terça-feira, 2 de outubro de 2018

RONALDO E AS VIOLAÇÕES




O “ME TOO”
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A violação é um crime grave. A sua gravidade decorre do uso da violência ou de ameaça grave empregue com o objectivo de constranger alguém a ter relações sexuais indesejadas, sejam elas com o autor da violência ou da ameaça, sejam com terceiros. Para que a ameaça seja grave não basta que ela tinha sido levada a sério pela pessoa ameaçada, é também necessário que exista uma forte probabilidade de essa ameaça se concretizar, susceptível de influenciar decisivamente a vontade da pessoa ameaçada. O que significa, portanto, que o contexto, em sentido amplo, em que a ameaça ocorre é certamente um elemento decisivo para avaliar da sua gravidade.

Vamos deixar de parte as violações em série cometidas em contextos muito específicos, como, por exemplo, as violações em tempo de guerra, tanto pelos agressores, como pelos libertadores. Na nossa memória colectiva perdurou durante mais de um século a recordação das violações cometidas pelos invasores franceses, durante as guerras napoleónicas, bem como os actos de vingança heroicamente praticados por algumas das agredidas. Igualmente ficaram famosas as violações ocorridas no fim da Segunda Guerra Mundial, depois da capitulação da Alemanha, imputadas, no quadro de uma propaganda política bem orquestrada, na sua totalidade aos soldados do Exército Vermelho. Sabe-se hoje, por investigações feitas pela própria Alemanha, que os milhares e milhares de crianças que nasceram depois da capitulação tinham como progenitores soldados de todas as forças de ocupação (americanos, ingleses, soviéticos, franceses, etc.). Mas como o que passou para a posteridade foram os testemunhos das berlinenses, bem como a famosa resposta que Estaline deu ao escritor jugoslavo, Milovan Djilas, quando este manifestou a sua reprovação pelo comportamento dos soldados do Exército Vermelho em Berlim (“Conversa com Estaline”), ficou desde então assente no imaginário popular que os violadores eram os russos.

Hoje, a fazer fé no que se vai lendo na imprensa e no que é diariamente transmitido pelas televisões, somos igualmente levados acreditar que a violação é uma prática corrente em muitos países desenvolvidos (e falamos nestes porque nos outros, infelizmente, a violência sexual, principalmente sobre as mulheres, nem notícia é, salvo quando atinge proporções de gravidade extrema, como ocorre frequentemente na União Indiana), em estratos sociais e profissões em que era suposto tais práticas não ocorrerem, salvo residualmente como típicas manifestações de comportamentos desviantes penalmente puníveis.

De facto, parece ser esse o caso dos Estados Unidos em que, a fazer fé no que se vai dizendo e até nalgumas sentenças já proferidas, parece poder chegar-se à conclusão que estamos na presença de um pais repleto de predadores sexuais por todos os lados que atacam, quais vítimas indefesas, pessoas que procuram fazer carreiras profissionais que lhes granjeiem fama, notoriedade, dinheiro e prestígio. Estamos certamente muito longe das pessoas ingénuas, desprotegidas e dependentes que são vítimas de violência sexual em contextos em que somente o instinto animalesco prevalece.

Ronaldo está sendo vítima retroactiva do “Me too”, que é a expressão da vergonhosa hipocrisia em que o “politicamente correcto” se refugia, por incapacidade de combater no verdadeiro terreno político as causas profundas que não só levaram à sua derrota pelo populismo, o nacionalismo e a xenofobia como as estão perigosamente ampliando em todo o território americano.

É por isso que quando assistimos a esses desavergonhados depoimentos do “Me too” não podemos deixar de enaltecer a coragem de Marilyn Monroe quando uma vez disse: “Para chegar onde cheguei tive muitas vezes que me pôr de joelhos…”. Certamente, que há muitas vezes aproveitamento de quem se encontra em posição de chefia ou de decisão, mas há igualmente recíproco aproveitamento de quem cede para obter o efeito procurado. Como podem, várias décadas depois, virem essas pessoas queixar-se daquilo em que conscientemente participaram, realizando um negócio bilateral, tipicamente amoral, em que cada um procura um resultado que não estava seguro de alcançar pelas vias normais?

Ronaldo, em Las Vegas, a pátria do jogo, da prostituição e de tudo o que de mais sórdido a América pode ter, foi vítima, insisto, retroactiva do “Me too”. Basta atentar nos factos, relacioná-los com o que entretanto se passou nos Estados Unidos neste novo tipo de feminismo hipócrita, para logo se perceber onde isto pode chegar, bem como as razões que verdadeiramente motivam estes comportamentos.

A situação é portanto grave. Gravíssima. Não pela sua gravidade intrínseca, que seria verdadeiramente irrelevante em qualquer país civilizado, mas por ter ocorrido nos Estados Unidos. As consequências podem ser as mais funestas. E mesmo que elas sejam apenas de natureza pecuniária - e não acreditamos que fiquem por aí – as penalizações do fisco espanhol não passariam de uma brincadeira de crianças quando comparadas com as que estão para vir. Oxalá me engane…


domingo, 23 de setembro de 2018

Sobre FRANCO NOGUEIRA




O IMUTÁVEL E O EFÉMERO
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Seixas da Costa escreveu no seu blogue um texto sobre Franco Nogueira para assinalar o centenário do seu nascimento.

O dito texto termina com o parágrafo a seguir transcrito:

Há dias, alguém me perguntava o que ainda sobrevive dos tempos de Franco Nogueira na nossa cultura diplomática contemporânea. Respondi que praticamente nada, porque essa herança seria, afinal, a de Salazar, de quem Franco Nogueira foi um criativo seguidor e intérprete. Nem mesmo já sobram os resquícios de um tropismo soberanista anti-europeu, da desconfiança no multilateralismo, do anti-americanismo ou do preconceito anti-espanhol, reflexos que, por alguns anos ainda, emergiram aqui ou ali, em democracia, como parte da herança política subliminar da diplomacia da ditadura”.

Nunca até hoje tinha encontrado um texto que pudesse com tanto rigor caracterizar o que tem sido a política externa portuguesa depois de 25 de Novembro de 1975.

De facto, da herança de Franco Nogueira não resta nada e da de Salazar, seu inspirador e conceptualizador, menos ainda. Portugal é hoje uns pais que até 1991 teve como política externa a política da NATO, o mesmo é dizer dos Estados Unidos, com excepção – a verdade histórica não deve ser omitida – da relação com Angola, em que tanto Cavaco como Durão Barroso souberam sobrepor o interesse nacional à lógica implacável da Guerra Fria, apesar da tenaz oposição de Mário Soares e de largos sectores do PS, bem como do PSD, nomeadamente os ex-marxistas oriundos da linha chinesa. Sem que a NATO tenha deixado de pairar impositivamente sobre a nossa política externa, como se viu no apoio dado à primeira grave violação da Carta das Nações Unidas, em 1999 (agressão à Jugoslávia), depois de 1991, mais concretamente da negociação e entrada em vigor do Tratado de Maastricht, a política portuguesa passou a ser, em tudo quanto é determinante para o futuro do país, a da União Europeia, o mesmo é dizer a política imposta pela complexa burocracia de Bruxelas, orientada nas questões fundamentais pela política da Alemanha e seus incondicionais apoiantes.

Certamente que se batalhou diplomaticamente por certo tipo de interesses como, por exemplo, sobre a cultura da cebola e de outras minudências. O que não houve, o que se perdeu completamente, foi o sentido da independência e dos supremos interesses nacionais soberanamente definidos.

O pânico de ficar isolado passou a fazer parte indissociável da política externa portuguesa. Não se trata de fazer a defesa do “orgulhosamente sós”, que aliás não terá sido advogado no sentido pejorativo com que tende a ser entendido, trata-se de não ter medo de ficar só quando assim o impõe o interesse nacional Do “orgulhosamente sós”, entendido à letra, passou-se para o ridículo “pelotão da frente”, sabendo nós que nesse pelotão da frente só episodicamente lá estamos e sempre como “aguadeiros”, que são os que no ciclismo levam a água ao camisola amarela ou aos chefes de equipa.

Ainda o americano não tinha acabado de fazer a sua exigência de mais dinheiro para a NATO e já nós estamos a dizer que vamos investir na defesa mais do que a percentagem exigida, enquanto os verdadeiramente ricos, e que realmente tiram algum proveito da organização, relutam em aumentar a sua contribuição. Ou a exigir o reconhecimento do Kosovo e lá estamos nós a fazer parte desse ridículo número! A Alemanha anuncia a imposição de um tratado orçamental, talhado exclusivamente à medida dos seus interesses e logo estamos nós a adoptá-lo acriticamente, só por milagre o não metendo na Constituição. E depois de o adoptar somos incapazes de afirmar o óbvio: baixaremos o défice na exacta medida em que a Alemanha reduzir o superavit. Enfim, os exemplos poderiam repetir-se ad nauseam.

Só quem é capaz de defender os seus interesses será respeitado. Os aguadeiros são muito simpáticos, dão muito jeito aos grandes, mas nunca estarão lá no cimo a discutir e intervir no que realmente importa. Hoje fazem fila, esperam meses, às vezes anos, para ter a efémera glória de uma fotografia na Casa Branca, jamais lhes acontecendo o contrário: ser a Casa Branca a pedir para falar com eles!

As heranças têm uma particularidade interessante: podem ser recebidas ou repudiadas. E as recebidas podem sê-lo pura e simplesmente ou a benefício de inventário.

Se forem recebidas pura e simplesmente o herdeiro vai responder pelas dívidas da herança, mesmo que o seu activo seja muito inferior, a menos que consiga demonstrar que o património activo é inferior ao passivo. O que dá uma trabalheira dos diabos e nem sempre se consegue.

Se, pelo contrário, a herança for recebida a benefício de inventário, o herdeiro nunca corre o risco de responder por um passivo superior ao activo.

Na política passa-se um pouco o mesmo. Há heranças que são para repudiar, pura e simplesmente, mas há outras que devem ser recebidas a benefício de inventário – expurga-se o passivo (que é sempre um pesadelo) mediante a afectação do activo necessário para o neutralizar e fica-se com a parte boa e incólume do activo.

E na política externa de Salazar, posta eficazmente em prática pelo próprio, perante contendores poderosos, e depois também com idêntico brilho por Franco Nogueira, há um activo que nunca deveria ter sido repudiado pelo Governo Português e, obviamente, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, já que ele representa, em qualquer época histórica e qualquer que seja a forma de governo, o que de mais importante deve guiar a política externa de um Estado – a defesa dos interesses nacionais sem submissão nem subjugação a poderes externos.

Claro que hoje as mentalidade dominadas pelo politicamente correcto, com reacções pavlovianas antecipáveis ou, o que é pior, a incapacidade de compreender e distinguir o que é verdadeiramente importante e matricial do que não passa de uma situação conjuntural associada a um determinado contexto, tendem a desprezar ou a desvalorizar o que formalmente deve ser salvaguardado e seguido.

Não vou dar exemplos históricos do que se passou entre nós no domínio da política externa durante o regime de Salazar. Seria pretensioso fazê-lo. Os bons livros de história estão ai ao alcance de qualquer leitor que tenha curiosidade por estas matérias. Não se trata, como é óbvio, em estar de acordo ou em desacordo com os objectivos que se tinha em vista ou que foram alcançados. Trata-se de algo muito mais importante, trata-se de princípios que nunca deveriam ser postergados em política externa, devendo, pelo contrário, fazer parte dos ensinamentos a adquirir por qualquer aprendiz de diplomata, já que eles são válidos qualquer que seja a forma de governo e qualquer que seja, conjuntural ou estruturalmente, a definição do interesse nacional!

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A PROPÓSITO DO MANDATO DA EX-PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA


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UM EXEMPLO A EVITAR


Vivemos numa sociedade muito mediatizada muito por força do papel que os áudio visuais, nomeadamente as estações de televisão, passaram a desempenhar na formação da nossa opinião sobre os assuntos integrados na sua agenda mediática.

O caso da justiça é exemplar. O que todo o cidadão bem formado deseja é que a lei seja eficaz. A eficácia da lei não se mede apenas pelo seu acatamento voluntário, o que acontece na esmagadora maioria dos casos em sociedades socialmente estabilizadas, mas também pelo efectivo cumprimento da reacção nela prevista quando não é voluntariamente cumprida.

Este segundo aspecto da questão, embora seja relevante em todos os domínios que a lei alcança, torna-se particularmente importante no domínio da reacção penal, exactamente por o direito penal ser o ramo do direito que defende os valores fundamentais da convivência social, que assegura a paz e a tranquilidade públicas, tornando a vida em sociedade segura se a lei for eficaz ou insegura se reiteradamente o não for.

Se relativamente ao primeiro aspecto da questão, cumprimento voluntário da lei, o consenso social e as autoridades de prevenção criminal desempenham um relevantíssimo papel, sendo, de ambos, o consenso social de longe o mais importante, já quanto ao segundo – reacção ao incumprimento da lei – o papel fundamental tem de ser desempenhado pelas autoridades de investigação criminal. E o bom ou mau desempenho desse papel não depende da exibição que se faça do seu exercício, mas dos resultados desse exercício.

Dentre estas autoridades, o papel primordial cabe ao Ministério Público. “O Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei”.

Como é também sabido por todos, a corrupção é uma das pragas sociais dos nossos dias. Embora a corrupção, genericamente entendida, seja quase tão velha quanto a existência das sociedades politicamente organizadas, ela adquiriu na actualidade uma dimensão qualitativa e quantitativa nunca antes vista. Embora as suas causas sejam difíceis de enumerar, não falta quem veja na sociedade neoliberal contemporânea, dominada pelo capital financeiro, a causa primeira do seu extraordinário desenvolvimento. Os grandes fluxos monetários que passam sob o olhar codicioso de quem os administra ou simplesmente os opera, as fabulosas somas que se podem ganhar a partir do nada, com base em especulações de toda a ordem, a brutal desigualdade na distribuição do rendimento, parecem tornar muito tentadora a possibilidade de enriquecer ou aumentar o património sem, aparentemente, grande dano para a realidade circundante. Ou seja, o chamado contra impulso que defende as consciências individuais das tentações ilícitas, é agora muito fraco e simultaneamente desprovido de uma assinável censura.

Seja ou não uma das causas primeiras da corrupção, cabe ao Ministério Público combatê-la nos termos da lei e no escrupuloso respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Sem esquecer que a execução da política criminal é definida pelos órgãos de soberania, cabendo ao Ministério Público participar na sua execução, dependendo dos resultados da sua acção o êxito ou inêxito dessa política, tem-se insistido muito, nos últimos tempos, no papel desempenhado pela ex- Procuradora Geral da República, no combate à corrupção, como se de um “programa de governo” do Ministério Público se tratasse.

Este é o primeiro grande equívoco. O Ministério Pública não pode ter uma agenda que se confunda com um programa político. E muito menos ter uma actuação pública decalcada da típica acção política dos partidos que concorrem entre si com programas e projectos susceptíveis de cativarem o voto dos cidadãos.

O papel do Ministério Público não é, nem pode ser, esse. O Ministério Publico tem de assegurar resultados, seja no combate à corrupção, seja em qualquer outro domínio do ilícito penal, mas sempre com respeito pelos direitos dos cidadãos. O Ministério Público não tem, nem pode ter, uma agenda política, nem pode nem deve sujeitar o exercício das suas funções ao condicionamento político seja da comunicação social, seja dos partidos. O Ministério Público não deve participar nem fazer parte do espectáculo mediático.

Não foi isso aquilo a que assistimos no mandato no mandato de Joana Marques Vidal. O mandato da ex-procuradora ficou marcado pela partidarização que dele fizeram a direita mais reaccionária – Observador, Cristas e Passos -, mas também – e este especto será seguramente o mais grave – pela instrução dos chamados processos mediáticos na “praça pública”, muito em consonância com os jornais sensacionalistas e as televisões que procuram audiências a qualquer preço. As violações do segredo de justiça foram constantes, a transcrição “cirúrgica” de peças processuais em jornais transformou-se num meio unilateral, e sem garantias, de acusação, a tentativa de formação de uma opinião pública que só pode ter por efeito pretendido condicionar a acção da magistratura, o espectáculo da justiça como componente do espectáculo da política, as buscas e detenções que certos meios de comunicação acompanham a par e passo, tendo-se chegado ao ponto de alguns deles terem marcado presença nos locais das diligências antes da chegada das próprias autoridades, tudo isto é a prova provada de que há um efeito ou outros efeitos que se pretendem assegurar para além daquele que deveria ser o efeito de qualquer investigação criminal.

Este é infelizmente um legado do mandato de Joana Marques Vidal, pois embora se não possa dizer que a violação do segredo de justiça tenha começado no seu mandato, é inequívoco que foi no seu mandato que esta prática se tornou corrente em processos cirurgicamente escolhidos.

Do ponto de vista dos resultados, com observância da lei e respeito pelos direitos dos cidadãos, o que sobressai é a ausência de resultados seguros. Dos chamados processos mediáticos, há uma ou outra condenação, sob recurso, algumas acusações ainda sem instrução contraditória aberta e muita, muita, propaganda e espectáculo à volta dos processos em curso.

No polo oposto, como exemplo da mais completa ineficácia da justiça, temos vários exemplos relacionados com material comprado para o Ministério da Defesa, entre os quais avulta pelo seu significado e importância o chamado “processo dos submarinos”, julgado na Alemanha, com corruptores activos identificados e condenados, mas arquivado em Portugal …por ausência de corrupção passiva ou, o que é pior, muito pior, por prescrição. Dá-se infelizmente a circunstância, certamente por acaso – puro acaso – de a compra do referido material de guerra ser da responsabilidade de alguém que à época da sua nomeação como Procuradora Geral da República pertencia ao governo que a nomeou e cujos principais membros desse governo continuaram até ontem a pugnar pela sua recondução! Idêntica ineficácia poderia apontar-se a outro caso, contemporâneo no tempo e relacionado com os mesmos actores políticos, de um partido político ter sido beneficiado com um número infindável de pequenas doações numa manifesta operação destinada a contornar a lei, quer quanto aos montantes doados quer quanto à proveniência do dinheiro. Também neste caso nada aconteceu. Como nada aconteceu - ou melhor, aconteceu: foi arquivado – o processo da Tecnoforma, não obstante o processo instaurado pelo Organismo Europeu Anti-Fraude.

O facto de nem sempre se conseguir obter os resultados pretendidos é normal na Justiça. Há regras a cumprir, há direitos a respeitar, há acima de tudo a máxima de que mais vale deixar impune um criminoso do que condenar um inocente. Isso faz parte do sistema em que vivemos. Mas também faz parte deste sistema que situações desta natureza ocorram aleatoriamente e não tanto e apenas em determinados sectores ou com certas pessoas.

Tudo isto descredibiliza a Justiça, que é o pior que pode acontecer num Estado de Direito. Por isso fazemos sinceros votos que a nova Procuradora Geral da República tenha um mandato recheado de êxitos, começando esses êxitos por um combate eficaz à violação do segredo de justiça e à exclusiva tramitação dos processos nos tribunais!




sexta-feira, 14 de setembro de 2018

NOTAS SOBRE O SISTEMA ELEITORAL AMERICANO




A PROPÓSITO DE UM ARTIGO DE FRANCISCO LOUÇÃ

(Expresso, 01/09/18, "A Democracia americana é doente")
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I

Comecemos pelo fim: o que desvirtua o sistema eleitoral americano é o dinheiro. Pode parecer uma observação simplista, mas é o dinheiro, por comparação com o que se passa noutros países, que mais poderosamente contribui para desvirtuar os resultados eleitorais. Nos Estados Unidos quem não conseguir arranjar dinheiro, muito dinheiro, não é eleito para nada!

Dito isto, e recomeçando agora pelo princípio, o sistema eleitoral americano foi muito elogiado por Tocqueville, em Democracia na América, por ter sido nos Estados Unidos que, pela primeira vez, se pôs em causa, na prática, o princípio enunciado por Aristóteles e até então nunca desmentido segundo o qual a democracia só era viável como forma de governo em comunidades até cinco mil habitantes. A invenção do sistema representativo, com elementos diversos de democracia directa e semidirecta bem como a persistência, embora residualmente, de manifestações do mandato imperativo, permitiu experimentar uma nova forma de governo nunca antes ensaiada tanto no Estado antigo como no Estado moderno.

Marx, que foi colunista assíduo de jornais e revistas americanas, enquanto lho permitiram, apesar de ter escrito cerca de um século depois da independência, várias vezes se referiu ao sistema político americano e escreveu textos (pouco conhecidos) muito interessantes sobre a Guerra Civil, tendo inclusive trocado correspondência com Abraham Lincoln, não deixando de manifestar o seu apreço pela Revolução Americana, nomeadamente quando confrontada com o que se passava na Europa à época.

Pois bem, o sistema eleitoral americano é algo que não pode ser desligado da sua história, do nascimento no século XVIII de uma grande Estado democrático do outro lado do Atlântico, onde todos os sonhos se poderiam concretizar e onde os pesadelos da velha Europa jamais teriam “direitos de cidadania”. Era isto o que se supunha viesse a acontecer e foi muito neste novo espírito que nasceu o seu sistema político bem como a sua expressão eleitoral.

A segunda nota a ter em conta tem a ver com a especificidade do sistema político americano e também do seu sistema eleitoral. Olhar para um ou para outro com “olhos europeus”, baseando a análise nos pressupostos dos sistemas políticos europeus, é meio caminho andado para o não compreender. Portanto, nada melhor do que atender à sua história para o contextualizar e interpretar devidamente.

II

Comecemos pela eleição do Presidente. O Presidente americano é eleito por um colégio eleitoral restrito composto por representantes dos Estados. A Constituição americana prevê que cada Estado escolha, como entender, os seus eleitores presidenciais em número idêntico à soma dos seus representantes (deputados e senadores) no Congresso. Originariamente era o poder legislativo de cada Estado que escolhia os seus representantes no colégio eleitoral que elege o presidente. Por outras palavras, o Presidente era escolhido pelos parlamentos dos Estados. Só posteriormente, na primeira metade do século XIX, os Estados foram gradualmente devolvendo aos seus eleitores a escolha dos eleitores presidenciais. O último a fazê-lo foi a Carolina do Sul, em 1860. E é assim que hoje é eleito o Presidente dos Estados Unidos – por um colégio eleitoral restrito, cujos membros são eleitos por voto directo em cada Estado, Washington DC incluído. Este colégio, constituído por 538 membros, representa os 50 estados da União mais os representantes do Distrito Federal, sendo aquele número correspondente à soma dos membros do Senado (100), da Câmara de Representantes (435) e de 3 de Washington DC. Os membros deste colégio eleitoral são eleitos nos respectivos Estados, por referência aos resultados eleitorais, em cada Estado, dos candidatos presidenciais. A cada Estado cabe um número eleitores correspondente ao número dos seus representantes no Congresso, ou seja, o número de deputados (Câmara de Representantes) mais o de Senadores (Senado). O número de representantes (deputados) por Estado é fixado de acordo com o seu peso demográfico na União, segundo o último censo, enquanto o número de senadores é igual em todos os Estados (2), qualquer que seja a sua população ou área. Portanto, cada Estado conta com tantos membros no colégio eleitoral quanto o número de deputados que o representam na Câmara de Representantes (representação fixado em função do seu peso demográfico) mais o número de Senadores que o representam no Senado (2). Assim, por exemplo, o Estado de Nova Iorque, representado na CR por 29 deputados e no Senado por 2 senadores, participa no colégio eleitoral com 31 grandes eleitores enquanto o Wyoming com 1 representante e 2 senadores apenas tem 3.

Como o número de senadores é o mesmo em todos os Estados (2 por cada Estado), o maior ou menor peso eleitoral de cada Estado advirá do seu número de deputados, estabelecido, como se já disse, em função do seu peso demográfico no conjunto da União.

Em cada Estado, o candidato que ganhar, ganha todos os votos, “Winner-take-all”, sendo portanto eleitos para o colégio eleitoral todos os representantes que o apoiam, salvo no Nebrasca (5) e no Maine (4) onde a eleição se faz pelas circunscrições (distritos) eleitorais (de que mais adiante falaremos) para a Câmara dos Representantes, podendo portanto acontecer que num distrito ganhe um candidato e noutro, outro. Os dois votos do Senado, tanto num Estado como noutro, são atribuídos ao candidato que no Estado tiver maior número de votos. Essa a razão por que se costuma dizer que nestes dois Estados vigora o sistema proporcional, embora seja, como resulta do exposto, uma proporcionalidade calculada de modo muito diferente da que vigora Europa em muitos Estados.

Para ser eleito pelo colégio eleitoral, o candidato a Presidente tem de reunir, no mínimo, 270 votos. Este método de eleição presidencial baseado no “compromisso de Connecticut” foi acordado na “Convenção de Filadélfia, de 1787, e entrou em vigor em 1789. Ele é o resultado de uma sábia combinação entre os dois factores fundamentais de um Estado federal – os Estados e a população.

Se nenhum candidato obtiver 270 votos, caberá à Câmara dos Representantes eleger o Presidente e ao Senado, o Vice-presidente. Foi por esta via que em 1800 foi eleito Thomas Jefferson e em 1824, John Quincy Adams.

A evolução havida demonstra que foi sendo atribuído ao voto popular um poder que inicialmente não tinha, deixando todavia intocado o poder dos Estados. A prevalência tende ser do voto popular, no sentido de que é, em princípio, eleito o candidato que tiver mais votos. Mas pode não ser, como por cinco vezes já aconteceu: em 1824 (John Quincy Adams contra Andrew Jakson); em 1876 (Rutherford B. Heyes contra Samuel J. Tilden); em 1888 (Benjamin Herrison contra Grover Cleveland); em 2000 (Georges W. Bush contra Al Gore); e em 2016 (Donald Trump contra H. Clinton), tendo sido esta última a maior diferença de sempre, cerca de 3 milhões de votos.

Muito mais frequentemente ocorre o contrário: o candidato derrotado ganhar em mais Estados. Hoje, bastará ganhar em onze Estados para ser Presidente da América, desde que esses Estados sejam, obviamente, os mais populosos.

O Presidente dos EUA é eleito para um mandato de 4 anos, não podendo, a partir de 1951, nenhuma pessoa ser eleita para o cargo mais que duas vezes, de acordo com a 22.ª Emenda, aprovada em 1947. Apesar de deste ser o “costume constitucional” iniciado com Washington, que recusou um terceiro mandato, tendo daí para frente, até Roosevelt, todos os presidentes respeitado aquela limitação, Roosevelt, prevalecendo-se do silêncio da Constituição, candidatou-se quatro vezes tendo sido eleito outras tantas. Para prevenir idênticas situações no futuro, o Congresso aprovou a “emenda” atrás referida que mais não fez do que positivar o que já anteriormente se entendia ser a regra. Esta emenda, aprovada em 1947, entrou em vigor quando dois terços dos Estados a ratificaram, o que aconteceu em 1951.

Não compreender isto é não conhecer a história dos Estados Unidos. Daí que não seja apropriado, numa federação como a americana, estar a falar na eleição directa por voto popular fora do contexto dos Estados.

III

Foi igualmente na Convenção de Filadélfia que se criou o sistema bicameral que ainda hoje existe. Nessa Convenção ficou acordado que o Legislativo, denominado Congresso, seria constituído por duas câmaras - uma destinada a representar a população dos Estados, proporcionalmente ao seu peso demográfico e a outra paritária, destinada a representar os Estados. A primeira – a câmara baixa - deveria ser uma câmara mais perto da opinião pública e a outra – câmara alta – mais perto dos interesses do Estado (Federal) e de salvaguarda da autonomia dos Estados ( federados).

O Congresso dos Estados Unidos, constituído por 535 membros, é assim composto por duas câmaras, a Câmara de Representantes (435 deputados) e o Senado (100 senadores).

Os mandatos da Câmara de Representantes são de 2 anos, realizando-se a sua eleição nos anos par, na terça-feira seguinte à primeira segunda-feira de Novembro e os do Senado, de 6 anos, sendo aproximadamente um terço dos seus membros renovado cada 2 anos, no mesmo ano e data da eleição para a Câmara dos Representantes. Portanto, a meio de cada mandato presidencial há eleições intercalares, sendo as da Câmara dos Representantes para eleger toda a Câmara (e não para renovação parcial, como se diz no artigo acima citado) e as do Senado, como sempre, apenas para o renovar parcialmente (cerca de um terço).

Como já acima se disse, o número de deputados a eleger por cada Estado é estabelecido em função do seu peso demográfico no contexto da União, de acordo com o censo feito cada dez anos. A regra é de cada representante não poder representar menos de 30 mil habitantes, embora cada Estado, no mínimo, tenha direito a 1 representante. O número de representantes está fixado em 435 desde 1911, tendo esse número sido temporariamente aumentado após a entrada na União, em 1959, de dois novos Estados, Havai e Alasca. Todavia, 4 anos depois regressou-se aos 435.

Os Estados com mais de um representante dividem-se, para efeitos eleitorais, em tantos círculos (chamados distritos) quanto o número de representantes a que têm direito. A Califórnia, que é o Estado mais populoso da União, tem 53 representantes na Câmara, enquanto o Wyoming, que é o menos populoso, tem apenas direito a 1. Portanto, na Califórnia há 53 distritos eleitorais e no Wyoming 1.

Os Estados têm o direito de organizar os círculos eleitorais (distritos). Nalguns Estados essa competência é exercida por associações independentes dos partidos, noutros, pelo poder legislativo. Segundo a Constituição americana, os distritos, havendo mais do que um, devem ter sensivelmente o mesmo número de habitantes. Embora haja liberdade de delimitação dos distritos, segundo o Voting Rights Act de 1965, os Estados não têm o direito de delimitar os distritos de modo a reduzir a força do voto das minorias étnicas, não sendo, porém, proibida a delimitação dos distritos para ganho político, desde que respeitada a limitação anteriormente referida, embora os tribunais tenham invalidado delimitações votadas pelos legislativos estaduais por as considerarem arbitrárias

Portanto, desde que o poder de voto das minorias étnicas esteja salvaguardado – e há muitas decisões jurisprudenciais sobre essa matéria – não se pode dizer que exista uma batota generalizada na delimitação dos distritos, como se diz no artigo em causa, porque o distrito que hoje tem determinados limites, poderá amanhã ter outros se o poder legislativo do Estado mudar de mãos e essa nova delimitação não for puramente arbitrária.

O Distrito Federal (Washington DC), embora participe no colégio eleitoral que elege o Presidente da República, não tem representantes no Congresso. Mas tem direito a um representante, tal como os territórios associados, que integra os comités da Câmara de Representantes, sem direito a voto nas matérias de natureza legislativa.

Com excepção da Louisiana, nos demais Estados são eleitos os candidatos que, em cada distrito, tiverem mais votos (maioria simples é suficiente). Na Louisiana, exige-se maioria absoluta (metade mais um), havendo nova eleição entre os dois candidatos mais votados, se nenhum a tiver obtido na primeira volta.

O Presidente da Câmara de Representantes está na segunda linha de sucessão ao cargo de Presidente da República, imediatamente depois do Vice-Presidente, se o Presidente renunciar, for impedido de continuar ou morrer.

O Senado, a câmara alta do Congresso americano (embora a Constituição não adopte esta terminologia) é composto por 100 membros. Dois por Estado qualquer que seja a sua população ou a área territorial.

O mandato dos senadores é de 6 anos, sendo aproximadamente um terço dos seus membros eleito cada dois anos.

Em cada Estado nunca poderá haver a eleição simultânea 2 senadores, sendo, portanto, o círculo eleitoral para a eleição dos senadores correspondente aos limites do respectivo Estado. Em todos os Estados, com excepção de Louisiana e Washington, é eleito o candidato que tiver o maior número de votos (maioria simples é a regra). Naqueles dois Estados exige-se a maioria absoluta, havendo segunda volta entre os candidatos mais votados, se nenhum a tiver obtido na primeira.

Vagando um lugar, por morte, renúncia ou impedimento do senador, a Constituição americana permite que o poder legislativo dos Estados conceda ao Governador desse Estado o direito de preencher a vaga até que uma eleição especial tenha lugar. E todos os Estados, com excepção do Arizona, aprovaram leis concedendo ao Governador o direito de escolher quem preenche a vaga até à eleição especial antes referida.

O Vice-Presidente da República é o presidente do Senado, mas não vota, salvo para desempatar.

IV

As candidaturas não são livres na maior parte dos Estados, querendo isto dizer que somente os partidos registados nesse Estado têm o poder de apresentar candidaturas, o que demonstra o importante papel que os partidos desempenham nos Estados Unidos, inclusive como entes dotados de poderes públicos.

Originariamente os candidatos aos cargos políticos acima referidos eram escolhidos (nomination) pelos comités dos partidos, chamados “caucus”, assembleia de notáveis. Este sistema de cariz manifestamente “oligárquico” foi mais tarde substituído pelas “convenções”, assembleias de delegados, o qual dada a sua manifesta insuficiência democrática, acabou sendo gradualmente substituído pelas “primárias”.

Uma “primária” é uma eleição directa dos candidatos pelo conjunto dos eleitores, oficialmente organizada como se de uma eleição definitiva se tratasse.

Há três espécies de primárias: as fechadas, as abertas e as não partidárias.

Nas primárias fechadas, só os eleitores filiados em determinado partido podem votar nos candidatos desse partido; os eleitores devem declarar oficialmente a sua opção partidária – a filiação é pública e registada; cada eleitor recebe um boletim de voto do partido a que pertence no qual figuram os candidatos ao cargo a eleger, devendo assinalar o candidato em que vota. As que admitem votos de eleitores independentes chamam-se semifechadas.

Nas primárias abertas, não há filiação partidária pública; cada eleitor recebe dois (ou mais boletins de voto), devendo escolher o do candidato do partido em que vai votar, assinalando nele a sua escolha. Um eleitor filiado num partido pode votar no candidato de outro partido. Mas só pode votar uma vez. Também há primárias semiabertas: nestas o eleitor deve primeiramente indicar em que partido vai votar.

Nas primárias não partidárias, como as de Minnesota e do Nebraska, é distribuído um único boletim de voto com os nomes de todos os candidatos sem indicação do partido a que pertencem, devendo o eleitor assinalar aquele em que vota, sendo escolhidos os dois candidatos que recolham mais votos.

Há ainda sistemas mistos: primárias e “caucus” (escolha mediante múltiplas assembleias, que começando por ser de eleitores se vão gradualmente transformando em assembleias de representantes cada vez mais abrangentes até se chegar aos representantes últimos) e, como vimos, primárias semiabertas e semifechadas, o que dá lugar a uma grande variedade de regimes, consoante os Estados, o que torna o sistema eleitoral americano muito complexo e difícil de enquadrar em esquemas rígidos.

As primárias não tornaram desnecessárias as convenções já que para certas eleições o candidato acaba por ser designado pela convenção do partido a que pertence, tomando em linha de conta o resultado daquelas. Todavia, no Partido Democrata o peso dos superdelegados é muito significativo. Os superdelegados são personalidades não eleitas em primárias, mas com direito a voto na convenção, por inerência do lugar que desempenham. Os “caucus”, por seu turno, também continuam a existir em muitos Estados, umas vezes juntamente com as primárias outras como método único de escolha.

Por outro lado, as primárias, embora inventadas para diminuir o papel dos comités partidários, não lograram totalmente o objectivo a que se propunham, já que aquela influência acaba por continuar a ser decisiva na escolha dos candidatos a candidatos.

No Partido Democrata, os representantes dos candidatos são eleitos, em regra, segundo um sistema proporcional, desde que o candidato tenha recolhido uma percentagem mínima de votos (15%). No Partido Republicano, em regra, vigora o sistema oposto: quem ganha fica com todos os delegados.

V

Para terminar, uma última nota. Nos Estados Unidos o recenseamento eleitoral não é oficioso. Há, por múltiplas razões, muita dificuldade no recenseamento e também acontece que muitos recenseamentos são contestados em tribunal por ilegalidades diversas, sendo a mais comum a de fraude na residência.

Esta sim, esta é uma das maiores deficiências do sistema eleitoral americano, sendo óbvio que as dificuldades antes referidas são politicamente criadas por aqueles que temem o resultado do chamado “voto étnico”.

Todavia, já se viveram tempos muito piores. Tempos houve em que havia múltiplas restrições à inscrição nos cadernos eleitorais, com o propósito manifesto de afastar da eleição certo tipo de votantes. Até 1964, havia no Estados do Sul restrições múltiplas todas elas destinadas a impedir o voto dos afro-americanos. Pela 24.ª Emenda Constitucional essas restrições foram afastadas.

Já não fará tanto sentido afirmar a natureza inigualitária do voto nas eleições para o Congresso, sublinhando a sub-representação dos grandes Estados face à sobre representação dos pequenos Estados, tanto na Câmara dos Representantes como no Senado. Esta crítica assenta no errado pressuposto sobre a natureza do Estado americano. De facto, os Estados Unidos não só não um Estado unitário como também não são um “falso” Estado federal, de modo que qualquer crítica tendente a diminuir ou a menosprezar o papel dos Estados, bem como os elementos constitucionais que, na sua múltipla diversidade, asseguram a sua igualdade, tende a ser uma crítica desprovida de sentido.

Mais sentido faria sublinhar reduzida participação dos americanos nos actos eleitorais, nomeadamente nos de projecção nacional. Embora essa reduzida afluência às urnas seja em parte ditada pelas dificuldades daquilo a que entre nós chamamos “recenseamento eleitoral”, é preciso também não esquecer, para se ficar com uma correcta compreensão do fenómeno, que há entre o europeu e o norte-americano uma atitude diametralmente oposta quanto ao papel do Estado e, portanto, da importância das eleições.

Enquanto para o europeu, as eleições, devida ou indevidamente avaliadas, têm em vista investir em posições de mando pessoas que, representação do Estado, ajudarão a resolver os nossos problemas, para a maioria dos norte-americanos o Estado não seve para resolver problemas mas para criar problemas. Basta ver o êxito que tiveram certas campanhas eleitorais cujo programa assentava nesse slogan ou a fama que adquiriu o discurso da tomada de posse de John Kennedy quando afirmou: “Não se questionem sobre o que os Estados Unidos podem fazer por vós. Perguntem, antes, o que podem vocês fazer pelos Estados Unidos”.


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

MORAL OU POLÍTICA?


A PROPÓSITO DO "CASO ROBLES"
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À medida que o caso Robles se vai afastando no tempo, os ecos difusos que dele nos vão chegando são agora de natureza bem diferente dos que foram ouvidos quando o caso ainda estava na primeira página dos jornais, principalmente os que vão sendo veiculados por certos sectores da esquerda.


Esta esquerda alarmada ou, no mínimo, preocupada, com o aproveitamento que a direita pode fazer (e já está fazendo) do caso, tende, sem desculpar o comportamento de Robles, a insurgir-se contra críticas da direita e contra a inflexibilidade de alguns sectores da esquerda.
Por um lado, critica-se asperamente a hipocrisia da direita e, por outro, ataca-se o moralismo de uma certa esquerda, erigida em justiceira impoluta e incorruptível pela sua uma apreciação impiedosa dos comportamentos humanos, deixando, aqui e ali, a vaga insinuação de que essa inflexibilidade acaba objectivamente por fazer o jogo da direita.
Por outras palavras mais óbvias: critica-se a esta esquerda o seu pendor jacobino, para não dizer robesperreano ou leninista- estalinista.
Antes de mais, há aqui uma profunda incongruência lógico-racional nesta crítica. Com efeito, critica-se a direita numa perspectiva moralista (direita hipócrita que critica nos outros aquilo que ela própria faz) e simultaneamente acusa-se a esquerda de fazer uma crítica fundada numa moral superior. Afinal, se assim fosse, a moral servia para criticar a direita, por falta dela, mas servia também para criticar a esquerda por não prescindir dela. Moralismo ou sua ausência consoante as conveniências.


Estou muito longe desta forma ver as coisas, continuando fiel à essência do pensamento que manda, em primeiro lugar, ser realista, olhar as coisas como elas são e, em segundo lugar, separar a moral da política como campos diferentes que são.
Para mim, o comportamento de Robles não é nem deixa de ser moralmente reprovável. O comportamento de Robles, bem como o apoio que o Bloco lhe concedeu, é politicamente errado, reprovável se preferirem. Porque o negócio a que se dedicou, posto que pontualmente, é um negócio de natureza especulativa. E, politicamente, a questão que se põe é saber se a esquerda concorda ou apoia as práticas especulativas, sejam elas bolsistas, imobiliárias ou de outra espécie, ou se as condena e combate pelas causas que estão a montante da especulação e pelas consequências que dela decorrem a jusante.


Se as combate e condena como as pode praticar? Que eficácia tem esse combate se aqueles que as combatem as praticam? Ora, esta questão não é moral, é política. Daí que não me insurja particularmente contra o comportamento da direita, mas sim contra o comportamento daqueles que possibilitaram à direita fazer o aproveitamento político que tem feito e está fazendo num domínio em que essa mesma direita se empenhou a fundo, permitindo-lhe agora afirmar que a política habitacional dos grandes centros urbanos não só tende a ser cada vez mais consensual como também é a que melhor serve os interesses da cidade. Daí a crítica sem contemplações aos que numa matéria tão sensível como a política de habitação nas grandes cidades, varridas pela onda turística da actualidade, praticam actos que acentuam as consequências negativas daquele fenómeno e descredibilizam a política habitacional que a esquerda tem tentado, com grande dificuldade, por em prática.

Em conclusão: a reprovação do comportamento de Robles não é jurídica nem moral. É política. O comportamento de Robles  é licito, se nenhuma ilegalidade (até agora desconhecida) tiver sido praticada; e também não parece que seja moralmente reprovável, porque se o fosse a qualificação moral do acto ficaria dependente da natureza da pessoa que o pratica. De facto, se o acto em questão tivesse sido praticado por um fundo imobiliário ou por um militante do CDS (partido ao qual é, a justo título, atribuída a autoria material da lei) seria um acto louvável e recomendável como manifestação da capacidade empreendedora do seu autor, daí que não possa ser considerado imoral se praticado por Robles, já que tal conclusão implicaria um relativismo moral inaceitável. Esse relativismo não existe na moral, embora seja da essência da política. Logo, a reprovação ser apenas e só política!


sábado, 28 de julho de 2018

UMA HISTÓRIA OCORRIDA NO PORTUGAL OITOCENTISTA

OLHA PARA O QUE EU DIGO, ESQUECE O QUE EU FAÇO Resultado de imagem para comércio negreiro

Uma história transposta para actualidade. Anacronismo? Nem tanto.
Eu sou contra o tráfico de escravos. Este comércio negreiro a que Portugal e o Brasil se dedicam já  deveria estar proibido há muito. Mas o Sá da Bandeira, embora concorde comigo, acha que não é ainda chegado o tempo de impor a proibição por mais que os ingleses o pressionem nesse sentido.
Acontece que, sem culpa minha, herdei de um meu familiar uma empresa que se dedica a esse negócio. É verdade que eu sou contra, até fiz campanha pedindo a sua proibição. Mas como não me compete substituir o Estado, nem tão pouco a cessação por motivos filantrópicos da actividade da empresa que eu herdei iria acabar com o comércio negreiro, eu vou fazer o que qualquer outro faria no meu lugar: vou continuar com o negócio, embora seja o primeiro a concordar com a sua proibição. Todavia, enquanto ele for legal...

sexta-feira, 20 de julho de 2018

SOBRE TRUMP


A PROPÓSITO DA CIMEIRA DE HELSÍNQUIA
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Acabei de ouvir os comentadores da Quadratura do Círculo falar sobre Trump a propósito da cimeira de Helsínquia. E estou muito longe de partilhar a ideia, por eles unanimemente defendida, de que o actual Presidente dos Estados Unidos é um louco, que actua erraticamente, sem qualquer estratégia, lançando o caos nas relações internacionais, nomeadamente entre os seus tradicionais aliados.

Apesar de já estar no poder há cerca de ano e meio não é tão fácil como habitualmente interpretar a estratégia do Presidente norte-americano. E não é, porque Trump, não sendo um homem do establishment, tem tido muita dificuldade em impor aquilo a que se poderia chamar a sua linha política. Errou, do ponto de vista dele, na formação do Governo e da composição da Casa Branca. Por isso, teve de fazer alterações, por vezes bruscas, outras de difícil compreensão, tudo isto em consequência das cedências e recuos que se viu obrigado a fazer. Daí um certo comportamento errático, absolutamente inabitual num político saído de dentro do sistema.

Por outro lado, Trump é pouco elaborado intelectualmente, mais parecendo um “popular” que embora tenha uma ideia do que quer fazer e acredite nela, a expõe quase sempre com desconcertante simplismo e ainda menor eloquência. Como é sensível à reacção dos que o escutam, tanto dos que se situam no seu campo, como daqueles cuja força da opinião lhe pode causar dano, não tem qualquer dificuldade em dar a entender que mudou de posição, fazendo-o com a mesma leveza com que deturpa a verdade, mas sempre com vista manter o essencial do que considera importante para sua acção política.

Este tipo de comportamento, próprio do empresário para quem o objectivo primordial é o lucro, influencia decisivamente a sua acção política.

Trump foi eleito, como se sabe, com os votos dos desempregados, das vítimas da globalização, em suma, de todos daqueles que têm dificuldade em compreender que sendo a América tão forte, tão poderosa, teoricamente presente nos quatro cantos do mundo, tem tanta gente dentro das suas fronteiras não apenas vivendo tão mal, mas, pior do que isso, tendo perdido completamente a esperança de poder vir a viver melhor.

Daí que, no pano interno, os seus inimigos sejam aqueles que conduziram a América a esta situação e os que, vindos de fora, estão a prejudicar os verdadeiros americanos, ou seja, aqueles que durante mais de meio século constituíram a classe média americana, oriunda das classes trabalhadoras.

Para combater esses inimigos é preciso cerrar as portas à imigração, desde logo à gigantesca imigração ilegal na sua esmagadora maioria proveniente da América Latina, e é preciso também onerar aqueles que estão a arruinar a América vendendo-lhe produtos que deixaram de ser produzidos nos Estados Unidos, exportando-lhe com eles desemprego e desolação.

No contexto desta perspectiva, Trump vê a América como uma empresa, uma empresa sem outra ideologia que não seja o lucro. As empresas não têm por função segregar ideologia ou fazer a defesa de “valores” que desempenhem um papel fundamental no plano ideológico.

Nunca ninguém até hoje ouviu Trump falar na defesa dos “valores” americanos, da “democracia”, enfim, de toda essa ladainha com que os americanos desde há quase um século têm cimentado a sua hegemonia política.

Trump está fora desse mundo. Trump vê o mundo como um campo de acção concorrencial, onde o mais forte tenta esmagar o mais fraco, retirando-o do mercado ou limitando-lhe o mercado. Mas como qualquer empresário Trump também percebe que, sendo esse o objectivo, dificilmente o poderá alcançar por inteiro. Daí que tenha que negociar com a concorrência e aceitar a sua presença no mercado se ela for suficientemente forte para não sucumbir às suas arremetidas.

É neste contexto que ganham sentido e racionalidade as suas relações com a Rússia, com a União Europeia, com a Ásia, principalmente com a China.

Para Trump a Rússia não só não é concorrente perigoso como até lhe pode ser útil na luta contra os seus verdadeiros inimigos. Como empresário, Trump sabe do que fala. Sabe que a Rússia não ameaça a sua “America First”. Essa ameaça vem de outras paragens. Desde logo dos seus vizinhos do Norte e do Sul em consequência dos tratados negociados por políticos americanos que “desgraçaram” a América e cujas vantagens ideológicas, que deles pretendiam obter, em nada interessam a América, porque não a engrandecem, apenas a empobrecem. Depois vem a União Europeia, um inimigo de peso, um inimigo que vive à custa da América, que lhe custeia quase integralmente os custos de defesa militar e lhe “dá” como contrapartida uma balança comercial fortemente deficitária, o que é na mundividência de Trump é algo de absolutamente inaceitável. Daí que Trump tudo tenha feito para desarticular a UE e, se bem se reparar, quando admite que alguém na Europa o possa ajudar nesses objectivo (como chegou a supor que poderia acontecer com o Reino Unido depois do Brexit) o que lhe oferece como recompensa não é um tratado de defesa ou um reforço da sua capacidade militar, mas …um vantajoso tratado de comércio!

Finalmente, a Ásia, principalmente a China, à qual, depois de ter declarado guerra comercial, enfraquecendo-a, procura igualmente roubar aliados. E é nesse contexto que tem de ser interpretadas as “negociações” com a Coreia do Norte, muito difíceis de levar a cabo por se depararem com a feroz oposição do establishment americano que tudo, mas tudo, fará para as boicotar. Trump está mais interessado em “roubar” este aliado à China do que em manter na península coreana uma pujante base militar que, para a sua “guerra”, de pouco lhe serve.

Os actos políticos de Trump mais difíceis de explicar são o abandono do tratado nuclear com o Irão e a mudança da embaixada americana de Telavive para Jerusalém Embora muitos vejam no petróleo a motivação fundamental destas suas decisões bem como a consequente importância estratégica do Médio Oriente para os Estados Unidos, a verdade é que não sendo estes os pressupostos que têm orientado a política de Trump, seja mais fácil explica-los em função da influência israelita na política americana a que Trump não consegue escapar. Mas serão actos que, embora simbolicamente importantes, terão menos relevância do que se supõe. De facto, a Rússia já se encarregou de desarmadilhar parte da sua importância política, reiterando defender a segurança de Israel com múltiplas cumplicidades militares à mistura, não obstante manter uma relação privilegiada com Teerão.

Quem sofre mais com tudo isto e quem tem mais dificuldade em compreender o actual Presidente americano são os aliados tradicionais da América que, tendo ficado ideologicamente órfãos, vão passar um mau bocado para se recompor. Tanto pior quanto maior for a incerteza acerca da duração desta política.

Concluindo: será Trump um perigo para a humanidade, como amiúde se ouve dizer e se teme? Trump, antes de poder ser um perigo para a humanidade, é um perigo para si próprio. Não é de pôr de parte a hipótese de Trump ser um alvo a abater se persistir em levar à prática as suas ideias. Mas acaba também por ser um perigo para a humanidade por estar sujeito ao cerco feroz do establishment americano, o que numa personalidade como a sua, alicerçada num populismo que não pode admitir fraquezas, sob pena de se desmoronar, a pode levar à prática de actos de grande exibicionismo político, de funestas consequências, para manter intacta a ideia de que não sucumbe à acção dos concorrentes.

Esta é uma tentava de explicação, politicamente incorrecta, da acção política de Trump.