quarta-feira, 31 de outubro de 2012

"MEDIDAS DE CRESCIMENTO"


 

O ENGANO DAS PALAVRAS

 

Mais do que em qualquer outra época é nas épocas de crise que as palavras tendem a perder o seu significado corrente, sendo muitas vezes usadas num sentido propositadamente enganador com vista a por meio deles se obterem resultados diametralmente opostos ao que elas aparentemente significam.

Nas épocas de grandes convulsões sociais, de grandes mudanças, acontece com frequência as “palavras chave” desses momentos, umas vezes reflectindo o programa de quem governa, outras as aspirações dos governados, serem completamente adulteradas por aqueles que, tendo perdido a hegemonia, fingem identificar-se com os novos objectivos, usando as palavras dos que agora governam, embora atribuindo-lhes, com reserva mental, significados completamente diferentes. Quem não se lembra das declarações dos pides sobre “democracia” a seguir ao 25 de Abril e do “socialismo personalista” do CDS de Freitas do Amaral? Outras vezes são aqueles que lideram mudanças contra as aspirações populares que usam as mesmas palavras que consubstanciam aquelas aspirações, também neste caso com um sentido diferente do que lhes é atribuído, para falsamente darem a ideia de que estão a ir ao seu encontro e assim tentarem confundir e dividir o campo adversário.

Face às consequências da presente crise dramaticamente evidenciadas pelo desemprego em massa e pelas falências em cadeia, além do agravamento generalizado das condições de vida da maior parte dos cidadãos, “crescimento” é a nova palavra chave. É o conceito por cuja concretização as massas populares aspiram como remédio adequado a estancar a sangria dos despedimentos e a relançar a economia.

É certo que a “Matrona da Saxónia” e seus lacaios, a começar por Passos Coelho, têm evitado criteriosamente o uso deste conceito, tendo, pelo contrário, insistido em palavras indiciadoras de programas que aberta e claramente o contrariam. Ainda há dias, em Bucareste, no Congresso Popular Europeu, Merkel escarneceu, na presença dos seus confrades, do conceito de crescimento. Quando estava no uso da palavra, virando-se -se para trás, na direcção do Presidente da Comissão Europeia, disse: “Era bom que explicassem ali ao José Manuel Barroso como é que num passe de mágica essa coisa de crescimento se alcança”. E depois de ter insistido que não é por via de “diretivas europeias” que o crescimento se conseguirá, debitou a cartilha neoliberal com todos os ingredientes conhecidos (liberdade, empreendedorismo, combate à burocracia, etc.). E por cá o nosso homem, isto é, o homem dela, também não quer ouvir falar em tal palavra.

Mas se Passos Coelho actua desse modo por subserviência, covardia política ou calculismo manhoso, já o mesmo se não poderá dizer de Merkel que, sentindo-se relativamente confortável perante o seu eleitorado, rejeita o conceito por obviamente perceber que a sua concretização prática lhe iria custar algum dinheiro e simultaneamente temer que essa concretização lhe acarretasse perda de apoio eleitoral, apesar das vantagens futuras que essa política pudesse proporcionar.

Acontece, todavia, que os representantes da alta finança mundial estão preocupados com a situação na Europa, não apenas pelo reflexo que a situação económica europeia pode ter noutras economias, como também pela imprevisibilidade das consequências políticas que uma crise prolongada pode ocasionar. E é essa a razão que levou os altos representantes do Banco Mundial, do FMI, da Organização Mundial do Comércio, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico e da Organização Internacional do Trabalho a fazerem uma ronda pelas grandes capitais europeias (Paris e Berlim), pedindo “medidas de crescimento”.

O que Hollande realmente pensa sobre o assunto ainda é um mistério. O Presidente francês acha que a Europa está a sair da crise, fazendo gala de um optimismo que o próprio Pangloss invejaria, ou talvez não, tendo em conta que o mestre de Cândido mais não é do que a expressão do pensamento alemão (Leibniz) contrário ao de Voltaire. Que Hollande acabe por seguir o exemplo de Cândido quando desencantado da perfeição do mundo que lhe pregavam acabou por se guiar pela sua própria cabeça, sobrevivendo ao mais terrível dos “terramotos”, é o que a Europa do Sul realmente espera. Todavia, entre a espera e a realidade vai uma incomensurável distância.

Deixando Voltaire e voltando ao tema, a resposta de Merkel, em Berlim, à mesma diligência que teve lugar em Paris, foi “redonda”, mas em qualquer caso menos arrogante que a proferida em Bucareste.

Mas o que querem dizer os representantes daquelas organizações económicas internacionais quando reclamam aos governantes mais influentes da zona euro “medidas de crescimento”?

Em capitalismo, em tempos de crise grave, de depressão ou recessão prolongada, ou seja, de algo que vai muito para além da parte baixa do ciclo económico, só há duas formas de atacar o problema: ou mediante uma receita idêntica à que se aplicou na Europa a seguir à I Guerra Mundial e começou por se aplicar, nos Estados Unidos, a seguir à Grande Depressão de 1929 sob a presidência de Hoover, de resto algo muito semelhante ao que agora se está a fazer na Europa; ou mediante a aplicação das teses inovadoras e revolucionárias de Keynes.

As teses keynesianas foram hegemónicas na Europa até Thatcher, e, principalmente, nos Estados Unidos,  até à presidência de Reagan, apesar de os choques petrolíferos terem gerado uma situação que parecia contrariar o pensamento de Keynes – inflação e estagnação, simultaneamente. De facto, a famosa “estagflação” pôs em causa um dos mais relevantes axiomas keynesianos (inexistência de desemprego com inflação), levando a que os discípulos da velha Escola de Viena, agora em Chicago, aliados aos neoconservadores, tivessem encontrado na persistência daquela situação a grande oportunidade para pôr em causa as teses keynesianas e poderem voltar a pôr em prática os grandes princípios da economia liberal. A partir daí eles disputaram gradualmente a hegemonia de Keynes, a ponto de o terem suplantado claramente a partir da presidência de Reagan e do consulado de Thatcher, como acima se disse.

Mais que Milton Friedman (um ex-keynesiano), o grande inspirador deste pensamento político-económico de substracto filosófico foi Hayek. É ele, porventura mais com os seus livros políticos, principalmente “O Caminho para a Servidão”, do que com as suas teses económicas, que acaba por guiar a acção de Thatcher na Europa e que nos Estados Unidos inspira Reagan. É ele também, disso não haja dúvidas, o mestre de Merkel, Schäuble e Gaspar.

É bom não esquecer, todavia, que foi Friedman e não Hayek que, a partir da experiência histórica da Grande Depressão, apresentou uma teoria bem diferente da de Keynes e também da de Hayek, para combater a depressão. Diz Friedman que se a oferta de moeda tivesse sido aumentada cautelosamente, em vez de contraída excessivamente, e as taxas de juro tivessem baixado, a Grande Depressão teria sido evitada ou teria durado muito menos. Friedman não era, portanto, um grande admirador de Hayek no plano económico, embora tivesse sido no plano político, pelo menos até certa altura.

Acontece, porém, que o monetarismo (de Milton Friedman) não evitou a crise financeira de 2008, nem as suas mais dramáticas sequelas, voltando tudo de novo ao princípio. Como sair da crise, afinal? Com Keynes ou com Hayek?

É neste contexto que os representantes das grandes organizações económicas internacionais apelam na Europa a “medidas de crescimento”. Que medidas de crescimento são estas? E assim voltámos, para finalizar, à questão das palavras enganosas. Seria ilusório supor que aquelas personalidades vieram pedir a Paris e principalmente a Berlim a aplicação de medidas keynesianas em grande escala para sair da crise. Nada disso.  Eles estão longe de acreditar que será pelo incremento da despesa pública, nomeadamente das grandes obras públicas, que se combate a crise. A tese deles, tanto quanto se percebe, é “moderar Hayek” (evitando deixar cair tudo o que não tem força para se aguentar) e aproveitar alguma da experiência de Friedman. Ou seja, reduzir os impostos, não apenas das empresas, mas dos cidadãos em geral, principalmente dos mais ricos (como estímulo económico) e reduzir a despesa social (libertando, assim, recursos – é a terminologia deles – para a economia privada). Este o conceito de “medidas de crescimento” daqueles notáveis representantes. Para já a conversa é propositadamente ambígua e politicamente apelativa, mas quando atrás deles vierem os “homens de fato preto”, para pôr em prática as tais medidas, ver-se-á que será igualmente à custa do Estado Social que se vai tentar sair da crise. E ai certamente que alguém ficará a ganhar e muito!

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