quinta-feira, 19 de novembro de 2015

AS AUDIÊNCIAS DE CAVACO


UMA BURLA EM JEITO DE FARSA



As audiências a que Cavaco se entregou depois da crise política que provocou, entremeadas por umas férias na Madeira, além de demonstrarem, se necessário fosse, a desconsideração com que trata o Parlamento e os portugueses que nele se sentem representados, constituem também um exercício inútil e desnecessário. Inútil por estar a ouvir pessoas que se representam a si próprias e desnecessário por as suas opiniões serem por demais conhecidas e antecipáveis por qualquer pessoa que siga com um mínimo de atenção a vida política portuguesa. Uma burla, portanto, em jeito de farsa.

Perguntar a Ferraz da Costa o que é que ele pensa de um governo de esquerda é um exercício inútil e desonesto, como inútil seria perguntar-lhe hoje o que pensa ele da independência das “colónias”, o que pensa do 25 de Abril, o que pensa da PIDE, tudo questões inúteis, já que as respostas que ele daria a estas perguntas são conhecidas. E quem diz Ferraz da Costa, diz outros exactamente como ele.

E chamar os banqueiros para serem ouvidos em nome do povo português é uma ofensa inqualificável. Que é que um banqueiro, qualquer que ele seja, tem hoje a dizer ao povo português, tem a dizer a qualquer europeu? Só pode dizer: “Peço muita desculpa pelos inúmeros sacrifícios que a minha ganância vos fez passar”. É que os portugueses, com excepção de meia dúzia, não foram brindados pelos banqueiros com a compra de acções pelo dobro ou triplo do preço por que tinham sido adquiridas…

E que respostas lhe podem dar ex- Ministros das Finanças que ou fugiram ou deixaram défices enormíssimos para quem os substituiu ou levaram o país à falência?

Cavaco tem de ouvir rapidamente os partidos, que lhe devem manifestar a sua inequívoca reprovação por terem sido preteridos numa consulta em que deveriam ter sido únicos, e indigitar António Costa como Primeiro ministro, limitando-se a exercer  daí para a frente os poderes que lhe restam como Presidente da República.

E os partidos devem exigir-lhe uma decisão rápida, uma decisão que termine com a obstrução que tem vindo a ser feita ao pleno funcionamento da Assembleia da República e do Governo, pondo termo à irresponsável conduta de impedir o regular funcionamento das instituições.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

SÓCRATES E MACEDO


DOIS PARTIDOS, DOIS CRITÉRIOS


Sócrates foi preso há cerca de um ano, a investigação tem saltitado de assunto para assunto sem até ao momento se ter formalmente fixado num deles. A acusação continua sem data marcada e sem previsão sobre quando ocorrerá. Não obstante, só há pouco mais de um mês Sócrates foi libertado, contra a vontade do juiz de instrução, embora continue sujeito a medidas de coacção menos graves.
Macedo, pelo contrário, investigado com recato, só muito recentemente passou a estar sujeito a medidas coacção ligeiras, apesar de já ter sido formalmente acusado da prática de vários crimes.
Com isto não estamos a querer dizer que Sócrates não deva ser investigado nem a sugerir que Macedo deva ser privado da liberdade. Não. Não mudamos de critério em função dos protagonistas. O que queremos dizer é que houve face a dois conhecidos políticos da actualidade uma divergência de critérios que nada juridicamente pode justificar.
Hoje, aos olhos de muita gente, cresce a convicção de que Sócrates não foi preso apenas para ser investigado, mas para criar um clima favorável a uma vitória eleitoral da direita.
Um dia se saberá se assim foi ou não, apesar de os últimos desenvolvimentos da vida política portuguesa nos façam acreditar em muita coisa, menos em coincidências. Um dia se saberá se alguém esteve por detrás de tudo isto e se o duplo critério usado pela investigação foi apenas ditado pela vontade dos seus protagonistas ou se, pelo contrário, outras vontades e razões estiveram no comando desta divergência.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A PRIVATIZAÇÃO DA TAP NOS PRÓS E CONTRA


O QUE FOI DITO

Um debate que não serviu os interesses do país. E desta vez nem sequer se pode dizer que a culpa tenha sido da apresentadora.
Do lado dos que defendem uma TAP pública ou discordam desta privatização tudo ou quase tudo correu mal. Luís Ferreira levou o debate para campos de reduzido interesse ou que só servem o interesse dos privatizadores. Insistir excessivamente no papel dos reguladores é inútil e não leva a nada. Toda a gente sabe que em noventa por cento dos casos os reguladores digam o que disseram existem ou para fazer o que o Governo quer que façam, quando o governo tem sobre a sociedade e a economia uma perspectiva neoliberal, ou para dizerem aquilo que o capital quer que digam. O interesse dos cidadãos e o combate à concentração  da riqueza é coisa que eles jamais defenderão ou farão. Quem esperar o contrário é ingénuo. Por outro lado, trazer à colação a compra pela United Airlines de uma fracção do capital da Azul, qualquer que seja a volta que se lhe dê, só serve só o interesse do novo dono da TAP e favorece o ponto de vista do Governo. Nada pior em debates do que não perceber nada de política!
Ana Paula Vitorino, em representação do PS, jogou permanentemente à defesa. Embora porventura saiba muito mais do que disse, quis manifestamente guardar-se para quando for governo e manter em aberto as duas hipóteses de um Governo PS: ou renegociar uma recomposição do capital social ou declarar que não é possível fazer essa renegociação. Se das palavras de Costa na Grande Entrevista se pode vislumbrar uma certa intenção de materializar a proposta do PS, das de Ana Paula Vitorino apenas se colhe a ideia de que há uma pressão velada sobre os compradores, embora se fique sem saber se é para “espectador ver” ou se é mesmo para levar a sério.
António Pedro Vasconcelos que tem tido uma acção cívica a todos os títulos notável acabou por não referir o que politicamente era essencial – a continuação da responsabilidade do Estado pelas dívidas da TAP e o embuste que esta privatização representou por dela se ter dado ao público uma imagem completamente diferente do que realmente aconteceu. É certo que referiu algumas questões importantes, mas poderia ter ido mais além no escasso tempo que lhe concederam.
Do lado do Governo, referir antes de mais a extrema habilidade de Fernando Pinto para fugir às questões difíceis e de saber apresentar sempre as coisas de modo convincente para o grande público, principalmente se não houver entre os seus contraditores quem ,com argumentos válidos, seja capaz de desmontar a sua retórica. Negativo, o excessivo elogio aos novos patrões.
Pita Ferraz da Comissão de Acompanhamento é o exemplo acabado de um cromo que poderia ter sido completamente colado à parede se os seus opositores fossem outros. Além de ser uma insuportável e pouco inteligente voz do dono, nem sequer o negócio conhecia em pontos essenciais, como, por exemplo, a possibilidade da sua reversão sem custos para o Estado durante o tempo que mediou entre a assinatura dos contratos promessa e a assinatura dos contratos definitivos. Estava ali para defender o Governo, sem qualquer imparcialidade e poderia ter-se tornado num aliado precioso se as suas “competências” tivessem sido bem exploradas pelos seus contraditores.
O Secretário de Estado, aparte a questão do secretismo do negócio e da natureza semi-clandestina do seu encerramento, não chegou a ter necessidade de se defender por nunca ter sido atacado nos pontos nevrálgicos da privatização.
Assim, não se vai lá…

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA




CRIMES DE RESPONSABILIDADE DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS


Segundo a Constituição, art.º 117.º, os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções, cabendo à lei ordinária determinar os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos.

No artigo 130.º prevê-se a responsabilidade do Presidente da República pelos crimes praticados no exercício das suas funções, sendo a iniciativa do processo da Assembleia da República e a competência para o julgar do Supremo Tribunal de Justiça

Durante mais de dez anos a lei ordinária não deu cumprimento ao disposto na Constituição, tendo finalmente, a Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, estabelecido a tipologia dos crimes de responsabilidade bem como o respectivo regime.

Esta lei foi alterada posteriormente várias vezes, sendo última alteração de 2015,  Lei n.º 30/2015 de 22 de Abril.

Para analisar a responsabilidade criminal do Presidente da República convirá fundamentalmente atender aos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º Lei n.º 34/87 de 16 de Julho.

Art.º 8.º - ATENTADO CONTRA A CONSTITUIÇÃO

O titular de cargo político que no exercício das suas funções atente contra a Constituição da República, visando alterá-la ou suspendê-la por forma violenta ou por recurso a meios que não os democráticos nela previstos, será punido com prisão de cinco a quinze anos, ou de dois a oito anos, se o efeito se não tiver seguido. 

Art.º - 9.º - ATENTADO CONTRA O ESTADO DE DIREITO

O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido.  

DESENVOLVIMENTO

Analisemos em primeiro lugar o artigo 8.º. Este artigo prevê duas situações: a alteração ou a suspensão da Constituição por meios violentos ou por recurso a meios que não os democráticos nela previstos.

Relativamente à primeira situação não se vê como possa o crime consumado ser punido, parecendo antes que na sua previsão apenas poderá caber a tentativa ou a frustração. Vejamos porquê. Se o titular de um cargo político no exercício das suas funções atenta contra a Constituição com vista a alterá-la ou suspendê-la por forma violenta e logra obter esse objectivo, a partir desse momento a lei que penaliza o atentado contra a Constituição deixa de aplicar-se, porque a legalidade vigente passa a ser outra - a legalidade decorrente do acto de força que permitiu alterar ou suspender a Constituição; se, porém, o titular do cargo político não conseguir alcançar o objectivo, então estaremos perante uma tentativa que a lei igualmente prevê e para a qual estabelece uma punição mais branda.  A menos que se entenda que a lei não consagra a tentativa por se bastar com o facto de o agente visar alterar ou suspender a Constituição. Só que  nesse caso deixa de ter sentido a previsão da pena para a simples tentativa. Uma coisa, porém, é certa, se o objectivo for alcançado por meios violentos (manu militari) a punição não terá lugar pelas razões acima aduzidas. Por muito cínica que esta interpretação possa parecer, ela é a que resulta do princípio da efectividade.

Já o mesmo se não poderá dizer relativamente à alteração ou suspensão da Constituição por meios não democráticos. O recurso a meios não democráticos só pode querer significar o recurso a qualquer outro meio que não os previstos na Constituição para a sua alteração ou suspensão. A questão que a este respeito naturalmente se põe é a de saber se a alteração ou a suspensão a que o artigo 8.º se refere tem de consubstanciar-se num acto formal ou se pode também resultar de uma prática que deixa formalmente inalterado o texto constitucional, mas da qual resulta de facto uma verdadeira alteração ou suspensão da Constituição.

Relativamente à alteração ou suspensão da Constituição por meios não democráticos também se poderia começar por afirmar que o crime consumado não poderá ocorrer  porque o acto que formalmente consagra aquela violação é juridicamente inexistente, uma vez que se mantém a estrutura essencial do Estado de direito. No entanto, neste caso, parece óbvio que o essencial para que a consumação ocorra é a prática do acto, independentemente da sua validade jurídica. Todavia, apesar de a prática, por meios não democráticos sem recurso à violência, de um acto formal, porém inexistente, ser punível e de relativamente a ele se não levantarem os mesmos problemas que filosófica e praticamente estão associados à prática de um acto da mesma natureza por meios violentos, temos de admitir que, para além da prática de actos formais, o artigo em questão se refere também às práticas que igualmente visem a alteração ou a suspensão da Constituição levadas a cabo sem a existência de actos formais que a consubstanciem. Ou seja, práticas que produzam um resultado equivalente ao que resultaria de uma alteração ou suspensão formal.

A dificuldade com que esta interpretação se depara é que nem toda e qualquer prática contrária à Constituição de um titular de órgão de soberania deve ser criminalmente punida. Teria de se fazer a distinção entre as práticas contrárias à Constituição e as práticas que visam de facto alterá-la ou suspendê-la por subverterem gravemente os princípios democráticos nela consagrados.

Optar por este caminho para punir o titular de um órgão de soberania seria certamente um caminho árduo e difícil de ser percorrido com êxito. Mas nada impede de o tentar percorrer desde que os factos que provam a existência dessa prática e o animus de quem os pratica sejam manifestamente informados pelo desprezo pelos princípios democráticos consagrados na Constituição.

Já quanto ao artigo 9.º da lei acima citada, a configuração do crime de atentado contra o Estado de direito refere situações mais plausíveis e mais prováveis de acontecer sem que a subsunção dos respectivos comportamentos na previsão normativa levante o mesmo tipo de interrogações. Aquele que abusar das suas funções, que delas se desviar gravemente ou que gravemente violar os seus deveres para tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido incorre numa pena de dois a oito anos de cadeia ou de um a quatro se os seus intentos não tiverem sido alcançados.

Aqui tudo é mais simples e plausível ,como acima se disse. Desde que uma determinada conduta de um titular de um órgão de soberania se traduza numa flagrante violação das suas funções ou represente um uso abusivo dessas funções ou uma grave violação dos seus deveres para por essa via tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente consagrado estaremos claramente numa situação em que o comportamento do agente preenche (integra) a previsão normativa, havendo, portanto, lugar ao desencadeamento das consequências jurídicas que a concretização daquela previsão acarreta.

Do ponto de vista prático – e era aqui que queríamos chegar – a questão que se põe é portanto a de saber como qualificar o comportamento de Cavaco, enquanto titular de um órgão de soberania, se fizer tábua rasa da decisão do Parlamento e mantiver em funções o actual Governo, na sua actual composição ou remendado, recusando-se a indigitar um outro Primeiro ministro.

Vejamos o que diz a Constituição. Cabe ao Presidente da República nomear o Primeiro Ministro, ouvidos os partidos políticos representados na Assembleia da República, tendo em conta os resultados eleitorais. Esta é uma competência do Presidente da República.

A competência de um órgão compreende os poderes que por lei lhe são atribuídos para o desempenho da sua função. Todavia, os poderes compreendidos na competência de um órgão não são todos da mesma natureza. Há poderes que esse órgão exerce discricionariamente (não confundir com arbitrariamente), embora sempre em vista do fim para que foram concedidos, compreendendo essa discricionariedade umas vezes a prática ou a não prática de um acto; outras, a escolha de uma via entre várias possíveis, devendo em qualquer caso a decisão, embora baseado num juízo pessoal de quem decide, ser aquela que, segundo esse juízo, melhor serve o objectivo, o fim, em vista do qual aquele poder foi concedido.

Todavia, nas competências de um órgão não estão apenas compreendidos poderes discricionários. Pelo contrário, a maior parte desses poderes são poderes vinculados, poderes que têm de ser exercidos nos termos prescritos pela lei, havendo, entre estes, poderes que não podem deixar de ser exercidos por a inacção representar a violação de um dever.

É o que se passa com a nomeação do Primeiro Ministro pelo Presidente da República.

O Presidente da República não pode deixar de nomear o Primeiro Ministro. Não pode, por exemplo, o Presidente da República deixar de nomear um novo Primeiro Ministro saído de eleições legislativas, mantendo o anterior Governo em funções, por não lhe agradar ou não concordar com a orientação política do partido vencedor ou por qualquer outra razão. O Presidente da República não tem o poder de nomear ou não nomear. Tem de nomear.

A que regras está subordinada essa nomeação? A Constituição é muito clara: como já atrás dissemos, o Presidente da República nomeia o Primeiro Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais, depois de ouvidos os partidos representados na Assembleia da República.

Ter em conta os resultados eleitorais significa olhar para a correlação de forças no Parlamento resultante do acto eleitoral. E há situações saídas dos resultados eleitorais que não suscitam quaisquer dúvidas, em que ouvir os partidos não passa de uma mera formalidade. Assim, inequivocamente, quando há um partido ou uma coligação de partidos que ganha as eleições com maioria absoluta dos deputados. Também não há qualquer espécie de dúvida quando depois das eleições se constituiu uma coligação formada por dois ou mais partidos com maioria absoluta de deputados no conjunto dos partidos coligados. E o mesmo se poderá dizer quando dois ou mais partidos negoceiam depois das eleições um acordo de incidência parlamentar que assegura, a um deles, o apoio maioritário no Parlamento. Em todos estes casos a decisão do Presidente da República só pode ser – tem de ser – a indigitação como Primeiro Ministro da personalidade que chefia o partido mais votado, a coligação de partidos ou o partido que beneficia do acordo de incidência parlamentar.

Em qualquer destes casos se o Presidente da República não nomear Primeiro Ministro a personalidade acima indicada, se estiver a fazer depender essa nomeação de exigências ou da aceitação de condições que a Constituição não prevê – e a Constituição não prevê nenhumas! –, terá de entender-se que o Presidente da República estará a tentar alterar a Constituição por meios não democráticos ou, no mínimo, a abusar das suas funções, a violar os seus deveres e a tentar alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente consagrado por estar a impedir o regular funcionamento das instituições.

Mesmo nos casos em que a interpretação dos resultados eleitorais não seja tão óbvia como nas situações acima descritas, o Presidente também não goza de um poder discricionário de interpretação dos resultados eleitorais. O seu poder é sempre limitado e compreende-se que o seja porque o que está em causa é o voto do povo numa democracia representativa. Numa democracia representativa o deputado não recebe um mandato imperativo, como toda a gente sabe. O deputado não tem tutores, nem explicadores sobre o que deve ou não fazer, estando apenas condicionado pelo voto popular na eleição seguinte. Numa democracia representativa de feição partidária o partido assume igualmente um papel de relevo, sem que contudo a autonomia jurídica do deputado seja posta em causa, embora do ponto de vista prático essa autonomia esteja obviamente condicionada pelas regras partidárias, que, todavia, o deputado pode não aceitar, desligando-se do partido sem deixar de ser deputado. Isto para dizer que ninguém, com excepção do deputado, no sistema constitucional português se pode arrogar o direito de interpretar o sentido do voto popular. Daí que os poderes do Presidente na República sejam muito limitados quando se trata de atender aos resultados eleitorais.

Assim, fora dos casos acima previstos, o Presidente da República deve indigitar para Primeiro ministro a personalidade que chefia o partido mais votado. Contudo, se durante as negociações para a formação de governo, o Primeiro Ministro indigitado chegar à conclusão de que não consegue assegurar o voto favorável do Parlamento ou a abstenção que lhe permita governar impõe a lealdade institucional que tal facto seja comunicado ao Presidente que, depois de ouvidos novamente os partido, deverá convidar o segundo partido mais votado para formar governo já que nenhuma outra alternativa lhe resta, pois, como se sabe, a AR não pode ser dissolvida nos seis meses subsequentes à sua eleição. 

Se, porém, o Primeiro Ministro indigitado for empossado porque não comunicou ao Presidente que não dispunha de apoio parlamentar ou porque acreditava que esse apoio poderia vir a alcançar-se e o seu Governo não passar no Parlamento em consequência de uma moção de rejeição aprovada por maioria absoluta de votos dos deputados em efectividade de funções e entretanto se tiver formado uma coligação pós eleitoral ou um acordo de incidência parlamentar que assegure, em qualquer dos casos, um apoio maioritário a essa coligação ou a um partido, o Presidente da República deve – está obrigado – nomear Primeiro Ministro a personalidade que chefia a coligação ou o partido que dispõe desse apoio parlamentar maioritário. O Presidente da República não pode deixar ficar o país sem Governo, sem um Governo no pleno exercício de efectividade de funções.

A Constituição não atribui ao Presidente da República qualquer poder susceptível de condicionar essa nomeação. O Presidente não pode impor-lhe condições para o nomear, nem exigir-lhe compromissos de nenhuma espécie, salvo obviamente o respeito pela Constituição. Se o Presidente não nomear o novo Primeiro Ministro por não concordar com a “cor” política do novo Governo ou por entender que esse Governo não está em condições de cumprir as exigências (inconstitucionais) que ele lhe impôs, ou por qualquer outro motivo, e deixar em gestão por tempo indeterminado o governo rejeitado, o Presidente da República estará de facto a tentar alterar a Constituição ou, no mínimo, a abusar dos seus poderes e das suas funções, a violar gravemente os seus deveres e a tentar por essa via subverter ou alterar o Estado de direito consagrado na Constituição por estar dolosamente a impedir o regular funcionamento das instituições.

No caso de Cavaco, o dolo nem sequer é difícil de provar porque ele expôs com muita clareza o seu pensamento e as suas intenções no discurso de indigitação de Passos Coelho. Por outro lado, o comportamento de Cavaco subsequente à rejeição aponta no mesmo sentido. A decisão de ouvir os chamados “parceiros sociais”, em vez de ouvir os partidos, como a Constituição lhe impõe, resolver partir de férias ou de viagem de recreio para a Madeira, protelando a decisão sobre uma situação urgente, não podem deixar de constituir indícios mais que seguros de um comportamento doloso de desprezo pela Constituição que assim estava sendo subvertida com base num sectarismo absolutamente inaceitável.

Se esse for o caso, se o actual Governo for mantido em gestão até á realização de novas eleições, a Assembleia da República, mediante proposta de um quinto dos deputados (46), deverá iniciar o processo-crime por atentado contra a Constituição e contra o Estado de direito com vista à sua aprovação e posterior remessa ao Supremo Tribunal Justiça afim de nele ser instruído e julgado.

ADITAMENTO

Tendo em conta o conselho do António Hespanha e também o ensinamento de Vital Moreira, que entretanto consultei, não pode deixar-se de parte, na análise da responsabilidade do Presidente da República por crime de responsabilidade praticado no exercício de funções, o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho e posteriores alterações.

O artigo 10.º contempla a chamada “Contempt of Parliament”, nos seguintes termos:


COACÇÃO CONTRA ÓRGÃOS CONSTITUCIONAIS
1 - O titular de cargo político que por meio não violento nem de ameaça de violência impedir ou constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania ou de órgão de governo próprio de região autónoma será punido com prisão de dois a oito anos, se ao facto não corresponder pena mais grave por força de outra disposição legal.

A não nomeação do Primeiro Ministro, depois da realização de eleições legislativas e a substituição do Governo rejeitado pelo Parlamento depois daquelas eleições, traduz-se numa efectiva obstrução ou, no mínimo, num forte constrangimento às funções da Assembleia da República.
A Assembleia da República, embora possa fiscalizar o Governo em funções, está de facto e de jure impedida de exercer as suas funções em plenitude, pela própria natureza do Governo em exercício - competência limitada a actos de gestão corrente.
A Assembleia da República além de ficar privada de ter em funções um Governo da sua confiança, no mínimo, um Governo que ela não rejeitou, fica em consequência das limitações constitucionais dos Governos de gestão amplamente limitada no exercício das suas funções por manifesta obstrução do Presidente da República.
Além de que, a rejeição do Governo pela AR obriga o PR a empossar outro Governo, como acima se demonstrou.

(Por agora este aditamento fica por aqui, sendo minha intenção desenvolvê-lo em post posterior)





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terça-feira, 10 de novembro de 2015

O DEBATE SOBRE O PROGRAMA DO GOVERNO




A DIREITA PORTUGUESA É ANTIDEMOCRÁTICA



Não adianta estar a poupar nas palavras. Não se ganha nada com isso e quanto mais redondas são as palavras utilizadas maior é a confusão. A direita portuguesa é aquilo que sempre tem sido desde há cem anos. É visceralmente antidemocrática ou como muito expressivamente se dizia há umas décadas atrás: é fascista, como a presente conjuntura amplamente o demonstra.

A direita portuguesa, golpista desde o 25 de Abril (os vários golpes de Spínola e o golpe de Sá Carneiro/Palma Carlos entre Abril de 74 e os primeiros meses de 1975), caceteira, bombista e incendiária (os muitos atentados em que participou e os múltiplos incêndios que ateou no Verão de 1975), beneficiou até 4 de Outubro deste ano do certificado de democracia que, por razões meramente tácticas, Mário Soares lhe outorgou no 25 de Novembro e da incompatibilidade de quatro décadas entre os partidos de esquerda, razão por que até hoje nunca teve necessidade de fazer prova de respeito pelos princípios democráticos.

Estes pressupostos eram para a direita uma espécie de “seguro democrático” que a dispensavam do pagamento de “prémio” e a isentavam da obrigação de fazer a “prova devida” tão certa ela estava da sua imutabilidade.

Tendo-se deparada pela primeira vez desde Novembro de 1975 com a ausência daqueles pressupostos, a direita portuguesa não precisou de mais de 30 dias para mostrar a sua verdadeira face - a face antidemocrática e fascista que na realidade nunca perdeu, nem mesmo quando se travestiu de direita neoliberal, trajando à moda da época, como disfarce que passou usar para melhor alcançar os seus objectivos de sempre: o poder sem partilha e sem controlo.

Colocada neste novo contexto e estando impossibilitada de usar explicitamente o meio que melhor a caracteriza – o uso da força – a direita portuguesa, de Cavaco a São Bento, passando pelos mil e um meios de que dispõe para amplificar a sua voz, esgrime argumentos estúpidos, repetidos à saciedade, sempre com a esperança de que com a sua permanente repetição alguma coisa deles possa ficar na cabeça das pessoas.

Assim, continua no Parlamento a ouvir-se o estafado argumento de que Passos Coelho ganhou a eleição para primeiro-ministro, não podendo António Costa ser indigitado para o cargo porque a perdeu. Dada a imbecilidade do argumento nada melhor do que uma resposta à altura: “Se o primeiro ministro é eleito que sentido faz que seja Cavaco a nomeá-lo, depois de ouvidos os partidos representados na Assembleia da República”?

Em seguida, embora ligado a este, vem o argumento da falta de legitimidade de António Costa ou do Partido Socialista para governar. É estranho que nunca ninguém antes de responder a esta tonteira tenha perguntado ao autor do “argumento” o que é a legitimidade, em que consiste, pois somente depois de se saber em que consiste se pode verdadeiramente dizer se existe ou não.

Em terceiro lugar, vem o estafado e inacreditável argumento de que António Costa só pode ser indigitado primeiro-ministro e formar governo se apresentar um acordo estável e duradoiro com apoio parlamentar maioritário. Estranho. Então se para ser indigitado primeiro-ministro é necessário apresentar um acordo estável e duradoiro com apoio parlamentar maioritário como se explica que Cavaco Silva tenha indigitado e dado posse a Passos Coelho?

Obviamente que estes argumentos não passam de pseudo-argumentos, são na sua coerência lógica estúpidos e imbecis, apenas desenvolvidos por mentes que privilegiam o obscurantismo e o analfabetismo na acção política.

A resposta à questão que nos domina é bem mais simples e a sua compreensão está ao alcance de qualquer mente cuja capacidade de compreensão se não queira propositadamente obscurecer.

As eleições de 4 de Outubro de 2015 foram eleições legislativas. Eleições que se destinaram a escolher os 230 deputados que compõem a Assembleia da República. A Assembleia da República tem por principal actividade fazer leis e fiscalizar a acção do Governo. Nos regimes parlamentares ou de dominante parlamentar como é o nosso, o Governo para exercer funções carece do apoio do Parlamento. Apoio do Parlamento, expresso ou tácito, para evitar a rejeição do seu programa de governo, apoio expresso do Parlamento para confirmar a confiança dos deputados e apoio, expresso ou tácito, do Parlamento para evitar a sua censura.

O Presidente da República só excepcionalmente pode demitir o Governo: apenas e só quando se torne necessário para garantir o regular funcionamento das instituições democráticas.

Aparte este caso e o direito de veto relativamente a qualquer decreto do Governo, o Presidente da República não interfere na acção governativa.

Todavia, compete ao Presidente da República nomear o primeiro ministro, ouvidos os partidos com assento na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.

Em lugar algum da Constituição se diz ou sequer se sugere que o Presidente da República só pode nomear um Primeiro Ministro que goze de apoio parlamentar ou que seja portador de um acordo interpartidário que lhe garanta esse apoio. Nada disso existe na Constituição. Tudo o que se tem dito este respeito não passa de pura ficção política destinada a perpetuar a direita no poder.

Isto não quer dizer que o Presidente da República não tenha de atender aos resultados eleitorais para nomear o primeiro ministro. E tem também de ouvir os partidos representados no Parlamento, sendo da conjugação destes dois pressupostos que o primeiro ministro é nomeado.

Assim, se há uma força política que goza do apoio da maioria absoluta dos deputados, seja essa força política um partido, uma coligação pré ou pós eleitoral ou um partido que beneficia de um acordo de incidência parlamentar com aquelas características, deve o dirigente máximo dessa força política ser indigitado primeiro ministro.

Se, porém, não existe qualquer maioria absoluta, seja porque nenhum partido ou coligação pré ou pós eleitoral a conseguiu, seja porque nenhum partido beneficia de um acordo de incidência parlamentar que a garanta, o Presidente da República deve indigitar para primeiro ministro o representante máximo do partido ou coligação pré-eleitoral que nas eleições obteve mais deputados.

É isto o que diz a Constituição. Tudo o resto é fantasia. Das muitas personalidades e pseudo personalidades que se têm pronunciado sobre este assunto, apenas uma dela, não jurista, interpretou correctamente a Constituição: Sampaio da Nóvoa!

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

AINDA A PROPÓSITO DO ACORDO À ESQUERDA




O QUE FAZ FALTA

Não há nada pior na política portuguesa do que alguém vestir as vestes alheias e fazer-se passar por quem não é.

Recordo que a seguir à queda do Muro, por razões profissionais e outras, desloquei-me várias vezes a alguns países do extinto Pacto de Varsóvia e não podia deixar de criticar a arrogância com que alguns colegas se referiam à paisagem urbana de cidades como Berlim Leste, Praga e Varsóvia entre outras.

Falavam e criticavam como se fossem cidadãos de Munique, de Londres, de Paris ou até de uma qualquer cidade modelo e esqueciam-se completamente que tinham a Baixa Pombalina numa situação miserável, que no Largo de Camões havia pés de couves a nascer dos telhados em ruínas, enfim, tomavam-se por quem não eram.

Infelizmente, esse mau hábito é contagioso. Se eu tenho um programa político para executar, mas nem sequer disponho no Parlamento de um décimo dos deputados, por mais justo e excelente esse meu programa seja, eu não posso ter pretensão de o executar como faria se dispusesse da maioria absoluta dos lugares. Claro, que os meus deputados são importantes para construir uma maioria e nessa medida tem um valor superior ao seu peso numérico isoladamente considerado, mas como, por outro lado, eu também estou interessado numa nova solução (é suposto) aquele peso baixa na razão directa desse meu interesse e obriga-me a ser comedido e moderado nas minhas exigências, sem deixar de ser firme no que tenho de ser.

É tudo.

SOBRE O ACORDO À ESQUERDA




O QUE TEM DE SER FEITO



Sobre o acordo à esquerda, nomeadamente entre o PS e o PCP, fala-se muito e sabe-se pouco.

Em duas palavras, ou um pouco mais, também gostava de dizer alguma coisa. A primeira não é muito diferente daquela que quase toda a gente já disse: o eleitorado de esquerda não está preparado para um falhanço das negociações, nem aceita uma qualquer explicação para esse hipotético desenlace. A segunda também já foi muito repetida, mas que importa continuar a sublinhar: esta é uma oportunidade que não pode ser perdida de ânimo leve, não apenas pelas potencialidades que encerra mas também porque, se falhar, dificilmente se repetirá nos tempos mais próximos, com a agravante de a direita se prevalecer desse fracasso para aplicar em toda a linha o seu programa neoliberal de destruição do Estado social e de desforra do 25 de Abril.

Dito isto, quanto ao resultado das negociações não estou apreensivo, nem convencido. Apenas expectante. Expectante e atento.

A ideia base que os negociadores não podem deixar de ter em conta, imposta, não direi pelo senso comum, que é algo que eu tenho alguma dificuldade em saber o que é, mas pelo princípio da boa-fé, que na sua compreensão objectiva significa muito simplesmente fazer o que deve ser feito e não exigir o que não pode ser exigível, o que aplicado às negociações em curso quer muito pura e simplesmente dizer o seguinte:

É inadmissível que as negociações fracassem por exigência de realização imediata de algo quer pode fazer-se gradualmente; assim como é inadmissível que as negociações não tenham êxito por não se querer fazer agora o que somente agora pode ser feito!

Entendido?