quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

ENTRE O PS E O PCP O QUE HÁ?


O PS COMO PROBLEMA

Entre o PS e o PCP há obviamente o Bloco de Esquerda e uma enorme massa de eleitores sem partido que vai repartindo o seu peso eleitoral pelo PS, pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda.

O Bloco, nascido de uma estranha simbiose – trotskistas, UDP e ex-PCP que recusaram aderir ao PS, além de alguns independentes de esquerda –,começou por fazer prova de vida nas legislativas de 2000 afirmando eleitoralmente a sua existência, posto que pela margem mínima; depois, prestigiou-se no Parlamento e cresceu principalmente na legislatura em que o PS governou com maioria absoluta, tendo atingido o máximo do seu peso eleitoral simultaneamente com a perda dessa maioria pelo PS; quando tratou de se consolidar, no período de maior fragilidade política de Sócrates e de crescimento da direita, caiu e agora ameaça baixar para níveis muito próximos do seu começo como partido político.

As explicações para esta trajectória podem ser variadas, consoante o ponto de vista do observador, mas a verdade é que a diminuição do peso eleitoral do Bloco coincidiu, primeiro, com a perda da maioria relativa do PS e agora, a confirmarem-se os presságios, com o posicionamento mais centrista de sempre do Partido Socialista.

É perante este quadro do qual faz parte ainda como elemento relevante incontornável o crescimento e a consolidação do peso eleitoral do PCP, depois das muitas dificuldades por que passou posteriormente a 1989, que surgem quase simultaneamente duas iniciativas, aparentemente posicionadas no espaço compreendido entre o PS e o PCP, cujos objectivos, apesar de tentativamente explicitados, não são muito fáceis de compreender. Referimo-nos, como é óbvio, à iniciativa de Rui Tavares (Livre) e à de um grupo de cidadãos, entre os quais emergem os nomes da Carvalho da Silva, Daniel Oliveira e José Reis, a que deram o nome de “Convergência de Esquerda”, também conhecida por 3D.

Embora a maior parte das pessoas interessadas na interpretação da coisa política, porventura talvez um pouco mais as de esquerda, ache que Rui Tavares tenta desesperadamente manter o lugar de deputado ao Parlamento Europeu num gesto e numa ansiedade muito próprios de quem já sente a nostalgia da perda do poder, além do mais de um poder que se trata a si próprio muito bem, a verdade é que nestas coisas da política nem tudo pode ser assim apresentado cruamente sendo necessário, para lhes dar credibilidade, enroupá-las com aquele mínimo de aparato que as torne credíveis.

É isso que Rui Tavares tem tentado fazer em vários meios de comunicação social, com especial destaque no Público, no i e numa ou outra estação de televisão. Diz, em síntese, o ainda deputado ao Parlamento Europeu, que é necessário constituir em Portugal um novo partido que garanta, viabilize ou facilite a aliança do PS à esquerda. Um partido ideologicamente situado no espaço que vai da esquerda do PS à direita do Bloco, ou, como ele próprio diz, aos moderados do Bloco. Um partido que nessa área seja capaz ainda de congregar todos aqueles que à esquerda se não revêem na política de permanente compromisso do PS com a direita, nem nos radicalismos irrealistas do Bloco e muito menos nos dogmatismos arcaicos do PCP.

Este discurso, que de original nada tem, é, analisado com frieza, pouco consistente.

Se o Partido Socialista perdesse a chamada ala esquerda e se dele se afastassem aqueles eleitores que à esquerda, às vezes contrariados e quase nunca convencidos, votam nele por não se reconhecerem ou não confiarem nas demais alternativas existentes, ele deixaria de ser o que é e passaria a ser um partido de centro direita sem outras preocupações que não fossem as de garantir a alternância relativamente ao partido imediatamente à sua direita. Ou seja, se agora com a ala esquerda e com um núcleo relativamente importante de votos da esquerda, o PS é como é – não faz alianças à esquerda, nem conduz uma política em que a esquerda se reveja – imagine-se o que seria o PS sem aquele eleitorado e sem a militância, pelo menos retórica, dos “maus socialistas”. Querer fazer alianças sob a égide do PS e simultaneamente pretender despojá-lo do que nele há de genuinamente esquerda poderá ser muita coisa, mas o que certamente não será é via mais segura para constituir um governo de esquerda. Mas continuemos…

Rui Tavares parece desconhecer a história do Partido Socialista e a sua verdadeira natureza. É certo que o Partido Socialista está hoje bastante descaracterizado, à semelhança do que se passa com os demais “partidos irmãos” europeus, sejam eles socialistas, social-democratas ou trabalhistas, muito por força do que se passou na Europa (e no mundo) depois da Queda do Muro e da implosão da URSS. Essa descaracterização foi em grande medida obra dos socialistas europeus que levados pela vertigem da História não souberam ou não quiseram compreender o que realmente se estava a passar, tendo sido inclusive por obra sua que todas as portas foram abertas para o relançamento de um capitalismo sem freios com as consequências que agora estão à vista e contra as quais esses mesmos partidos socialistas se consideram impotentes para as contrariar ou inverter.    

Rui Tavares, como historiador, não deve desconhecer que nunca na sua história o PS teve uma composição tão à esquerda como a que existia por ocasião do 25 de Abril. Para além do núcleo duro, oriundo da ASP e de outras organizações políticas que a antecederam, caldeado na luta anti-fascista, havia trotskistas, obreiristas, católicos progressistas, ex-comunistas de esquerda, enfim, um sem número de pessoas que aderiu ao Partido vindas da esquerda que se opunham ao que entendiam ser a estratégia política do PCP e, obviamente, dos grupúsculos “m-l”, muito activos e com os quais o PS praticamente não mantinha relações; havia tudo isto e, não obstante, nunca houve politicamente uma “maioria de esquerda”, apesar de ela existir aritmeticamente, nem houve qualquer tipo de entendimento à esquerda minimamente durável. 

Porquê? Porque o PS de Mário Soares tinha uma estratégia muito clara da qual não se afastava um milímetro: institucionalizar em Portugal uma democracia representativa, se possível de base exclusivamente parlamentar, sem qualquer tipo de cedências a qualquer outra forma de poder que não a resultante do voto popular.

Mário Soares seguiu à risca esta estratégia, fazendo as alianças de ocasião que lhe pareceram necessárias para a consolidar e recusando, sem hesitações, qualquer tipo de entendimento à esquerda que, de perto ou de longe, pudesse fazer crer num relançamento do PREC.

Mário Soares acreditava na solidariedade dos partidos socialistas e social-democratas europeus, acreditava no “socialismo em liberdade” e acreditava acima de tudo na Europa como palco ideal de concretização das suas ideias políticas. E continuou a acreditar, nos anos imediatamente subsequentes à Queda do Muro e à desagregação da URSS, que estavam, finalmente, reunidas as condições ideais para pôr em prática aquele ambicioso projecto político.

Aliás, é bom que se recorde que não foi sob o comando executivo de Soares à frente do PS que a organização económica consagrada na Constituição Portuguesa foi revista e completamente descaracterizada, mesmo tendo em conta a Lei n.º 77/77. Soares patrocinou e promoveu, juntamente com o PSD, a revisão de 1982, que no essencial consagrou aquilo que fora a sua estratégia politica depois do 25 de Abril. Mas foi com a revisão de 1989, promovida pelo cavaquismo com o apoio do PS de Constâncio que se abriu à porta às privatizações e tudo o mais que elas trouxeram. Cumprida a tarefa, Constâncio demitiu-se de secretário-geral do PS por divergências insanáveis com a família Soares, na altura centradas em João Soares.

Tudo isto para dizer que mesmo quando o PS esteve politicamente mais à esquerda nunca a sua política favoreceu qualquer entendimento à sua esquerda. Meia dúzia de anos depois da revisão constitucional de 89, veio o “guterrismo” que escancarou as portas da economia à Europa, o novo Deus ex machina dos socialistas, promoveu aqui e na Europa, com os muitos socialistas que então a governavam, o neoliberalismo, internamente atenuado pela promoção de um certo assistencialismo que a existência de dinheiro com fartura possibilitava. Deixados guiar pela “conversa” da Terceira Via, a nova geração de socialistas estava a preparar a cama para o tal capitalismo sem freios, voraz e insaciável que jamais abrandará a sua marcha com vista à constituição de uma sociedade inteiramente dominada pelo mercado. Ou seja, de uma verdadeira sociedade civil no sentido marxista do conceito. De uma sociedade onde reina o poder do mais forte, onde campeia a liberdade ilimitada bem à semelhança do que se passa na selva. Um verdadeiro estado de natureza!

Pois bem, se este é o objectivo para que caminhamos, se o “nosso” PS e os seus congéneres europeus não só se revelam absolutamente incapazes de se opor a este estado de coisas como, pelo contrário, por quase toda a Europa, se aliam, agora em minoria, aos corifeus desta política, que sentido tem estar a formar um partido com a intenção de servir de “bengala” ao PS na futura constituição de um governo? Nenhum. Absolutamente nenhum, salvo o de identificar a “bengala” com aquele que dela precisa para caminhar.

É por essa mesma razão que igualmente se não compreendem bem os verdadeiros objectivos da recém-anunciada “Convergência de esquerda” ou do chamado Manifesto 3D. Mesmo que haja uma adulteração semântica do conceito – e há, pela própria limitação da diversidade por cuja convergência se luta – resta sem resposta adequada a questão fundamental: convergir com base em quê? A convergência política para ser uma convergência verdadeira e própria tem de ser substantiva e não meramente adjectiva. A “convergência” para evitar que o Bloco “caia no buraco” ou para simplesmente unir sob uma nova sigla votos que de outro modo estariam eventualmente dispersos, pode ser uma excelente ou razoável ideia para quem é eleito, mas em si esse objectivo não acrescenta rigorosamente nada à esquerda se os votos reunidos sob a égide de uma sigla não servirem os objectivos de uma política de esquerda.

O que a nosso ver acrescentaria algo à esquerda seria lutar pela convergência das forças de esquerda em torno de um projecto de mudança assente numa política de ruptura do status quo. Uma política, por outras palavras, que fizesse convergir para as forças da “Convergência” os votos da esquerda sem partido, deixando o PS em minoria, pois somente com o PS em minoria será possível conduzir em Portugal uma política de esquerda. Uma política na qual o PS teria o seu lugar, mas não como partido hegemónico à volta do qual se façam hipotéticas, na realidade impossíveis, alianças com vista à condução de uma política de esquerda.

Aparentemente, a Convergência de Esquerda parece ter como objectivo prioritário congregar todos os votos situados entre o PS e o PCP. Ou seja, parece ter por objectivo eleitoral alcançar os resultados que o Bloco parecia estar em condições de conseguir e que hoje manifestamente já não consegue. É isso que se depreende das palavras de José Reis mais do que das de qualquer outro: “Perante uma esquerda fragmentária, há vários passos a dar, sucessivamente. O primeiro é um compromisso inicial entre quem mais imediatamente se deve unir: o BE, o Livre, as várias plataformas, organizações, individualidades e activistas. (…) Depois há, evidentemente, outros passos a dar. Perante o PCP e o PS”.

Como esta convergência se alcança, em que bases se funda e fundamenta é coisa que os promotores da iniciativa não explicam suficientemente. Mais claro parece ser o propósito pós eleitoral desta nova força política: constituir uma força de governo, fazer parte do “arco da governação”, como claramente se intui das palavras de Daniel Oliveira, outro promotor da iniciativa.

Independentemente da respeitabilidade de alguns nomes que assinam o Manifesto, como José Reis e Carvalho da Silva, entre outros, a conclusão que parece poder retirar-se da relativa opacidade que rodeia os seus propósitos políticos não é infelizmente muito diferente daquela que o Livre, com mais transparência, claramente anuncia: uma bengala posta à disposição do PS para tentar impedir que este caminhe encostado à direita. 

Claro que a ser assim – e até agora nada indica que seja de outra maneira – tudo à esquerda ficaria mais ou menos na mesma ou porventura até pior. Se é certo que só se pode fazer uma política de esquerda governando, não é menos certo que somente sem a hegemonia do PS e sem alianças subordinadas à estratégia do PS, se poderá fazer essa política de esquerda. E isso só será possível mediante a constituição de uma frente na qual convirja toda a esquerda. Ou seja, uma frente que ponha o “arco do poder” do outro lado do hemiciclo...

10 comentários:

Anónimo disse...

Ex.mp Senhor Dr. José Manuel:
Em nosso entender, este seu artigo de opinião, com o devido respeito, é dos piores, pelo conteudo, de quantos vem escrevendo neste”blog”, mais parecendo uma palestra em qualquer “rotary club”. Ficamos decepcionados em constatar que, a caminho do 1º quartel do século XXI, nos venha ainda falar de “esquerdas” e “direitas”, à boa maneira dos anos sessenta do século passado, dar grande importância a epifenómenos como BE ou o chamado PS poder, aliado ao PCP ou não, num eventual governo, vir a fazer uma política em prol do País e do Povo, como se partidos ligados ao arco da corrupção tenham alguma coisa a ver com os interesses do País , “esquerdas” ou “direitas”. Até parece, embora não seja verdade, que V. Exa. não apreendeu nada nestes últimos sessenta anos. Veríamos com muito agrado e satisfação que o Senhor Dr. pudesse teorizar algo que fosse um incentivo para sairmos desta situação e destes processos ideológicos anacrónicos que vêm destruindo o País, pelo menos desde 1976.
Peço-lhe aceite os nossos mais respeitosos cumprimentos.

Anónimo disse...

Ó amigo diga-me lá onde vive. Que país é esse onde não há esquerda nem direita, que eu também quero ir para lá.
Não há nada como estar adiantado mais de um século.

Alcipe disse...

A conclusão que retiro do teu texto e que para ti a solução de esquerda e a hegemonia do PC. Estou a ler mal? Se estou, diz-me.

Jerónimo Franco disse...

Desconhecem os comentários e opiniões do cidadão comum . Experimentem comentar estes assuntos (novos partidos) na rua , no café , no restaurante ou na tasca ! Obterão como resposta mais comum " é tudo igual , o que querem é tacho " . E depois perguntem porquê !
Um partido pode prometer este mundo e o outro ; pode jurar pela santinha que é de uma seriedade impoluta . Uma vez no poleiro faz o contrario ! E não o podemos mandar embora ! Temos que esperar 4 anos ! Alguma empresa poderia subsistir com um gerente assim ? Que diz que não pode ser substituido porque tem um contrato por 4 anos ?

JM Correia Pinto disse...

Meu Caro Alcipe
Não é isso o que eu digo, nem é isso o que eu quero. O que quero é uma esquerda em que o PS não seja hegemónico, porque se for… não será esquerda.
Estes movimentos, principalmente o 3D - quanto ao Livre estamos conversados - deveriam ser mais claros nos seus objectivos, tanto no que respeita à primeira fase como no que toca à segunda. Que eles tenham a pretensão de congregar os votos que estão entre o PS e o PC, alargando, se possível, esse espaço, é positivo, mas não basta. Se o PS continuar a ser hegemónico à esquerda nunca se unirá à restante esquerda para com ela governar. É o que a nossa história em democracia demonstra. Mas talvez já fosse possível trazer o PS para outra política se fosse possível construir uma aliança sem hegemonias.
Eu sei que isto é muito difícil e só seria possível se tanto o PS como o PC aceitassem discutir e questionar o que agora tanto de um lado como do outro está “dogmatizado”.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Correia Pinto: o PS é aquilo que os militantes do PS quiserem que o partido seja e não aquilo que quantos o querem menorizar no seio da esquerda, como é o seu caso, pretenderiam que ele fosse. Por isso, a opção de votar ou não "neste" PS será sempre sua.

JM Correia Pinto disse...

Meu Caro Seixas da Costa

Não tenho assim tanta certeza que o PS esteja sendo aquilo que os militantes do PS querem que seja. É certamente aquilo que alguns militantes querem que seja. Os "maus socialistas" - e são muitos - , não se revêem nesta política

Anónimo disse...

Muito interessante o artigo, ou melhor, quase muito interessante.

Assumindo que os integrantes do novo partido irão defender interesses por eles assumidos, só se poderão posicionar à esquerda por não assumirem que tem interesses.

Quanto à "esquerda" e "direita", são apenas denominações para simplificar a identificação dos eleitores, já que se tem observado nos últimos anos, ideias bastante inteligentes que seriam de "direita" em partidos que se denominam de "esquerda" e vice versa.

Tal qual um hipermercado tem produtos de baixo custo para "atrair" os consumidores e posteriormente lucrar com os outros produtos que lhes dão a real rentabilidade, encontramos os partidos a defender os mesmos princípios de mercado para apresentar as suas ideias, avançando posteriormente com as respostas reais aos problemas que se deparam na governação de uma nação.

Um vende feiras mundiais e cimento, outro estádios, outro vende tecnologia, ou estufas. Todos tem dourado a pílula da forma que o povo compra.

A verdade é que vivemos num mundo tecnológico e de rápida mudança, a qualidade de vida com que crescemos, o tempo que tínhamos para pensar nas acções e discutir longamente todas as suas vertentes, já terminou. Agora o tempo é de agir e verificar os resultados imediatos, este tempo já não permite ideias gravadas na pedra.

Os partidos políticos são apostas na liquidez de interesses instalados que resistem pelo poder que tem. Enquanto a sociedade não se organizar para se defender, localmente até atingir proporções nacionais, nunca irá encontrar um equilíbrio entre o interesse de alguns e o interesse de todos.

O tempo dos partidos como madrassa esta a terminar, para dar lugar a um espaço comum e popular, de participação e execução. Como garantia de fiscalização das competências e interesses públicos.

JM Correia Pinto disse...

Registo do último comentário:
"Enquanto a sociedade não se organizar para se defender, localmente até atingir proporções nacionais, nunca irá encontrar um equilíbrio entre o interesse de alguns e o interesse de todos".

Anónimo disse...

O Sr. DR. fala bem em os cidadãos se organizarem. Mas ainda não percebeu que quando os cidadãos se começam a organizar vem logo o PCP infiltrado a boicotar tudo?Se em quarenta anos ainda não viu que esse partido boicota tudo o que é feito pelos cidadãos e até parece que é pago pelos outros partidos para manter os Portugueses escravizados por este poder corrupto e anacrónico, então nunca mais vê nada. Deixe-se de preconceitos e investigue Sr. Dr.