidos na Guerra (Dezembro de 1941) e a partir de Junho de 1941 as suas atenções focaram-se fundamentalmente na frente leste, onde apesar das facilidades iniciais, tudo começou a correr muito mal desde fins de 42.

Assim, a questão da Espanha deixou de ser relevante para a Alemanha. Quanto a Portugal, nem a Inglaterra nem a Alemanha estavam interessadas na entrada de Portugal na guerra. E Portugal, mesmo contra vontade própria, só não foi obrigado a entrar, porque quando a Inglaterra e os Estados Unidos fizeram as grandes exigências a Salazar, concedidas depois de um longo e complexo enredo negocial, a Alemanha já não estava em condições de belicamente as poder contrariar.

No governo de Salazar as simpatias dividiam-se entre ambos os contendores, embora numa primeira fase os simpatizantes do Eixo nazi-fascista fossem predominantes. Salazar começa por defender convictamente a neutralidade, mas fica muito abalado com a participação da URSS ao lado da Inglaterra e dos Estados Unidos, a ponto de não se coibir de censurar asperamente essa aliança em vários discursos.

Acabou por tudo lhe correr bem tacticamente. Até essa inusitada aliança, pelos seus efeitos posteriores. A vitória das potências do Eixo não lhe traria, em princípio, problemas de continuidade, embora tivesse de dar outra visibilidade à doutrinação nazi-fascista, o que não era completamente do seu gosto pelas movimentações populares que a transformação da União Nacional num partido de massas necessariamente implicaria. A vitória das forças aliadas, pelo contrário, constituiria do ponto de vista teórico um sério risco à sua continuidade. Quis o destino que a rápida emergência de um clima de Guerra Fria lhe tivesse garantido a continuidade de um lugar que doutro modo estaria em causa.

Salazar teve sorte, mas também teve o mérito de impedir, nomeadamente no seio das forças armadas, a formação de uma força moderada que gozasse da confiança da Inglaterra e dos Estados Unidos capaz de promover as mudanças cosméticas de que o regime necessitava para se legitimar “democraticamente” aos olhos das potências vencedoras.

Por um lado, o facto de a Península ameaçar virar exageradamente à esquerda em caso de deposição dos dois regimes de tipo fascista que nela governavam e, por outro, a agudização cada vez mais intensa da Guerra Fria, salvaram Franco e Salazar. Tiveram sorte tanto um como outro,

Aliás, era com essa mesma Guerra Fria num contexto já internacionalmente diferente com que Salazar contava vinte e tal anos mais tarde para resolver a seu contento as guerras coloniais. Só que ai o seu falhanço foi total e sem salvação possível por incapacidade de compreensão do mundo em que então vivia.

20/05/09

CENTENO E O NOVO BANCO

Nunca vi nem ouvi Centeno a fazer uma afirmação tão categórica sobre a necessidade de um financiamento como fez hoje (ou ontem) a propósito do Novo Banco.

A morte de pessoas às centenas não o impressionou tanto, se é que impressionou. Aliás, em matéria de pandemia, tem estado "desaparecido em combate", mas apareceu para defender a necessidade de financiamento do NB!

20/05/13

TAP - PARA AVIVAR A MINHA MEMÓRIA

Alguém me pode, pf, transcrever uma declaração do Sr. Rio ou do Sr. Moreira contra a privatização da TAP? Já nem peço uma declaração contra o contexto fraudulento e ilegítimo em que ocorreu a privatização decidida por Passos, Maria Luís e Portas, mas apenas contra a privatização “tout court”.

20/05/28

AMEAÇAS, EXTORSÕES, SANÇÕES, AGRESSÕES, MENTIRAS, ABANDONO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

São estas algumas das armas usadas por qualquer Estado terrorista. Fazendo da sua força o seu direito e erigindo o seu interesse por mais condenável que ele possa ser em única norma de conduta, a sociedade regride ao estado de natureza donde saiu antes de a racionalidade imposta pela convivência com os outros e com os seus lhe ter ditado um pacto sem a existência do qual nada distinguiria o homem do animal irracional.

20/05/30

TEXTOS PUBLICADOS NO FACEBOOK DE 23 A 30 DE ABRIL

 

PARA MEMÓRIA FUTURA 



LEONARDO MATHIAS

Foi com pesar que tomei conhecimento da morte do Embaixador Leonardo Mathias com quem contactei muito de perto no Ministério dos Negócios Estrangeiros durante o período em que foi o chefe da Representação Permanente de Portugal junto das Comunidades Europeias (REPER), em Bruxelas.

Se ideologicamente nada nos ligava, ele era um conservador oriundo do antigo regime e eu com passado antifascista e presença na linha da frente durante a Revolução de Abril, nem por isso as nossas relações deixaram de ser cordiais, principalmente durante as longas viagens para participação em reuniões da Comunidade Europeia com os países da África, Pacífico e Caraíbas (ACP).

Ele olhava com alguma sobranceria aristocrática a nova direita cavaquista, no poder durante o tempo em que desempenhou cargos importantes, e talvez fosse esse o traço de união que nos aproximava, por vias diferentes, na crítica conjunta dessa nova classe política.

Homem culto e amante da vida, deixou uma recordação simpática. Ao irmão, Embaixador Marcelo Mathias, as minhas sentidas condolências.

20/04/23

 

A UNIÃO EUROPEIA E OS JURISTAS

 Não vale a pena fazer nenhuma dissertação sobre o tema. Vale contudo a pena anotar a susceptibilidade de certos juristas portugueses que não deixam de sublinhar a ausência de fundamento legal para o endividamento da Comissão bem como para o financiamento directo dos Estados pelo BCE.  

Mas nunca vi nenhum deles preocupado pela institucionalização de um órgão que não está previsto nos tratados (Eurogrupo), por o Tribunal de Justiça da União Europeia ir muito para além da li dos tratados nas suas decisões, nem por os tratados não terem previsto o "novo corona vírus"( ah, ah, ah)!

20/04/25

25 de ABRIL COMEMORAÇÕES

As grandes Revoluções comemoram-se nos momentos mais difíceis, comemoram-se quando o país está ocupado, comemoram-se quando os exércitos invasores estão a poucos quilómetros do local das comemorações, comemoram-se mesmo com a presença dos "resíduos tóxicos" não erradicados, sejam eles antigos (CDS) ou novos (Chega).

20/04/2

ELEIÇÕES AMERICANAS

Depois das últimas palhaçadas de Trump, dei hoje comigo a pensar que se as eleições de Novembro próximo derem resultados muito ajustados, poderemos ter na América uma "cenaça" daquelas que a gente costuma ver noutros continentes.

Eleições contestadas, dois presidentes, etc.,etc.

20/04/27

O VIROLOGISTA PAULO PORTAS

Toda a gente acha normal que este antigo especialista em sondagens, submarinos, jornalismo e outras ciências seja agora virologista.

Então, não é óbvio que há aqui qualquer coisa escondida? Há uma lavagem de imagem, há alguém que está por trás desta lavagem de imagem e há um objectivo que se pretende alcançar.

O que acho estranho não é que Paulo Portas tente isto e que alguém esteja nisto interessado. O que acho estranho é que ninguém se interrogue por que razão vem um fulano como Paulo Portas diariamente debitar interpretações sobre o comportamento do vírus.

Dou apenas um exemplo: o que se passaria nas redes sociais e na imprensa se este papel estivesse a ser desempenhado por José Sócrates, por exemplo?

20/04/29

SIZA VIEIRA NA SIC N

Durante cerca de uma hora, Siza Vieira, Ministro da Economia, respondeu a um cerrado interrogatório do conhecido representante dos patrões, José Ferreira, que nem sequer tem a preocupação de disfarçar o papel que desempenha, ou não fosse ele empregado da SIC.

Como bem sabe quem já pisou os terrenos das "ajudas às empresas", não há no panorama jurídico português credor mais aguerrido do que o credor de uma liberalidade. Se o contrato é comutativo, com vantagens recíprocas, o credor empresário é, no quadro do sistema, um credor normal, certamente por ter consciência de que também ele é devedor perante o outro contraente. Se, porém, o seu crédito resulta de uma liberalidade, ele é, em princípio, intratável. Movido por uma voracidade que o transtorna, torna-se absolutamente insuportável enquanto não recebe o dinheiro, porventura por temer que a todo o momento esse dinheiro se esgote ou o doador mude de opinião.

Pois até nesse pormenor psicológico extremamente interessante, o jornalista José Ferreira se comportou como um desses empresários "credores" de liberalidades. Valeu-nos a excelente prestação do Ministro, que é inquestionavelmente um dos nomes com valor no Gabinete de António Costa.

Só foi pena que sobre a questão porventura mais interessante para certos sectores da audiência - a natureza da "ajuda" da UE - o Ministro não tivesse tido a oportunidade de expor com mais pormenor a sua posição, ou seja, a posição do Governo. Mas que é que isso interessava a José Ferreira? Importante é que o dinheiro chegue aos bolsos dos seus representados. Se quem o dá o recebe por empréstimo ou por uma via não onerosa, isso a ele já não lhe interessa.

20/04/30

A PESTE

Sempre que uma peste assola a humanidade, a primeira e mais comum reacção é encontrar um culpado, alguém que possa ser responsabilizado por esse mal que não conseguimos contrariar e pelas consequências que não somos capazes de evitar.

E isto tanto se passou com a peste que no século V AC devastou a Ática, como com outras posteriores, sejam elas a que ocorreu cerca de mil anos depois em todo o Mediterrâneo, seja com a mais conhecida de todas – a Peste Negra que na década de 40 do século XIV exterminou um número incalculável de vítimas desde os confins das estepes, passando pela China, Golfo Pérsico, Mar Vermelho e norte de África, até à nossa conhecida Europa, que à época ainda estava longe de se poder considerar o centro do mundo.

NA Europa, durante a Peste Negra, houve quem tivesse culpado as mulheres e desaconselhasse vivamente a “lascívia carnal com mulheres”, como aconteceu na Suécia e na Inglaterra, mas também houve quem tivesse culpado os judeus, como na Alemanha, infligindo-lhes castigos cruéis que quase os exterminaram em vastas regiões. Como alguém já disse: “É perigoso ter crenças diferentes em tempos de crise”.

Pois também agora, no século XXI, o civilizadíssimo espécimen do género humano não se poupa a esforços para imputar a terceiros a responsabilidade pela pandemia que está mudando radicalmente o nosso modo de estar na vida. Basta ouvir Trump ou o seu secretário de estado, Mike Pompeo, para não restarem dúvidas nem sobre a intenção que os anima nem sobre objectivo que os move. Mas não é preciso subir tão alto, basta percorrer aqui as nossas redes sociais para rapidamente se perceber que esses mesmos propósitos estão presentes na mente de pessoas aparentemente comuns, todavia possuídas de uma verdadeira fobia que nem sequer os deixa compreender o ridículo em que sistematicamente caiem ao assemelharem-se àqueles norte americanos histéricos que no auge da Guerra Fria, gritavam, fugindo: “Vêm ai os russos!”.

20/04/30


sexta-feira, 15 de maio de 2020

A PROPÓSITO DA SETENÇA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO SOBRE A POLÍTICA DO BCE


BCE rebate queixa sobre juro negativo | Finanças | Valor Econômico


O QUE REPRESENTA ESTA SENTENÇA


(Texto reformulado)

1 - Vamos tentar por palavras simples explicar o que se passa. O assunto é complexo e a complexidade não pode simplificar-se, mas pode tentar-se por palavras que todos entendam explicar essa complexidade.

2 - Como é do conhecimento de todos que se interessam por estes assuntos, o Banco Central Europeu (BCE) iniciou no primeiro trimestre de 2015 um programa de compra de dívida emitida pelos Estados, tendo por essa via contribuído para uma apreciável descida da taxa de juro nos mercados, que muito tem favorecido os Estados mais endividados, a ponto de frequentemente se ouvir dizer que o BCE de Mario Draghi salvou o euro com este programa que, de outro modo estaria ameaçado, pela subida constante da taxa de juro ou pela sua fixação a um nível altíssimo, que levaria necessariamente à falência de vários Estados membros e, como é óbvio, à sua saída do euro.

3 - Como também se saberá, os tratados proíbem o financiamento dos Estados pelo Banco Central Europeu (art.º 123.º do Tratado). O BCE já é, portanto, um banco central gizado nos moldes neoliberais, dito independente do poder político, à semelhança, à época, do Bundesbank, actuando num quadro completamente diferente dos tradicionais bancos centrais, cujos estatutos foram também sendo gradualmente substituídos por textos condizentes com a vulgata neoliberal, dominante no mundo ocidental depois dos governos Thatcher/Reagan, e tornada hegemónica depois da Queda do Muro e subsequente implosão da URSS.

4 - A primeira questão que aquela política do BCE levanta é a de saber se a compra da dívida soberana emitida pelos Estados membros da UE constituí ou não uma violação dos tratados, ou seja, da norma que proíbe o Banco de financiar directamente os Estados membros da UE.
Formalmente, não se pode dizer que aquela política do BCE seja uma violação dos tratados, porque o BCE não compra a dívida directamente aos EM. O BCE compra-a no mercado secundário, ou seja, compra-a a quem a comprou directamente aos Estados. Claro, que os juros baixam, porque os que compram a dívida sabem que BCE a recomprará a seguir e que não terão, portanto, nenhuma dificuldade em a revender com lucro.
 Substancialmente, parece assemelhar-se àquilo em que em Direito se chama fraude à lei. Ou seja, pela prática de um ou vários actos lícitos, logra-se obter um resultado que a lei previu e proibiu. Mas a questão não é clara, dada a letra do já referido artigo 123.º que refere expressamente apenas a proibição de “compra directa de títulos da dívida…”

5 - Chegados aqui os problema que se põe é o seguinte: quem tem competência para decidir sobre a regularidade da actuação do BCE?
A União Europeia actua na base das competências que lhe foram transferidas pelos seus Estados membros. Umas vezes essa competência é exclusiva, outra é partilhada. Tanto num caso como noutro somente a UE pode praticar juridicamente actos vinculativos, sejam esses actos legislativos ou jurisdicionais, a menos que os Estados tenham sido habilitados pela UE a fazê-lo ou, sendo a competência partilhada, no caso de a UE a não exercer ou deixar de a exercer. Contudo, sempre que a exerça, os seus actos prevalecem sobre os dos Estados membros.

6 - Portanto, a resposta àquela questão é fácil: Quem decide sobre a regularidade da actuação do BCE ou de qualquer outro órgão comunitário são os tribunais comunitários, o Tribunal de Justiça da União Europeia.
A regularidade jurídica dos actos praticados pelas instituições comunitárias, sejam eles de natureza legislativa ou administrativa, é jurisdicionalmente aferida pelos tribunais comunitários. É aos tribunais comunitários que compete apreciar se o acto praticado pelas instituições comunitárias está ou não conforme aos regulamentos (lei comunitária) ou aos tratados.
Nem de outro modo faria sentido que fosse. Se os Estados atribuem determinada competência a uma organização internacional ou se para ela transferem parte da sua soberania não podem ser os tribunais nacionais a fazer a fiscalização dos actos por ela praticados, sob pena de essa competência se aplicar de forma diferente ao conjunto dos Estados que a transferiram, quando o objectivo era exactamente o de criar um regime único aplicável a todos eles.
Insistindo no absurdo de outra solução, imaginemos que os Estados membros das Nações Unidas se reservavam o direito de controlar por via dos seus órgãos jurisdicionais competentes as deliberações vinculativas tomadas pelo Conselho de Segurança nos termos da Carta, impedindo que lhes fossem aplicadas ou não as acatassem sempre que os seus tribunais nacionais tivessem concluído que o CS havia actuado ultra vires (para além das suas competências).

7 - Então, como se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional alemão relativamente à prática de um acto proveniente das instituições comunitárias?
Agora será preciso explicar como se relaciona juridicamente a União Europeia com os seus Estados membros. 
Os Estados que integram a União Europeia aceitaram pela via dos tratados que ratificaram criar uma organização internacional bem diferente das que normalmente existem na comunidade internacional, criadas pelos Estados.
A generalidade das instituições existentes na comunidade internacional, criadas pelos Estados soberanos, não dispõe de poderes normativos relativamente aos Estados que delas fazem parte. Estas instituições não podem elaborar normas destinadas a vigorar no território dos seus Estados membros. São antes organizações de cooperação internacional que só excepcionalmente gozam do direito de praticar actos vinculativos para os Estados que as constituem (não normativos, embora decididos ao abrigo de uma norma) e quase sempre, quando isso acontece, com a prévia e específica concordância desses Estados.
Diferentemente se passam as coisas na União Europeia. A UE pode, nos termos dos tratados constitutivos, emitir normas directamente aplicáveis no território dos Estados membros. São os chamados regulamentos. E pode também pela via das directivas obrigar os Estados a emitir normas destinadas a alcançar os fins nelas previstos, embora deixando aos Estados a escolha dos meios adequados para os alcançar.

8 - Chegados aqui, perceberão os leitores que, por força desta configuração sui generis da União Europeia, cada Estado membro passa a ter no seu território normas provenientes de legisladores diferentes: do seu próprio legislador e do legislador comunitário. Aliás, qualquer Estado terá sempre como normas reguladoras da sua actuação, além das normas que ele próprio edita, as normas de direito internacional a que está sujeito. Mas vamos deixar este assunto de parte para não complicar exageradamente a exposição e atermo-nos apenas à relação entre as normas acima referidas em vigor no território dos Estados membros – as internas e as provenientes da UE.

 9 - Que relação existe entre estas normas? Como se afere da sua hierarquia? Qual o valor relativo de cada uma delas?
Num sistema jurídico, qualquer que ele seja, as normas não têm todas o mesmo valor normativo. Há entre elas uma relação de hierarquia, consoante a fonte de onde emanam. Esta hierarquia vem modernamente regulada nas Constituições dos Estados.
Na Constituição Portuguesa ela está regulada, para os efeitos que aqui nos interessa ter em conta, no artigo 8.º da Constituição. Para efeito da relação de hierarquia entre as normas de direito interno, ver arts.ºs 112.º e 277.º da Constituição.
No referido artigo 8.º, a Constituição dispõe o seguinte:
1- “As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português”.
2 - “As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”.
3-  “As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos”.
4 - “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.

A União Europeia legisla por meio de actos normativos a que se dá, como já vimos, o nome de “Regulamentos”, não havendo hoje qualquer dúvida, quer à luz dos Tratados, quer à luz da doutrina seguida nos diversos EM, de que as normas daqueles regulamentos têm valor supra legislativo. Quer isto dizer que qualquer norma interna de natureza legislativa cede perante a norma comunitária que a contrarie. Se a norma comunitária revoga ou não a norma de direito interno que a contrarie, essa já é outra questão. Ao direito comunitário basta-lhe assegurar a eficácia das suas normas, embora hoje pareça indiscutível que, nos domínios de competência exclusiva da UE, as normas internas de natureza legislativa (Leis da AR e DL do Governo) anteriores são revogadas pelas normas comunitárias posteriores que as contrariem ou, se forem posteriores às normas comunitárias, serão ilegais, logo nulas, se as contrariarem. Já nos domínios de competência partilhada entre a UE e os Estados não será necessário ir tão longe: à UE basta assegurar a eficácia das suas normas; por isso há quem entenda que nestes casos as normas internas têm a sua vigência apenas suspensa enquanto vigorarem as normas comunitárias. Em ambos os casos, porém, está garantido o valor supra legislativo das normas da União Europeia relativamente às normas de natureza legislativa dos EM em todas as matérias que, segundo os Tratados, sejam da competência da União Europeia.

10 - Quanto a esta questão, nenhuma dúvida. Só que há um outro problema de mais difícil resolução, que é o seguinte: como acima já se disse, as normas internas dos Estados membros não têm o mesmo valor normativo (art.º 112.º, e também art.º 277.º da Constituição). Na hierarquia das normas internas, partindo das que valem menos para as que valem mais, nós podemos distinguir três categorias de normas: os regulamentos, as leis e as leis constitucionais. E a regra, nos modernos Estados de direito, é em todo o lado a mesma: os regulamentos não podem contrariar as leis, sob pena de ilegalidade; e as leis não podem contrariar a Constituição, sob pena de inconstitucionalidade.
Ora, vimos atrás que as normas emitidas pela União Europeia têm valor supra legislativo, mas relativamente à Constituição qual será o seu valor? Que acontece se elas forem contrárias à Constituição? Poderá um Estado Membro declarar a inconstitucionalidade de uma norma comunitária? Antes de mais nada convém dizer que, se a resposta fosse afirmativa, a inconstitucionalidade dessa norma declarada por um tribunal nacional não acarretaria a sua nulidade no âmbito europeu (ela continuaria a vigorar no território dos demais EM) mas apenas a sua ineficácia no território do Estado que declarou a sua inconstitucionalidade.

11 - Convém ainda dizer que o problema de constitucionalidade que se põe para as normas de natureza, digamos, “legislativa” (regulamentos) da União Europeia poderia pôr-se igualmente para os tratados. Só que nesse caso há um remédio prévio que pode e deve ser usado.
Explicando: Os Estados vinculam-se internacionalmente por via dos tratados que negoceiam e ratificam. A vinculação por meio de um tratado pressupõe um conjunto de fases que termina com a ratificação que é o acto (ou um conjunto de actos) pelo qual o Estado manifesta e comunica o seu consentimento a ficar por ele vinculado. O Estado não deve ratificar um tratado que seja contrário à sua Constituição, já que não há qualquer dúvida de que um tribunal nacional pode declarar a inconstitucionalidade das disposições desse tratado que ofendam a sua Constituição. Com efeito, a Constituição diz expressamente: “As normas constantes das convenções internacionais regularmente ratificadas, vigoram na ordem interna …” O que significa que, se não forem regularmente ratificadas, estão feridas de inconstitucionalidade.
As normas do tratado têm, assim, um valor supra legislativo (é neste sentido a doutrina dominante entre nós, apesar de esse princípio se não poder inferir inequivocamente do texto constitucional, acima citado) mas infra constitucional. Se o Estado tiver dúvidas sobre a constitucionalidade do tratado ou de algumas das suas disposições, antes de o ratificar, deve remetê-lo ao Tribunal Constitucional para apreciação da constitucionalidade das suas normas. E se TC detectar alguma inconstitucionalidade, o Estado terá, teoricamente, três hipóteses: uma é não o ratificar ou ratificá-lo com reserva das disposições inconstitucionais, caso o tratado admita reservas; outra, é tentar renegociá-lo (mas isso depende sempre da vontade das outras partes, já que com a assinatura do tratado se encerra a fase das negociações); e a terceira, é alterar a sua própria Constituição de modo a pô-la conforme ao tratado. Este último caminho foi o seguido por vários Estados europeus, Portugal inclusive, antes de ratificação de alguns tratados constitutivos da UE.

12 - Há, portanto, um problema em aberto, quanto à relação entre as normas comunitárias e as normas constitucionais dos seus Estados membros, embora os tratados constitutivos da UE nos termos amplos em que se exprimem sobre o primado do direito comunitário pareçam querer abarcar toda a legislação de fonte europeia decorrente das competências transferidas pelos Estados membros. Por seu turno, a generalidade das constituições dos EM também não resolve expressamente a questão, como fazem relativamente às normas e os princípios de direito internacional geral ou comum, consideradas parte integrante do direito português. Ora, se fazem parte integrante do direito português, terão, no mínimo, um valor idêntico ao da Constituição.
Quanto à questão anterior, do valor infra ou supra constitucional das normas comunitárias, embora a posição da União Europeia, e antes dela da CEE, tenha sido, muito por força da criação jurisdicional de direito comunitário, no sentido do primado das normas comunitárias sobre as normas nacionais quaisquer que elas sejam (legislativas ou constitucionais), ela continua em aberto em certos Estados, como a Alemanha, onde os seus órgãos jurisdicionais se não coíbem, como agora aconteceu, de declarar inconstitucional a actuação do BCE por ter infringido o princípio da proporcionalidade na aplicação do art.º 123.º do Tratado.

13 - A mesma Alemanha, que agora questiona a actuação do BCE, já tinha, no contexto normativo anterior a Maastricht, advertido, também pela via do seu tribunal constitucional, que as jurisdições alemães se reservavam o direito de, em matéria de direitos, liberdades e garantias, fiscalizarem a conformidade das normas europeias com a Lei Fundamental (Constituição) da RFA. A justificação era convincente e óbvia: enquanto os tratados constitutivos da CEE não contivessem normas sobre aquelas matérias, a jurisdição alemã não deixará de o fazer, considerando inaplicáveis em território alemão as normas comunitárias que ofendam aqueles princípios.
Por outras palavras: o Tribunal Constitucional alemão reservava-se o direito de aferir, em matéria de direitos, liberdades e garantias, da constitucionalidade das normas comunitárias, qualquer que fosse a matéria por elas tratadas, em virtude de, na altura, a Comunidade Económica Europeia não ter sido destinatária de qualquer tipo de transferência de competência relativa a direitos, liberdades e garantias.

14 – Contrariando de certa forma a ideia que fundamentava aquela intervenção do Tribunal Constitucional, em matéria de direitos, liberdades e garantias, aquela mesma jurisprudência a propósito da apreciação da constitucionalidade do Tratado de Maastricht, em 1993, ampliou com base num fundamento diferente a competência daquele tribunal relativamente a matérias inequivocamente agora transferidas para a órbita da União Europeia, por as ditas matérias representarem importantes limitações de soberania nacional em áreas do maior significado para qualquer Estado soberano, ou seja, a criação de uma moeda única, de um banco central e de uma política comum de crédito. O que levou logo alguns a dizer que o Tribunal Constitucional Alemão tinha elevado o dinheiro à categoria de direito fundamental! Como veremos adiante, embora esta seja a verdadeira razão pela qual o tribunal constitucional se julga no direito de aferir da constitucionalidade das normas dos tratados que a contrariem ou dos actos com base nessas normas praticados, acaba por ser nos “direitos liberdades e garantias” que o tribunal fundamenta, em última instância, a sua decisão.

15 – Ou seja, enquanto até 1993 o que poderia justificar a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional Alemão, e por extensão dos tribunais congéneres, ou com a mesma competência, dos outros Estados Membros, em matéria de direitos, liberdades e garantias, era o facto de a competência relativa a estes assuntos não ter sido transferida para a então Comunidade Económica Europeia, a partir daquela data o que passaria a justificar idêntica intervenção do tribunal era a importância da matéria transferida.
O facto de o Estado se ter visto privado da sua própria moeda, em virtude da sua substituição por uma moeda única, comum a vários Estados, e de tal privação representar uma importantíssima limitação de soberania, passaria doravante a ser razão suficiente para justificar a acção fiscalizadora do tribunal em matéria de política monetária da UE, nomeadamente do seu banco central – o Banco Central Europeu (BCE), passando, assim, o tribunal nacional a ter competência para aferir da conformidade da política monetária da UE/BCE com os termos do Tratado, obviamente de acordo com a interpretação que o tribunal faz da norma questionada. Segundo esta doutrina, se o tribunal concluir pela divergência entre a prática das instituições comunitárias relevantes na matéria e os preceitos normativos que a regulam, haverá uma violação da Lei Fundamental alemã, geradora de inconstitucionalidade o que torna, por um lado, ineficazes os ditos actos relativamente à Alemanha e dita, por outro, a proibição de os órgãos do Estado alemão (Parlamento, Governo e Bundesbank) participarem na execução dessa política.
Esta “ameaça” a que na altura ninguém ligou dado clima de euforia que reinava entre os Estados aderentes de “moeda fraca” – o que interessava era pertencer ao “pelotão da frente” - acabou, depois de algumas tentativas falhadas, por concretizar-se cerca de 30 anos mais tarde.

16 - Que dizer então da decisão do TC Alemão?
A primeira coisa que deve referir-se é que as duas situações não são idênticas e que a extensão da competência para fiscalizar a constitucionalidade de matérias não transferidas a matérias transferidas, consideradas de importância relevante para o Estado em questão, levará à de desagregação da União Europeia bem como à pluralidade de regimes jurídicos relativos ao mesmo assunto, consoante a perspectiva de cada Estado, ou - o que é inaceitável – a atribuição a um Estado forte, ou mais forte que os demais, o “direito” de impor pela via jurisdicional uma política que não logra pôr em prática pelas vias institucionais da organização a que pertence.
A verdade é que não há nenhuma razão objectiva que permita comparar as duas situações. Enquanto o facto de uma matéria estar ou não transferida é uma questão objectiva que pode ser facilmente aferida pela simples letra dos tratados, já a importância da matéria transferida será avaliada por cada Estado de acordo com os seus interesses relativamente ao assunto em causa, tratando-se, portanto, de uma decisão de natureza eminentemente subjectiva.
Assim sendo, é de manter a distinção que não permite ou permite a intervenção dos tribunais nacionais relativamente às normas emanadas pelos órgãos comunitários, consoante versem ou não sobre matéria transferida. Deste ponto de vista não se trata tanto de defender o primado do direito “europeu” relativamente ao direito constitucional nacional, mas antes de uma questão de competência jurisdicional. Os tribunais nacionais estarão legitimados para intervir sempre que o seu juízo tenha por base matéria não transferida, como acontece em direitos, liberdades e garantias, e deixarão de a ter relativamente à matéria transferida qualquer que seja a sua importância.
 Na primeira situação, o tribunal (nacional) apreciará a regularidade constitucional de uma norma comunitária relativamente a matérias que são da competência exclusiva dos Estados por não ter havido nesse âmbito, segundo os tratados, qualquer transferência de competências.  
Na segunda situação, o tribunal (comunitário) apreciará a regularidade da norma ou do acto com base nela decidido por referência às normas dos tratados que regulam a matéria transferida.
Analisando as duas situações no seu contexto, constata-se que no primeiro caso a divergência entre a norma europeia e a constituição nacional decorre, principalmente, de aquela norma violar um direito fundamental, liberdade ou garantia; enquanto no outro, a divergência entre a norma europeia e a constituição nacional decorre de a entrada em vigor de uma norma europeia violar a norma do tratado relativa a matéria da competência transferida.
No primeiro caso, o princípio do primado do direito comunitário não se aplica, porque este princípio só se aplica relativamente às matérias cuja competência foi transferida, exclusiva ou parcialmente, para a União Europeia. Numa situação destas os tribunais nacionais tem competência para analisar a regularidade da norma, concluindo pela sua inconstitucionalidade se houver uma divergência entre a norma e a constituição.
No segundo caso, como se trata de um acto praticado com base numa norma que regula uma matéria transferida, somente um tribunal da União Europeia poderá decidir sobre a sua regularidade, ou seja, dizer se está ou não conforme aos tratados.
O primado do direito comunitário neste segundo grupo de cassos decorre das normas dos tratados que atribuem à UE a competência exclusiva para praticar actos vinculativos no domínio das matérias transferidas e decorre também de uma prática de décadas cimentada por uma jurisprudência que foi com o tempo dando natureza vinculativa a uma interpretação que, sem esforço, se infere dos tratados, a ponto de hoje ser geralmente acatada com a convicção de que se trata de um comportamento imposto pelo direito. Se esta competência fosse alargada à jurisdição dos Estados não somente se estava a infringir o princípio do primado do direito comunitário, como também se estaria a fomentar a pluralidade de regulamentações da mesma matéria transferida.
17 - Apesar de a decisão do Tribunal Constitucional alemão incidir sobre a alegada divergência entre as competências transferidas pelo tratado e as competências exercidas pelo BCE, visto ter sido a actuação ultra vires do banco central que motivou a censura do tribunal, não por violação do art.º 123.º, mas por violação do art.º 5.º que impõe aos órgãos comunitários o respeito pelo princípio da proporcionalidade, ela acaba em última instância por se fundamentar na violação dos direitos fundamentais. O raciocínio do tribunal alemão, bem como dos autores da acção, é o seguinte: se a União Europeia, ou um órgão desta, ultrapassar as competências transferidas pelos tratados (actuar ultra vires) será posto em causa o consentimento do parlamento alemão, cuja legitimidade para o prestar assenta no voto popular, daí resultando uma violação do direito de voto do cidadão (art.º 38.º da Lei Fundamental).
Esta argumentação tem em vista, como logo se percebe, fundamentar a decisão não na tal divergência entre a competência transferida e a exercida, mas numa matéria da competência exclusiva dos Estados como é toda a matéria relativa a direitos, liberdades e garantias.
Quanto a esta fundamentação, a primeira coisa que se pode dizer é o que tribunal parece confundir transferência de competência com exercício de competência. O Banco Central Europeu para atingir os fins que o tratado lhe assinala (garantir a estabilidade dos preços) pode e deve utilizar os meios que considera adequados à prossecução daqueles fins, ou seja, o princípio da proporcionalidade obriga-o a não ir além do necessário para atingir aqueles fins e a ter em conta os interesses em presença, mas não o obriga a actuar de acordo com critérios que não sejam os seus, nem a actuar segundo instruções ou recomendações de terceiros.
O exercício desta competência não é sindicável pelos tribunais nacionais, mas pelo tribunal europeu, único a aferir da legalidade de actuação dos órgãos da União Europeia, relativamente ao que está prescrito nos tratados.
Ao imiscuir-se nesta matéria o tribunal alemão, a pretexto da defesa de direitos fundamentais, está na realidade a violar o princípio da “independência do BCE”, inscrito no tratado como condição imposta pela Alemanha para aceitar a moeda única; a violar o art.º 267.º do TFUE que estatui sobre a competência do Tribunal de Justiça da União Europeia; e, por último, a violar o princípio da igualdade entre os Estados, inscrito no art.º 4.º do TUE.
O grande sofisma em que assenta a decisão do tribunal alemão consiste em os tratados terem atribuído ao tribunal europeu o direito de os interpretar e de decidir vinculativamente sobre a regularidade de actuação dos órgãos da UE por referência ao prescrito naqueles textos, como consequência da vontade expressa dos parlamentos nacionais e demais órgãos competentes dos respectivos Estados membros, os quais, em nome e em representação do voto popular, transferiram aquelas competências para a União Europeia, pelo que vir agora fundamentar a sua decisão na violação do direito de voto, desse mesmo voto que permitiu aquelas transferências de poderes para a União Europeia, é abrir uma porta pela qual tudo pode entrar, desde as actuações da UE em matérias de pouco relevância a matérias de grande relevância e importância para a acção de todos, EM e UE.
A invocação do voto popular para justificar a fundamentação da decisão não deixa de raiar a demagogia, tantos têm sido os sentidos atribuídos a esse voto, como a Alemanha sabe melhor que qualquer outro país; mesmo admitindo o conhecimento preciso do sentido dado a esse voto, sabe-se que nas democracias representativas não há uma sanção jurídica para um exercício de poder divergente do sentido do voto, mas apenas uma sanção política que consiste na não renovação do mandato de quem não respeitou o sentido com que aquele voto foi atribuído.
Enfim, se cada Estado Membro interpretasse a transferência de poderes nos termos em que o faz o tribunal alemão, ou seja, considerando-se vinculado apenas e segundo a sua própria interpretação, teríamos no seio da UE, relativamente a cada assunto da sua competência, tantos regimes quantas as interpretações dos tribunais nacionais.
18 -  – Apenas mais duas notas para concluir a posição defendida no número anterior. Dir-se-á que a atribuição da jurisdição aos tribunais nacionais para aferir da constitucionalidade das normas “europeias” em matéria de direitos liberdades e garantias, como matéria não transferida, está hoje prejudicada, não apenas por os tratados europeus, principalmente a partir de Maastricht, terem passado a incluir normas sobre aquelas matérias, mas também pela aprovação em 2016 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A nossa interpretação está porém longe de ir nesse sentido. Tanto as referências aos direitos fundamentais nos tratados como a aprovação da Carta dos Direitos Fundamentais apenas significam que a UE se obriga a actuar de acordo com aquelas regras e princípios, mas de forma alguma quer dizer que os Estados Membros tenham transferido essas matérias para a competência, exclusiva ou partilhada, da União Europeia (ver art.º 6.º do TUE). Nestas matérias, os Estados não abdicaram dos fundamentos que regulam a sua actuação relativamente às pessoas em geral e aos seus cidadãos em particular, nem transferiram essa competência para nenhuma outra entidade ou organização de que façam parte, podendo dizer-se, contrariamente ao que sucede com a generalidade das outras matérias, que, neste estrito domínio, foram os Estados que obrigaram” a União Europeia a agir segundo aqueles padrões e não o contrário, como acontece com a generalidade dos assuntos de natureza económica e financeira, por exemplo.
Neste sentido, o citado art.º 8.º, n.º 4 da Constituição Portuguesa, “(…) com respeito pelos princípios fundamentais do Estado Democrático”.
A segunda questão tem a ver com a objecção que se poderia levantar ao primado do direito comunitário no domínio das matérias transferidas. Pode dizer-se, e é verdade, que entregando aos órgãos jurisdicionais da UE a competência para aferir da regularidade dos actos praticados pela UE, eles, como sempre acontece com os órgãos das organizações internacionais, terão tendência a concentrar nessas organizações o máximo de poder possível, dai resultando prejuízo para os Estados que se vêem privados de pelos seus próprios órgãos imporem algumas limitações àquelas tendências.
Embora haja muito de verdade nesta afirmação, o que parece evidente é que não poderá ser pela via das jurisdições nacionais que o problema deva ser resolvido. Os Estados poderiam e deveriam, pelo menos relativamente a um núcleo de matérias por eles consideradas essenciais, ter admitido a possibilidade de em caso de diferendo poderem recorrer a um terceiro imparcial que dirimisse a questão. Uma espécie de tribunal arbitral constituído por árbitros indicados por cada uma das partes e outros por acordo de ambas as partes. Se o não fizeram, poderão a todo o tempo fazê-lo…

19 - A recente decisão do tribunal alemão sobre a actuação do BCE é, assim, uma decisão que incide sobre matéria para a análise da qual aquele tribunal carece de competência. É que nem sequer se trata de analisar se a actuação do BCE é conforme ao art.º 123.º, ou seja, se o viola ou não aquele preceito, mas sobre se a interpretação e aplicação daquele artigo por parte do BCE respeitou um princípio prudencial de proporcionalidade. O tribunal alemão actuou como se estivesse a analisar um acto interno de natureza administrativa praticado ao abrigo de um poder discricionário, aferindo da oportunidade da actuação como se estivesse a aferir da sua legalidade. Supondo que o poderia fazer – e não pode – mesmo internamente um acto daquela natureza somente poderia ser anulado se se tivesse provado uma escandalosa situação de desproporção na actuação do seu autor, usando, por exemplo, um meio manifestamente excessivo para alcançar um resultado a que se poderia chegar por outra via ou a que não é legítimo chegar mediante a utilização de um meio manifestamente desproporcional face ao resultado pretendido.

20 - A sentença, aliás, assenta num sofisma inadmissível: O TC alemão diz que aceita o primado do direito da União Europeia e simultaneamente arroga-se o direito de impor a sua interpretação das normas comunitárias às autoridades europeias e exigir a sua aplicação segundo a interpretação que ele próprio faz. O que o tribunal alemão pretende, em última instância, é impor uma política do euro conforme aos interesses da Alemanha. E por aqui também se pode concluir que as tais reservas que o TC alemão manifestou em 1993 quando permitiu a ratificação do Tratado de Maastricht adquirem com o decurso do tempo, principalmente tendo em conta a posição que a Alemanha sempre tem defendido em matéria de política monetária, a configuração de uma espécie de reserva mental – a Alemanha aceita a moeda única desde que ela seja a moeda alemã!

21 – É, aliás, duvidoso que o TC alemão, internamente, tivesse da sua jurisdição, relativamente ao Bundesbank, uma compreensão tão ampla como a que tem relativamente ao BCE. A sua badalada independência certamente o impediria de trilhar uma via semelhante à trilhou para censurar a política do BCE. Por isso, não será ousado afirmar que a sentença do tribunal alemão é um gesto inadmissível de arrogância política. É um atentado ao multilateralismo baseado no puro interesse nacional. Ela está para a UE como as sanções americanas ao Irão ou à Rússia para a comunidade internacional. Actos de puro terrorismo político.

22 - O Tribunal Constitucional o que no fundo está a dizer é que somente aceita uma política do Banco Central Europeu que seja conforme aos ditames do Bundesbank. O que além de ser uma aberração jurídica, é uma covardia política, já que o acto jurisdicional não é o meio adequado para proferir uma afirmação de natureza eminentemente política.