terça-feira, 13 de dezembro de 2011

AINDA A QUESTÃO DA DÍVIDA E O CONSELHO EUROPEU



A ILUSÃO DO EQUILÍBRIO ORÇAMENTAL NA LUTA CONTRA A CRISE

Como se vê pelos comentários ao último post, a dívida continua a ser uma questão que mobiliza a opinião de muita gente pelo interesse que o assunto suscita.
Há, porém, certas questões que interessa aprofundar para evitar equívocos desnecessários.

A primeira é esta: em Portugal, quando falámos de dívida, do que é que estamos a falar? Da dívida ou de Sócrates?

A segunda questão sobre a qual igualmente interessa opinar é a seguinte: a dívida era inevitável ou decorre de um conjunto de erros de governação?

A terceira, que também não pode ser evitada, é esta: de que dívida estamos a falar? Da pública ou da privada? Ou de ambas? E, neste último caso, que relação há entre elas?

Finalmente – a questão mais difícil -, o que se poderia fazer para superar a actual situação.

Primeira questão – Neste blogue já se falou suficientemente de Sócrates e da sua governação durante o tempo em que desempenhou as funções de Primeiro Ministro. Não adianta continuar a misturar as duas questões, por mais relevante que tenha sido o seu papel na contracção da dívida pública. Digamos que Sócrates foi apenas o nosso protagonista na parte final da contracção dessa dívida. Cada país, principalmente os que já estão em dificuldades bem como aqueles que se apressam a juntar a estes, teve, ou tem ainda, o seu ou os seus protagonistas.

E esta é a primeira conclusão que nos deve fazer pensar: se todos têm um “Sócrates” há aqui uma coincidência que a análise dos fenómenos sociais não pode desprezar. Por outras palavras, porventura pomposas na forma, mas adequadas a exprimirem a ideia que se pretende expor: o método científico não pode desprezar as coincidências. Tem de tentar perceber se há alguma relação constante de causa e efeito nos fenómenos analisados ou, se, pelo contrário, a verificação de resultados semelhantes em diversos países não passa de uma simples coincidência.

Segunda questão - Hoje, já não há ninguém que, analisando seriamente o que se está a passar na zona euro, não tenha chegado à conclusão de que a sua “construção”, incorporando países tão diversamente competitivos e onde a integração económica foi pura e simplesmente deixada às livres forças do mercado, potencia o incremento da dívida entre os seus membros.
Por um lado, o excesso de liquidez resultante de múltiplas “borbulhas” especulativas nos países desenvolvidos e, por outro, um grande espaço económico de livre circulação de bens, serviços e capitais, actuado por parceiros muito desiguais sob a égide da mesma moeda, levou à formação de enormes excedentes financeiros, uns e outros propiciadores de capital barato que convidam ao endividamento em larga escala.

Dir-se-á que tal endividamento era evitável se os governantes tivessem limitado as despesas públicas a uma razoável relação com os rendimentos gerados pelo próprio país, mesmo tendo em conta os rendimentos esperados dos investimentos feitos mediante recurso ao crédito.
É evidente que se o Governo tivesse sabido (ou quisesse) resistir à pressão dos grandes interesses, nomeadamente do capital financeiro;  se não tivesse concluído negócios ruinosos para o Estado, como aconteceu com a maior parte das parcerias público-privadas; se tivesse deixado falir o BPN, certamente que a dívida pública teria outro peso. Mas não é pensável supor, nos tempos que correm, a existência de um país como Portugal sem dívida. Dívida haveria sempre, a menos que prescindíssemos da maior parte das vias de comunicação, de hospitais, de escolas, enfim de todo um conjunto de infra-estruturas que mudaram completamente a face do país.
Portanto, não é de crer que a maioria das pessoas se sentisse bem num país que tivesse limitado as suas despesas aos recursos fiscais anualmente arrecadados pelo Estado, recursos que tenderiam, obviamente, a diminuir tanto mais quanto menos despesas houvesse. Não é de crer que alguém advogue um país sem dívida, muito orgulhoso da ausência de passivo, atrasado, etc.
Claro que entre esta situação, que aponta para uma espécie de “salazarismo económico”, e um endividamento excessivo vai uma grande diferença. Mas já não irá assim uma tão grande diferença entre o endividamento que temos e o endividamento que “legalmente” poderíamos ter – 60% do PIB. Como se verá pela análise da questão seguinte, os resultados não seriam substancialmente diferente.

Terceira questão – Temos estado a falar da dívida pública como se esta fosse a origem de todos os nossos males. A verdade é que, muito mais importante que a dívida pública, é a dívida privada. O défice fiscal, contrariamente ao que propagandeiam as forças reaccionárias, não é a causa dos nossos males. Sem desvalorizar as consequências negativas de um endividamento público excessivo, a verdadeira razão dos nossos problemas é o défice de conta corrente. Ou seja, o défice da balança comercial (diferença entre o que se exporta e o que se importa); o défice da balança de serviços e de capitais (fretes, seguros, turismo, recebimento de juros, exportação de lucros, remessas de emigrantes e de imigrantes) e das transferências unilaterais. Se o saldo da conta corrente é negativo, isso significa que o país está em dívida para com o exterior. Ora, como bem se sabe o saldo de conta corrente de Portugal não cessou de aumentar depois da preparação do país para adesão ao euro - adesão ao SME e medidas que para o efeito tiveram de ser tomadas.

Em todas as componentes da balança de transacções correntes há défice, mas o da balança comercial é certamente o que mais preocupa. Esse défice revela que o euro, fora da zona euro, é para países como Portugal uma moeda cara para exportar e consequentemente barata para importar. Dentro da zona euro, a moeda única facilitou importações que noutras circunstâncias não poderiam ter sido feitas  ou não teriam atingido o mesmo volume e foi, durante muito tempo, uma moeda barata para as pessoas se endividarem, o que levou a que os grandes negócios e as principais “fontes de desenvolvimento” assentassem no incremento da procura interna, em larga medida incidente sobre bens importados, e em investimentos (com financiamento externo) em áreas muito lucrativas onde se actua a coberto da concorrência internacional – os chamados “bens não transaccionáveis”. São as obras públicas, a construção imobiliária, mas também as grandes empresas de prestação de serviços actuando em regime de monopólio ou oligopólio. Estes investimentos e as importações criaram uma dívida privada gigantesca que, essa sim, é que está na origem da crise da dívida, ou, mais correctamente, da crise do euro.
E há uma relação indissolúvel entre as duas dívidas – a pública e a privada. Por um lado, a pública tende a aumentar tanto mais quanto menos competitiva no plano internacional for a economia do país. As pressões do capital financeiro sobre o Estado serão tanto maiores quanto menor for a capacidade da iniciativa privada para se impor no mercado internacional, nomeadamente o europeu.
E depois há uma outra consequência que verdadeiramente só irá desencadear-se em toda a sua pujança nos anos que aí vem. É a que decorre da assumpção pelo Estado do chamado “lixo tóxico” que figura nos activos dos bancos. Pode protestar-se, pode discordar-se, mas no actual sistema neoliberal de hegemonia do capital financeiro não há maneira de fugir a esta consequência. Quem quiser realmente evitá-la tem igualmente que estar de disposto a mudar de sistema, opção que está por demonstrar relativamente a muitos dos que agora protestam contra a dívida
A Irlanda e a Espanha não tinham défice fiscal; pelo contrário, ambos os países chegaram a ter superávide. Nem tinham (e a Espanha ainda não tem) uma dívida pública desproporcionada relativamente ao PIB. Tanto num como noutro a dívida andava abaixo dos 40% do PIB. E passou-se o que todos sabem: por força da crise financeira ambos os países geraram um défice fiscal elevado e aumentaram consideravelmente a dívida pública. Porquê? Porque tanto em Espanha como na Irlanda a dívida privada é superior ao dobro dos respectivos PIB.
Na Irlanda já se viu quais são as consequências para o Estado, o mesmo é dizer para os cidadãos contribuintes, dessa dívida gigantesca, reflectida na ruína de todo o sistema bancário cuja falência o Estado teve de evitar. De facto, o Estado teve de salvar os bancos da falência contraindo dívida pública na mesma proporção daquilo que, numa primeira aproximação, se julgava ser o lixo tóxico existente nos seus activos. Mas tanto na Irlanda como em Espanha, países da zona euro onde a borbulha imobiliária especulativa atingiu as maiores proporções, continua a haver muito “lixo” no activo dos bancos que tem de ser saneado. E o que vai acontecer é que esse “lixo”, principalmente proveniente dos mil e um negócios especulativos feito na área do imobiliário, vai ter de ser assumido pelo Estado. Depois se verá como: se pelo valor que figura nos balanços, se por uma certa percentagem, mas não certamente pelo preço de mercado que, na maior parte dos casos, é nulo. E o Estado assume esse passivo “contraindo” dívida pública.
O que já se passou na Irlanda (também na Islândia e noutros países da União Europeia, até da zona euro, não intervencionados,) passar-se-á no ano que vem em Espanha e em todos os países onde os activos dos bancos sejam em percentagem apreciável constituídos por créditos incobráveis ou de muito difícil cobrança.
Portanto, a relação entre a dívida pública e a privada é muito forte. Os desequilíbrios de conta corrente gerados pela zona euro acabariam sempre por se repercutir na dívida pública, tornando-a num grave problema, mesmo que à partida ela estivesse circunscrita aos tais limites de razoabilidade de que acima falámos.
Para não alongar exageradamente este texto, a última questão – que tem a ver com o último Conselho Europeu e com a ilusão do equilíbrio orçamental como factor de superação da crise - será tratada em post separado.

2 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

sempre a aprender (eu, claro)
:)

Anónimo disse...

Na mouche!
Síntese esclarecedora, só não vê quem não quer, ou é "cego".

duarte